Cenas Inesquecíveis de Filmes Esquecidos (1ª parte)



Cenas Inesquecíveis de Filmes Esquecidos

 

1ª Cena: Margot e o Casamento (Margot at the Wedding – Noah Baumbach, 2007)      

 

Margot está desconfortável. O banquinho que lhe arrumaram é muito alto, estreito, suas pernas estão muito esticadas. O microfone é antiquado, tem fio. A plateia, que inclui o filho adolescente e a irmã dela, pensa “é essa aí a escritora? Tão mal vestida!”.

Dick, o amante de Margot, é quem conduz a entrevista na livraria. Ele tem uma voz desagradável e um modo pedante de articular as palavras; mexe o tempo inteiro com a mão, num movimento circular, como se limpasse um parabrisa. Dick comenta um texto de Margot (Middle Children), em que um pai abandona as filhas, apesar do amor que sente por elas. Não sem péssimas intenções, ele enfatiza desde já a luta sexualizada entre o pai ficcional e as filhas. Margot confirma as palavras do amante, justamente por não saber ainda aonde ele pretende chegar. A pergunta seguinte é o lugar-comum de toda entrevista com um escritor: “o que há de autobiográfico nessa história?”. Margot ensaia um sorriso de deboche, pensa “como um homem tão inteligente me pergunta algo imbecil assim?”, e diante do lugar-comum, ela devolve outro lugar-comum: fala do relacionamento dela e da irmã com o pai, mas avisa que o pai ficcional nada tem a ver com o seu. Dick, demonstrando uma sagacidade bastante superior à de Margot, retruca: “mas eu gostaria de saber até que ponto o pai da história seria, na verdade, um retrato seu”. A expressão “luta sexualizada” estala na cabeça de Margot como uma martelada. A cena está concluída. Tem sangue por todos os lados e ninguém foi esfaqueado...

***

Definida eficazmente por Roger Ebert como “a family under the microscope”, a fita de Baumbach me fascina pela sua crueldade. Tudo o que é cruel seduz as pessoas, especialmente quando se trata de crueldade familiar. Se um ato cruel é ao mesmo tempo protagonizado e sofrido por consanguíneos, a atenção pública é imediatamente despertada. Eis como exemplo máximo o mito de Medeia. O apreço pela crueldade é um “hábito intelectual y emocional” de todos nós, como definiu o escritor espanhol José Ovejero num ensaio chamado La Ética de La Crueldad.

Baumbach é um diretor cruel quando fala de família, é essa sua qualidade principal como realizador. Aliás, ser cruel é uma qualidade fundamental para ser artista. Não é à toa que o filho adolescente de Margot e sua irmã assistem, lado a lado, à entrevista. Para o diretor, é preciso que a família testemunhe o desmascaramento da escritora, seu constrangimento diante da plateia e diante do próprio amante, seu torpor temporário ao ver-se desnudada na presença de um fantasma (um Pai) que ela julgava reconhecer em outra pessoa, mas que na verdade era ela mesma. Talvez a pergunta de Dick restabeleça para Margot uma ideia quase esquecida de identidade — fenômeno muito comum nos relacionamentos humanos, quando julgamos conhecer tão profundamente a outro indivíduo (geralmente um parente ou um amigo) que nossa identificação desse ser, em vez de firmar-se, acaba se deteriorando, até não sobrar quase nada dos detalhes de personalidade que supúnhamos já ter classificado.

O pai de/para Margot significa um homem limitado: já morreu, já existiu, não pode, consequentemente, revelar mais nenhuma faceta, seja inédita ou omitida no passado, trata-se de uma pessoa conhecida. Em relação ao pai, Margot é, para si, o que ele jamais será novamente, ou seja, conhecer o pai como ela conhece é um alívio em relação a si mesma, porque ela ainda não se conhece completamente, ela, diferente do pai, ainda não terminou.

A perspectiva de Claude (o filho) em relação à mãe é, como é comum com nossos filhos — por mais saudável que sejam nossos relacionamentos —, injusta, falível, tortuosa, é como tentar olhar através de um vidro embaçado.

