Insigne Atempelia do Budismo



Siddhrtha Gautama, o


O PRÊMIO NOBEL DE ECONOMIA de 1998 Amartya Sen escreve em sua talvez mais célebre obra, Desenvolvimento como liberdade: “Aqui é onde a diversidade dos sistemas de valores asiáticos – que incorpora mas transcende a diversidade regional – torna-se completamente central. Um exemplo óbvio é o papel do Budismo como forma de pensamento. Na tradição budista, grande importância é atribuída à liberdade, e parte da prévia teorização indiana a que se relacionam os pensamentos budistas tem muito espaço para desejo e livre arbítrio. Nobreza de conduta deve ser atingida em liberdade, e mesmo ideias de liberação (como moksha), têm essa característica.”

Não obstante o esforço de seus adeptos no intuito de difundi-lo e que haja grande avanço no sentido em questão, o Budismo permanece, ainda nos últimos tempos, um tanto quanto ofuscado em países majoritariamente cristãos/católicos, como acontece na América Latina. Suas perspectivas mantêm-se acesas pelos asseclas do que se entende por religião por uns, filosofia por outros, e ambos por um considerável número, à parte os primeiros arrolados. Evidencia-se, outrossim, enorme atrelamento dos princípios aos imigrantes japoneses que, no Brasil, por exemplo, há pouco mais de um centenário instalaram-se no país, fato que vale como um entre demais fatores fundamentais para ainda a germinação ou, como poder-se-ia também colocar, engatinhamento do Budismo nestas terras, haja vista que no processo histórico o tempo determina a eficácia da propagação de ideologias, e.g. a adoção do cristianismo pelo Império Romano após plurais anos de acossa.

Ainda na obra de Sen nota-se a exposição do Budismo como filosofia, e não religião. A discussão, todavia privada de derradeiras ilações até mesmo na contemporaneidade, nunca foi proposta pelo Buda. O Buda, ao contrário de demais precursores “religiosos” (as aspas redundam a etimologia em xeque), jamais buscou, ao longo de seu ideário, uma demarcação restrita ao que diz respeito da definição do pensamento. Em contrapartida, pensava oferecê-lo como ouvre-têtes, o que por si só definiria o Budismo como filosofia. O aspecto religioso, veramente, adviria de algumas de suas feições dogmáticas como seu panorama da vida espiritual, similar ao kardecismo que nasceria apenas na década de 1950, na França.

Há, contudo, permeando as convicções do Budismo como epistemologia prática, a solidez de uma certa desafetação espiritual que contrapõe-se a outras religiões, que o elevaria a um patamar distinto, um tanto mais pragmático que as doutrinas as quais se usa classificar como religiosas. Enfoca-se de forma categória a ação e reação como unidade do poder, a vontade como força. O karma, talvez, confunda-se com predestinação atroz, nivelando-o aos moldes do calvinismo, por exemplo; no entanto, aprofundando-se no estudo de seus alicerces e perscrutando mais a fundo seus rudimentos, nota-se que a visão do karma é antes a expressão da 3ª lei de Newton em sua prática cotidiana. As atitudes humanas desencadeiam respostas, ecoando pelo espaço-tempo e modificando o futuro dos demais seres e do seu próprio à sua passagem.

A fidedignidade atribuída à reencarnação, da mesma maneira, não parece pespegada com a mesma rispidez com que empurram-na goela abaixo algumas religiões. Contrariamente, o Budismo vê-lo como processo universal da natureza, como que uma Lei de Lavoisier ampliada a escalas magnas, em que não há a destruição do que chamaríamos, em nossa língua e para adaptar ao nosso meio cultural, da alma, espírito, sopro ou quaisquer outros termos para a chama viva que pulsa em cada e todo ser.

Não há razão suficientemente clara para espanto quando se ouve dizer que extenso número de cientistas são budistas, como recentemente argumentado num artigo de uma revista popular. Na célebre impugnação ciência versus religião, habituou-se pensar a primeira como inimiga da segunda e vice-versa, de modo que o ateísmo seguiria latente no pensar científico, quereríamos ou não. De maneira adversa, aliás, muitos destes cientistas adeptos do Budismo proclamam-se ao mesmo tempo ateus, o que pode causar naturalmente enleio na mente de pessoas comuns de qualquer nível mais ordinário de leiguice.

