Novos tempos, velhos temas



Após anos de conflitos bélicos e ações de guerrilha e de luta separatista, finalmente testemunhamos o reconhecimento pela ONU, pelos Estados Unidos e por alguns países da Europa da legitimidade da declaração de independência de Kosovo em relação à Sérvia. Trata-se de mais um episódio do esfacelamento da antiga Iugoslávia, “país dos eslavos do sul”, concebida após a Primeira Guerra Mundial, com o intuito de aglutinar uma série de grupos sociais que as potências mundiais acreditavam ser muito pequenas e pouco expressivas para constituírem Estados. Essas etnias e culturas tão díspares, quando órfãs, sem um governo como o do Marechal Tito para congregá-las, tenderam a buscar caminhos próprios: a Croácia, a Eslovênia, Montenegro, a Bósnia e agora Kosovo, que se desata da Sérvia. Vivemos tempos de respeito à autodeterminação dos povos, sempre que esse elevado ideal interessar ou, no mínimo, quando não atrapalhar muito.

Curiosamente, parece que há uma insistência de países pouco expressivos em incomodar seus irmãos maiores, a exemplo do Afeganistão, do Vietnã, da Irlanda do Norte, entre outros. Agora é a vez da Ucrânia. Em 12 de fevereiro, ao externar a intenção de ingressar na OTAN, o presidente ucraniano recebeu uma ameaça implícita do premier russo, que lamentou a idéia de ser obrigado a direcionar seus mísseis nucleares ao território de seu antigo aliado. Esse posicionamento de Putin foi tão imediato e marcante quanto sua manifestação contrária à independência de Kosovo. Em ambos os casos, há uma mensagem subliminar em relação ao posicionamento da cúpula de Moscou: a Rússia voltou a ser um protagonista do cenário político internacional.

Há pouco tempo, entretanto, era apenas um coadjuvante. Desde a perestroika e a glasnost iniciadas por Gorbachev, o processo político-econômico pelo qual passou a antiga União Soviética desarticulou os sovietes, o partido comunista, a unidade dos Estados membros, e até mesmo o orgulho nacional, fazendo com que o espólio da União Soviética, denominado Comunidade dos Estados Independentes, se voltasse quase que exclusivamente a seus problemas internos, sob a liderança controversa de Boris Yeltsin. Quem acreditava naquela Rússia da década de 90, cadáver do sonho socialista, alquebrada e incapaz de manter seu próprio gigantismo?

Novos ventos sopraram desde o final da década de 90 entre São Petesburgo e o Mar de Bering. Lentamente, sob a administração de Putin, a Rússia volta a ter o espaço que legitima sua cadeira cativa no Conselho de Segurança da ONU. Trata-se hoje de um país com um significativo mercado interno, com a maior produção petrolífera mundial desde 2002 e, nunca é demais lembrar, uma potência nuclear, com um governo forte e que goza de ampla aprovação popular. Com a casa em ordem, a Rússia pode se dar ao luxo de ser uma voz dissonante no cenário internacional, pois tem cacife para isso.

Que daí não se deduza, entretanto, que a terra dos antigos czares seja capaz ou tenha a intenção de reiniciar uma nova Guerra Fria, muito menos um conflito nuclear. O problema é que a história nem sempre se mostra lógica e racional, e o posicionamento da Grande Rússia perante a adesão da Ucrânia à OTAN e a independência de Kosovo sugere um renascimento daquilo que na Guerra Fria ficou conhecido como a “zona de influência comunista”, o “cinturão vermelho”, que não é mais comunista nem vermelho. Mesmo nesta era que um grande historiador denominou como a das “ilusões perdidas”, cabe lembrar que foi a Sérvia, em 1914, (apesar de tão insignificante quanto hodiernamente) que acendeu o rastilho de pólvora que deflagrou a Primeira Guerra Mundial. Infelizmente, os últimos anos de Milosevic e seus asseclas não nos dão muita esperança de mudança de mentalidade ou de comportamento nos Bálcãs. Cabe-nos torcer para que a história não se repita.  

 

Jacintho Del Vecchio Junior

E-mail: [email protected]

 Publicada originalmente no Jornal de Jundiaí em 04/03/2008.

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