Há, contudo, nesse triângulo (pai de Margot – Margot – filho de Margot) um quarto elemento posto em cheque: a literatura. Margot é uma artista, sua posição na família e na sociedade é, desde muito tempo, considerada privilegiada, especial, e sua sensibilidade não pode ser como a dos outros, muito pelo contrário, se ela, como escritora, demonstrar qualquer similaridade com sentimentos ordinários, seu status será gravemente abalado e ela poderá perder o domínio desta parte de sua identidade — identidade, diga-se, emprestada, cedida, intransferível, mas ao mesmo tempo volátil, que pode sair de um e “entrar” em outro sem dificuldades, trata-se, portanto, de uma identidade muito diferente da que o ser humano precisa. A respeito dessa identidade geral necessária, o ensaísta Javier Gomá Lanzón observa em seu livro Ganarse La Vida que “al integrarnos en la polis y «politizarnos», nos recibimos como identidades mortales y con ello obtenemos el sello de nuestra individualidad, el que configura nuestro yo más exclusivo”. Os homens não vivem sem uma identidade; nome, endereço, nacionalidade, gosto, todos esses elementos, juntos ou separados, explicam alguma coisa sobre nós, dão pista do que é necessário para relacionar-se conosco, são, em uma palavra, a semente da formação de uma família. Margot como escritora é, para o filho, um mistério, assim como é um mistério para o filho de um pedreiro o artifício de que o pai se vale para construir um muro. Mas, mais grave que isso, Margot como escritora — desde o momento em que sua identidade literária é identidade para os outros — é um mistério para si mesma, assim como é um mistério para o pedreiro a fórmula química do cimento ou as leis da física que mantêm o muro de pé. Já para os demais, para aqueles que vivem no entorno da arte dela, a escritora pode ser um mistério, mas a literatura não.

O personagem de Dick é esse indivíduo que conhece a arte, que teoriza, que explica, e que crê equivocadamente que a arte é um meio infalível para conhecer a qualidade de um artista. (O que me remete novamente ao livro de Javier Gomá, em que ele credita ao Romantismo legar-nos o erro de “comprender al artista según el modelo del genio”). Melhor que se diga: um equívoco assim não é raro nem tão recente. Já no Mito da Caverna é possível adaptar a meditação de Platão ao tema artístico: “Obrigado a fitar o fogo, não desviaria os olhos doloridos para as sombras, que poderia ver sem dor?”, pergunta-se ele pela boca de Sócrates. A ilusão que a arte cria é tão mais potente para as pessoas (justamente por ser uma ilusão artística) que elas a transformam em uma realidade especial, mais: elas exigem que a sombra seja real, que tenha de fato, um dia, existido aquela casa, aquele campo, aquele personagem, aquele nome; e na literatura, o hábito de personificar a coisa artística é potencializado devido a dois aspectos cruciais: o Eu e a autobiografia. Símbolo supremo da poesia, o Eu perdeu de uma vez por todas, já há muito tempo (quiçá desde sua invenção), seu teor ficcional. Basta utilizar num texto o Eu para que o discurso seja invariavelmente pessoal. O que se passa com a autobiografia é ainda mais grave. Aperfeiçoado, sem dúvida, a partir do sucesso do autorretrato, o ato de escrever sobre si mesmo (ou por intermédio da perspectiva de si mesmo) causou um mal irreversível e gigantesco para a literatura, transformando a arte da escritura num concurso de memória. Ganha quem se lembra mais. Isso significa que a autobiografia é uma perda dupla: de qualidade inventiva e de ousadia. A perspectiva geral é a minha própria; a verdade, seja qual for, pode ser facilmente reduzida, uma vez que é muito menos trabalhoso lembrar-me do que Eu vivi do que lembrar-me do que viveu o mundo. A pobreza em “experiências comunicáveis” de Walter Benjamin pode ser vista por um ângulo novo: estariam os soldados do pós-guerra vivendo a fusão entre o Eu poético e a autobiografia e por isso estariam impedidos temporariamente de narrar?

Margot cai nas duas armadilhas. Ela escreve na primeira pessoa e tudo o que faz é considerado autobiográfico. Em outra cena, a irmã Pauline a elogia pela história que ela escreveu “sobre a mamãe”. Margot, sem dar mais detalhes, diz que não era sobre a mamãe. Será que não? O mesmo comenta Dick durante a entrevista, iniciando com “you write so nakedly about family”... E apesar desse “family” não ser um “your own family”, fica claro que ele omite a identificação não porque quer generalizar a família que lê nos textos de Margot, mas porque o “your own” seria, para ele, redundante.

Parece-me, entretanto, contraditório o ponto de vista óbvio de Dick. Tratar o escritor como um indivíduo que fala de si, ou seja, que diz a verdade, que retrata a realidade, é oposto ao que o ser humano é em seu cotidiano. Nós fantasiamos o tempo inteiro, o que é lúdico nos encanta; quando vemos alguém na rua, logo nos imaginamos conversando com esse indivíduo, acariciando, transando, discutindo, brigando etc. Estamos sempre nos negando a servir-nos da realidade como ela é. Então, por que no instante da escritura privilegiaríamos o real? Seria mais uma vez a manifestação da autobiografia? Se sim, tratar-se-ia, portanto, de mais um equívoco duplo: crer na autobiografia e crer que a autobiografia seja uma espécie de verdade. Se seguirmos um caminho assim, a literatura deixa de ser Arte e envereda pela psicologia barata ou, pior, se transforma em objeto de avaliação dessa coisa inútil e lastimável a que chamam psicanálise. Com sua ironia habitual, Marcel Proust insinua uma crença parecida em sua busca do tempo perdido: “Quando se trata de escrever, somos escrupulosos, vemos tudo de muito perto, rechaçamos tudo o que não é verdade. Mas quando só se trata da vida, nos arruinamos, adoecemos, nos destruímos por mentiras”.