Pode-se, sim, afirmar que o budismo é uma “religião” ateia, o que também é um dos motivos da contestação da atribuição que lhe é feita, de que é religioso, o seu cunho. A figura do Deus, o Deus cristão, a personalidade, o ícone, simplesmente não existe na filosofia budista. Antes deuses são todos os seres que conseguem atingir a felicidade, id est, nós outros mesmos, que traçamos o nosso próprio caminho ou destino por meio de nossas gesturas, de nossas posições e comportamentos, que não nos conduzirão a punições ou gozos eternos mas que meramente nos farão detentores das consequências de si, boas ou más, iluminadas ou obscuras. De maneira que não há inexistência de um controle do universo: que sim há, apenas que as potências que geram o mover (as nossas) antes são as controladoras dos universos, o universo de cada um de nós, que é um só, mas que existe para cada caminho.

Faz-se inúmeras vezes confuso o pensamento, principalmente para os que já de nascença cabem em ideologias de pensamento menor escalado em argumentos filosóficos, como ocorre no cristianismo. O cristianismo, exemplo aqui usado por ser, talvez, de compreensão mais clara por sua hegemonia na América, cerceia as “pretensões” filosóficas de seus seguidores: o que não representa num primeiro momento uma acusação mordaz, apenas característica da instituição de seus valores, o que indubitavelmente ocorre nas demais religiões. Privada de quaisquer “escapes” que se direcionem para a filosofia, a cristandade nasce, vive e morre inliberta, ressaltando-se que o destaque é para o aspecto que se quer demonstrar. Já o Budismo, contrariamente, incentiva e oferece suporte necessário para a indagação individual de si como ser, como vida, como parte do todo. Instiga-se o questionamento, a busca – põe-se a felicidade como objeto a se alcançar, porém paulatinamente, de maneira a inserir esta gana inata ao processo de conhecer a autoconhecer, de crítica a si e ao meio, de mudança, de ação. A palavra-chave, saiba-se, é ação: a ação é o elemento que produz a reação, o plantio leva à colheita, de maneira diferente do pensar religioso, que também vê, ainda no exemplo cristão, a descida ao inferno baixo o crivo divino como reacionário do pecado. Entretanto a discrepância é gritante: a pena eterna é, direta ou indiretamente, infligida por Deus, cuja figura não aparece no pensamento budista, como supraexplicado, e ademais a eternidade do castigo suprime a oportunidade de novas ações que desencadeiem, em última instância, novas reações cuja probabilidade de culminarem no bem não é, de maneira nenhuma, extinta. Não cometendo os pecados do anacronismo e anatopismo, vale-se o Budismo ainda do lavosierismo em que nada se cria, nada se perde, tudo se transforma. Os estagnários céus e inferno não lhe cabem, desta maneira, absolutamente.

E é justamente esta saliência da ação como forma de poder e determinação budista que lhe faz resplandecer sua insigne atempelia. Entenda-se atempelia aqui como designação servida do grego para a “não-preguiça” do Budismo, o que, como complemento à discussão de sua funcionalidade como logradouro do pensamento científico, distingue e ressalta a procura da vontade do saber, o requerimento da espera do receber, a aplicação prática do estudo sistemático de teorias inconclusivas. Em termos práticos, as rezas e orações e.g., apesar de sua eficácia e assunção como elemento concreto da modificação do meio, não eclipsam uma consulta médica: obviamente é apenas um entre vários casos que se poderiam tomar como modelo.

O que se quer demonstrar é que, num esforço de retirar a carga pejorativa do termo “preguiça”, o Budismo talvez não seja por muitos expertos classificado como religião por não se apresentar preguiçoso como são as religiões. A religião por si só, como reunião ou mais fielmente “religação” (do latim religare), consiste basicamente nesta espera pela graça, pela redenção, pelo retorno, ao passo que o budismo não aguarda a volta, mas antes aconselha a própria ida. As ações assumem suas próprias trajetórias uma vez produzidas, dimandando fatos que as concluem ou de que delas se deduzem, de modo que o agir é mais importante que pensar.