Essas reflexões me alertam para uma nova característica da cena. Por que a realidade age nesse filme como um destino no qual todos invariavelmente se encontram, deliberada ou forçosamente? Mesmo nesse momento crucial em que Margot se encontra diante de um pai que desconhecia (ela mesma), ainda assim parece que ela sabia sem saber ou que ela confessava secretamente o que não se pode dizer à luz do dia. Sua “luta sexualizada” com o filho é evidente para o espectador desde o início, assim como sua necessidade de sobrepor-se a ele, de julgá-lo, uma reação talvez de defesa contra o que a feminista Rachel Soihet chamou num ensaio de “violência simbólica”, bastante superior, segundo opinião dela, à violência corrente que conhecemos e imaginamos e muito mais eficaz por tratar-se de uma violência de gênero, ou seja, uma agressão contra uma condição que assumimos desde muito jovens e contra a qual é impossível lutar sem perder no final. Claude é esse gênero oposto, é o pai memorial que Margot acredita equivocadamente combater como a um membro familiar, mas que é, melhor dizendo, um inimigo de gênero antes de qualquer coisa. Assim ao ver-se declarada também Pai, também masculino, Margot ao mesmo tempo reforça e confirma as crenças que tinha até aqui para com o pai, mas também se surpreende com sua ingenuidade artística — é preciso dizer que o torpor do personagem passa pelo campo da arte revista, reavaliada; ali Margot experimenta, talvez, a mesma sensação do escritor que julga ter lançado seu melhor trabalho, mas que é ridicularizado e repudiado pelos críticos e que por isso passa a duvidar da qualidade do que escreveu. Mais uma vez a realidade é fatal e mais pesada, a vida vem afirmar e destruir o talento: do mesmo modo como Margot foi hábil para fingir por tanto tempo não ser o pai das histórias que vinha escrevendo, também o Pai que ela odiava — e que ela julgava conhecido — por tempo igual ou até maior se camuflava em outra parte, se desvanecia, sendo muito mais hábil que ela. O gênero masculino temido, no final das contas, não era o do filho Claude, de quem ela tentava escapar, nem o do marido Jim, de quem ela pretendia divorciar-se, e nem o de homem algum. O gênero inimigo era neutro como a arte, mas ainda assim bastante perigoso.

Não é fácil uma ponderação crítica clara e sucinta fora da teoria. No cinema, isso é praticamente impossível, mesmo em documentários ou nos chamados filmes políticos — seja lá que diabos isso signifique. Além de diretor, Baumbach é roteirista deste filme. Talvez ele jamais tivesse oportunidade de dirigir uma cena tão cruel e tão desagradável se não a tivesse escrito ele mesmo. E com certeza ele nunca pensaria uma cena com semelhante grau de agudeza se não fosse filho de escritores. Nós, ocidentais, cremos que Escrever seja um ótimo caminho rumo à intelectualidade; não erramos ao pensar dessa forma, apesar da enorme contradição de nossos antepassados gregos que desprezavam a literatura e ainda assim foram os geradores de toda a intelectualidade que o mundo reverencia hoje.

Margot ser escritora no filme de Baumbach é um sintoma de nossa aproximação intelectual de certo ideal de conhecimento — o que sempre se torna vulgarmente “autoconhecimento”, como dito parágrafos acima. Nesta cena de Margot e o Casamento, o Eu literário cai de nível para tornar-se um eu real, mas sem cor. A estratégia vitoriosa de Dick clareou a autora por intermédio do texto e clareou o texto por intermédio da literatura, e não se pode dizer que tenha sido um exercício atípico de crítico, a verdade é que o mito literário funciona como nenhum outro. Nunca se viu alguém estudar a pintura de uma paisagem para tentar com isso estabelecer intelectualmente a importância artística do lugar retratado. No oposto extremo multiplicam-se os trabalhos sobre livros que se passam neste ou naquele país e que se tornaram “documentos” sensíveis da vida, do pensamento e da importância da comunidade descrita. Cabe perguntar: em que momento o intelecto rejeitou o pictórico em favor da tipografia?

A pergunta de Margot não é essa. A única reação que lhe sobra diante da crueldade do amante é balbuciar num tom quase inaudível “por que você deduz que nós todos tiramos coisas da vida?”. Ela, apesar de nervosa e muito constrangida, está certa. De fato, para quem ainda não sabe, nós (os escritores), confirmando as palavras de Giorgio Agamben, “escrevemos para nos tornarmos impessoais”. E isso significa somente uma coisa: nós (escritores e artistas) repudiamos a vida.

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Autor: Sodine Üe


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