De maneira que, uma vez que não há outro meio de melhor clarificar as exposições do que os exemplos, contraponhamo-lo uma vez mais em comparação com o cristianismo, a mais palpável das religiões e com a qual tem mais contato o povo americano: o arrependimento é de positiva suficiência para a redenção e alcance da felicidade (o céu, o paraíso). Para o Budismo, o arrependimento já por sua vez é consequência de ações desvirtuosas, e que provavelmente já advem paralelo a uma série de outras consequências práticas – o que não poderia definir o arrependimento como virtude, e sim como autoproteção, em que se é condicionado a achar “errado” o que se faz a partir de certo momento apenas pela dor que isto causa posteriormente. Antes, o que contam são as ações: o arrependimento nada vale, o que vale é a forma como isso pode vir a modificar as suas ações na posteridade, e estas sim, em última instância, modificam o ser e o meio. O errado não é o que se nos disse que assim está, mas aquilo que não produz virtude, porque por sua vez a não-produção da virtude inibe o alcance da felicidade.

A liberdade, como coloca Sen (fá-lo no sentido econômico), é realmente estrutura de suma crucialidade no Budismo. A liberdade das escolhas e dos pensamentos é traço marcante no que diz respeito à maneira pessoal de enfrentar as adversidades que se encontram no universo (que não passam de um subconjunto de suas ações, já que, como postulado, o presente é consequência de ações prévias e o futuro é a consequência das ações presentes). Esta é uma diferença básica para o Calvinismo, religião que respaldou a burguesia inglesa durante a duração e o próprio pós-Revolução Industrial. A predestinação até poderia ser alterada, com o trabalho constante do proletário, uma vez que sua inabastança era o sinal de que seu infortúnio futuro era já fato consumado; de qualquer forma, havia uma trajetória já previamente encaminhada para cada um dos seres, fosse reta ou torta. O karma ou destino budista não é norma pré-estabelecida, muito menos por um ser supremo: é dizer, a única liberdade que inexiste é a de fugir do que se escolhe, isso porque já houve liberdade antes, para a escolha, tenha sido nesta encarnação ou nas anteriores. O que não implica resignação ante à adversidade, muito pelo contrário: o aprendizado e amadurecimento. Vê-se a vida não como um teste; antes veem-se as vidas como reflexos umas das outras através da vereda cega que se segue. A não-compreensão não é estimulada face à proibição da gana de saber por meio da designação de tal e qual elemento como “mistério de Deus”, que se lhe veda ao homem examinar.

O conceito de liberdade firma-se numa amplitude que com não pequena frequência assusta, já que, ao menos em teoria, não se restringe com ou em nenhum ponto, ao passo que os afazeres cotidianos (o estudo, o trabalho), sim. Ainda assim, a felicidade só é alcançável quando se é livre: paradoxalmente, a liberdade suavemente compele à felicidade e à virtude os seres, pois lhes são proveitosas naturalmente. Sendo a ação o objeto de principal enfoque do Budismo, poder-se-ia colocar da seguinte maneira: abolidos os conceitos inicias de bom e mau, certo e errado, há a liberdade da escolha (na prática, a possibilidade de até mesmo se escolher a não-liberdade, porque até mesmo esta escolha está encerrada na amplitude da liberdade). Bom é aquilo que traz a virtude e, em última instância, a felicidade. Mas pode-se escolher o que é mau, assim? Pode-se, uma vez assumidas as consequências desta escolha no futuro. É mau aquilo que priva novas escolhas posteriores. Cada porta abre outras: escolher a que tranca é uma má escolha, e não porque não haja liberdade para escolhê-la, mas sim porque o pelo senso deduz-se que não se poderá escolher outras depois, que por sua vez levarão a outras, e assim sucessivamente. A liberdade não conduz à felicidade porque não se pode escolher a infelicidade e, assim, aquela negar a si própria: mas porque a felicidade não é estagnária, haja vista que não de apenas uma fonte emana a felicidade, mas de toda fonte que possibilite aos seres novas fontes.

O que é ser livre? Numa penitenciária encontram-se os “presos” e o que vivem do lado de fora são os “livres”. Se liberdade é fazer o que se quer, pode-se um que está de fora entrar e trancar-se? Não, pois deve antes ter cometido um crime, passar por um julgamento, entre outros processos que envolvem a condenação. Eis aí, então, já algo que não se pode fazer, então ou não se é livre ou a liberdade não é se fazer o que se quer. Ser livre é tomar as próprias decisões? Partindo desse princípio, crianças não são livres, porque tomamos as decisões por elas; destarte, também nenhum de nós é livre, já que não passamos de crianças crescidas e nossas decisões são tomadas de acordo com o que experimentamos (experimentações que, de crianças, não tivemos a liberdade de escolher). À parte, ainda, demais fatores como os paradigmas sociais, por exemplo, limitam nossa liberdade: o“l'enfer c'est les autres” de Sartre.

Exatamente por essa inconveniente (e amedrontadora) abstração da liberdade como conceito e aplicação, podemos dividir a liberdade em duas expressões: a liberdade categórica (utópica, teórica, poucamente absolutamente não plausível no contexto prático) e a liberdade contingente (ou básica, que permita esta ou aquela escolhas mais imprescindíveis); ressalte-se porém a unidade entre elas, já que a divisão faz-se apenas para fins ilustrativos. Sen em seu livro fala sobre “liberdade substancial”, mas analisemos da seguinte maneira:

Partamos do princípio de que a liberdade categória é adversária da escravidão. O que não é escravo, é livre e vice-versa. A escravidão, por sua vez, é a limitação. O que limita é imposto, o que se impõe é hegemonia do impositor sobre o outro, o que caracteriza o subjugo, ergo, escravidão. Com a não-imposição, desta maneira, surge a liberdade. Pode-se pensar, daí, que a liberdade surge de um contexto anárquico, em que o senso dirige, e não o Estado ou as instituições, um território ou país, por exemplo. Deparamo-nos, entrementes, com dois empecilhos: o primeiro é que não haver governo é um fundamento do anarquismo, porém existe de maneira pungente a proibição expressa da criação de um governo, o que limita a liberdade do povo no sentido de que este não pode escolher ser governado. E o segundo é o fato de o senso não ser, por si só, a expressão da liberdade. O neuropsiquiatra francês Jean-Didier Vicent escreveu certa vez que “o ser humano só se constrói com a ajuda dos outros”. De criança, constrói-se o senso, a partir de uma matéria-prima vinda do meio: sociedade. A matéria-prima não foi escolhida pela criança, portanto ela não foi livre o suficiente para poder montar seu próprio senso. Se não há escapatória disso, uma vez que já é algo vindo da nascença, vê-se sem demora que não se faz possível o alcance desta liberdade categórica num contexto prático. Queda-se, antes, apenas nos livros de histórias.

A liberdade contingente é a parte que cabe individualmente a cada ser de apostar em suas escolhas para modificar os fins das coisas e assumir consequências que lhes sejam proveitosas, ou seja, que lhes possibilitem, por sua vez, a possibilidade de mais escolhas, quod erat demonstrandum. À medida que a liberdade categória permitiria a uma criança escolher ter nascido numa família de grande poder aquisito, a liberdade contingente permitiria à criança que não pôde escolhê-lo escolher fazer o poder aquisitivo de sua família crescer, já numa idade um tanto mais avançada. Enquanto a liberdade categórica asseguraria o direito de alguém escolher não ter de trabalhar, a liberdade contingente estabeleceria o direito desse alguém escolher um trabalho não tão pesado, e assim por diante. A liberdade contingente seria a quota, o quinhão que nos cabe, o feixe de liberdade sobre o qual projetamos uma outra, íntegra, jamais alcançada.

A liberdade aplicada ao moshka (ciclo de renascimento dos seres a que se refere Sen) funciona, grosso modo, como contingente durante o processo encarnatório e categórico durante o desencarnatório. Usa-se aqui os termos “encarnatório”, “encarnação” e “reencarnação” de maneira a não dificultar a compreensão, embora muitos guias budistas rejeitem-no pela associação habitual a doutrinas como a espírita, da qual, embora haja a similaridade do princípio, difere no que diz respeito à identidade que permanece entre uma vida e outra. A identidade do “espírito” seria, de alguma maneira, distinta a ponto de permanecer como conjunto através do ciclo de renascimentos, enquanto o pensamento budista aforisma conceitos de impermanência e interdependência que refutam essa ideia. O individual praticamente não existe porque não haveria a trajetória evolutiva do espírito como apregoa a escola espírita francesa: em toda vida haverá limitações: a impermanência não deixaria com que essa personalidade inata ao espírito restasse pela eternidade; em contrapartida, o acúmulo de virtudes traria mais virtudes posteriormente, ao passo que o acúmulo de invirtudes traria mais invirtudes posteriormente, tudo numa grande trama de dependência, de causa e efeito, todos os caminhos alteráveis pela gana da potência de cada ser. A similaridade com o espiritismo supracitada consistiria apenas em seu princípio mais rudimentar, e na Lei da Atração, que popularizou-se com fenômenos da literatura recente, já de maneira totalmente desvirtuada de seu ideário original, minimizando a força de mente para modificar as consequências através dos atos e pensamentos num esforço para, literalmente, ganhar dinheiro.

Uma frase muito comum entre os budistas é: “O passado já se foi, o futuro ainda não veio, vivendo no presente, sabemos que este é o melhor momento.” O acúmulo das virtudes não se daria para o futuro, como na escola espírita, em que a melhoria do ser na presente encarnação acarretaria melhores condições na próxima. Obviamente, segundo o Budismo, o eco das ações dos seres não desaparece: o ser que alcançou com esforço suas virtudes ouvirá o eco das mesmas no longo prazo. Mas a busca pela felicidade não é, exemplificando de maneira visual, agarrar a corda que ela oferece na ponta do penhasco e subir por ela até o topo: pelo contrário, antes seria mais acordado à filosofia a imagem dos seres na beira do penhasco puxando pela corda a felicidade. Enquanto no primeiro caso a felicidade parece estar ainda mais longe, no segundo ela parece estar mais próxima porque já é nossa, todo o trabalho que temos é o de aproximarmo-nos ainda mais dela, até tocá-la. Trazer a felicidade até o presente momento através das ações: este é o princípio básico da atempelia budista.

Também é o Budismo atempélico por destacar de maneira parca o passado e o futuro, valorizando sobretudo em vez disso o presente. A pouca importância ao passado deve-se ao fato de que o que foi feito feito está: os ecos, as consequências são notáveis durante o presente, mas não o determinam rispidamente; o futuro, também, é especulação: não se pratica o bem, por exemplo, pensando em recompensas futuras. Ao contrário da caderneta de poupança ou ação na bolsa de valores que representam estas promesas nas religiões, o Budismo preocupa-se com a consolidação do agora como fonte de felicidade e harmonia dos sistemas, externos e internos (externos no meio e internos entre os três componentes do homem: corpo, psiquê e espírito, quaisquer sejam os termos que se lhes atribuam as traduções de cada idioma e/ou corrente filosófica de raiz budista). Sendo assim, a ação é o meio pelo qual se intermedeiam a potência ou vontade de poder e a solidez do poder, a concretização dos resultados.

As próprias oração e meditação no Budismo significam muito mais harmonia e saúde no âmbito biológico (sanidade de corpo e mente) do que as rezas de outras religiões. O alcance de outros estados de mente ou espírito (dão-se sempre transtornos no âmbito etimológico graças à insuficiência de traduções precisas, que por sua vez decorrem da antiguidade do pensamento e discrepâncias culturais) é antes remarcado como princípio natural de harmonia do que uma forma de conexão com divindades. E é justamente essa racionalização do místico que faz do Budismo um lar confortável para o conhecimento científico.

Anacronicamente, uma vez mais, classificar-se-o-ia escola ou doutrina heraclitista, tomando como base o célebre pensamento do pré-socrático Heráclito de Éfeso, de que não se entra duas vezes no mesmo rio porque o rio não é o mesmo e aquele que entrou tampouco. Não se confunda impermanência aqui com inconstância, dado que a primeira não inibe reações anteriores, apenas implica o fato de a transformação através do universo ser perpétua, enquanto a inconstância abracaria também os próprios ciclos de ação-reação, o que poderia neles sem dificuldade gerar quebras entre ações constantes e reações inconstantes e vice-versa. A ação produziria, no Budismo, reações diretas e indiretas, constantes em substância, mas impermanentes em forma: mais uma vez, vale-se do nada se cria, nada se perde, tudo se transforma. A transformação é a própria harmonia universal, não como lei, uma vez que para a lei precisa-se do legislador, mas como própria essência do todo, da complexidade.

A liberdade é, destarte, fundamento intrínseco à condição de atempelia presente no conjunto da sofia budista. A liberdade de ação põe-na sobre o altar de destaque, fundamental para a consolidação da vontade de potência do ser, servindo-lhe de força-motriz. Mas a liberdade, sendo a liberdade contingente, como supracitado, é sopitada pela simplicidade: maior gana de aprender e menor arrogância de demonstrar, o que é um ponto positivo no que diz respeito à dulcíssima relação do Budismo com a ciência.

Léon Denis, filósofo francês, faz um estudo sobre a evolução do pensamento paralelo ao desenvolvimento das religiões ao decurso de várias obras. Propagador do espiritismo, via na religião um instrumento que tem “contribuído de forma determinante para a educação humana; tem colocado um freio às paixões violentas, à barbárie das idades do ferro e gravado fortemente a noção moral no fundo da consciência”, mas cujo erro “principalmente o católico, não pertence à ordem estética, que não se engana: ele é de ordem lógica. Consiste em encerrar a religião em dogmas estreitos, em formas rígidas. Uma vez que o movimento constitui a própria lei da vida, o Catolicismo imobilizou o pensamento, em vez de provocar sua expansão”(1).

Claramente a religião, segundo ele, teria assumido papel crucial no desenvolvimento do pensamento humano, apenas não mais caberia uma vez que os mitos já se desmitificariam, os misticismos se desmistificariam, as lendas se deslegendariam, e o filtro do tempo faria com que a razão ganhasse mais e mais forma e conteúdo na escala evolutiva.

 

No que concerne a religião, o Budismo poderia ter lá considerado seu cunho religioso, uma vez que, não se escapa de tal assertação, estriba dogmas, ponto indispensável das religiões. Um dogma nada mais é que uma máxima indiscutível: as opiniões sobre espírito, por exemplo, poder-se-iam, a priori, tomar como dogma. Num segundo momento, contudo, um exame de maior cautela demonstra que até mesmo os chamados “dogmas” do Budismo não são comparáveis em gênero ou grau com o das demais religiões. Uma máxima não é simplesmente indiscutível: é aceita pelo senso, acordada pela coletividade, e no entanto não se estabelece sobre pedestais de vidro os quais não se toca pela inviabilidade do conhecer os mistérios da divindade. Em contrapartida, à proporção em que a razão aumenta, e a vontade da potência do saber da mesma forma, mais avançado é o grau em que se encontram os elementos humanos inapalpáveis (psiquê e espírito). O conceito de espírito ou sopro, mesmo, de uma essência humana vinculada ao corpo mas que possui características um tanto quanto independentes, já se estuda hoje em dia por alguns ramos da ciência. É dizer, não é uma hipótese totalmente descartada, de modo que por quanto tempo duraria este “dogma” até que a ciência o provasse?

 

Deístas de um nível de fanatismo dois dedos mais elevado poderiam maximizar este não-descarte para a escala da questão ateia. Ao mesmo tempo, afirmariam, que não se prova a existência de Deus, não se prova também sua não-existência. O fato é que o ateísmo não têm, em substância, a pretensão de afirmar que Deus não existe, mas que não está provada a existência de Deus, justamente. O ônus da prova, por experimento e lógica, recai todas a vezes sobre o propositor: se proponho que as fadas existem, e.g., para reafirmar minha teoria devo apresentá-las, estudá-las, etc., e não simplesmente apoiar-me no fato de que ninguém pode provar que não existem: até por uma matéria de logística, já que varrer o mundo à procura de fadas é trabalhoso, e muito embora ninguém o tenha tentado antes para que o saibamos, custaria uma quantia razoável de dinheiro que nem mesmo o pesquisador de ideias mais toscas propor-se-ia a dispender.

 

Já as convicções budistas, embora sejam convictas como o próprio termo coloca, não vedam o questionamento (simples, já que a simplicidade é um dos preceitos para o aprendizado, que leva à virtude e à felicidade), o que dá margem a inúmeros estudos budistas, sobre a filosofia do caráter, da personalidade e da existência de modo geral. Usa-se aqui o termo simplicidade como humildade, mas a fim de que não se confunda com a humildade hipócrita de outras religiões, em que se glorifica, através do merecedor, um outro merecedor desassociado do esforço, como uma divindade. O mérito não é condenável quando simples: as ações boas do ser podem e devem ser remarcadas por ele, até porque podem servir de exemplo para outros que queiram atingir o mesmo grau de elevação, e não se corre o perigo de uma idolatria ou veneração, já que todos os seres, sem restrição, de maneira igual podem atingir o estado do Buda. Um exemplo disso é o não-culto de imagens na filosofia primordial budista, desaconselhado pelo próprio Buda, antes a fé e a perseverança, já que muito embora haja símbolos, os símbolos dos mantras, da energia, do universo, as mandalas, entre outros, cujo único propósito é salientar a unidade universal do moshka.

 

E esse incentivo à busca do saber, do agir e do cooperar é o que caracteriza, em suma, a não-preguiça que permeia os traços do Budismo, seja como filosofia ou religião, ou outras classificações quaisquer que se queira tomar. Ao próprio Cristo se atribui biblicamente uma mensagem cuja essência assemelha-se ao poder da ação, no Evangelho de Mateus, capítulo 21, versos 28 a 32: “Mas que vos parece? Um homem tinha dois filhos, e, chegando-se ao primeiro, disse: Filho, vai trabalhar hoje na vinha. Ele respondeu: Sim, senhor; mas não foi. Chegando-se, então, ao segundo, falou-lhe de igual modo; respondeu-lhe este: Não quero, mas depois, arrependendo-se, foi. Qual dos dois fez a vontade do pai? Disseram eles: O segundo. Disse-lhes Jesus: Em verdade vos digo que os publicanos e as meretrizes entram adiante de vós no reino de Deus. Pois João veio a vós no caminho da justiça, e não lhe deste crédito, mas os publicanos e as meretrizes lho deram; vós, porém, vendo isto, nem depois vos arrependestes para crerdes nele.” Da mesma forma que esta mensagem cristã, o Budismo prega que o que realmente importa são os atos: antes o trabalho não querido do que o ócio querido, antes a produção do que a neutralidade, antes o progressivo do que o estacionário – mais ainda: antes o retrógrado do que o estacionário, porque do retrógrado tiram-se lições, do estacionário, não. Em outras palavras, antes fazer algo de desvirtuoso (não obstante, evidentemente, seja desaconselhável pelas consequências que acarretará na posteridade) do que não fazer absolutamente nada, do qual não se poderá também aprender nada depois. Há portas que levam a cômodos ruins, mas que se abram desde que haja outras portas depois. O que não se pode é não abrir porta nenhuma e permanecer apático, impassível, estoico, no corredor da casa. Não agir para compactuar com as transformações não fará com que elas se afetem, se abrandem ou mesmo inexistam.

 

 

 

1DENIS, Léon. O problema do ser, do destino e da dor. França, 1922.


Autor: Victor WacłAwek


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