A Constituição Federal Brasileira de 1988 e o Sistema Processual Penal Adotado
A CONSTITUIÇÃO FEDERAL BRASILEIRA DE 1988 E O SISTEMA PROCESSUAL PENAL ADOTADO.
Introdução - Considerações sobre nosso sistema de persecução penal e suas mazelas:
Muito se discute atualmente sobre o sistema processual penal que é adotado por nosso ordenamento jurídico.
Na doutrina existem posições que sustentam que o sistema adotado é o inquisitorial, pois em diversos dispositivos legais do Código de Processo Penal, o juiz atua como um verdadeiro juiz inquisidor.
Os defensores deste sistema, dizem que o inquérito policial, por ser secreto - apesar de que ao advogado é garantido amplo acesso aos autos, conforme estabelecido no Estatuto da OAB e na súmula vinculante número 14 do Supremo Tribunal Federal – e por não permitir o contraditório e a ampla defesa, demonstra que o legislador dotou nosso sistema de persecução penal com caracteres de um sistema inquisitivo.
Outra corrente, mais moderada, defende que nosso sistema é um sistema hibrido ou misto, pois mescla disposições que são oriundas do sistema acusatório e alguns resquícios do sistema inquisitório, principalmente no Código de Processo Penal, onde à época se usou como base as disposições do código de processo penal italiano de Rocco.
A Doutrina majoritária, diz que nosso sistema é o acusatório, pois a constituição federal expressamente separou as funções de acusação, defesa e julgamento. Que toda a sistemática da nossa Carta Magna, claramente aponta para um sistema acusatório.
Por conta destas três correntes uma grande discussão tem tomado conta da doutrina e as correntes contam com expoentes de grande peso do Processo Penal, cada qual com seus argumentos; e a bem da verdade, nenhum com total razão.
O objetivo deste breve trabalho é demonstrar sucintamente os argumentos defendidos pelas correntes doutrinárias e ao fim fazer uma breve conclusão sobre o assunto.
Importante também ressaltar que tendo em vista a recente discussão sobre o projeto do novo Código de Processo Penal, que atualmente está em trâmite no congresso nacional, é de extrema importância que nosso direito penal e processual penal seja revisto.
Essa revisão deve eliminar resquícios da época ditatorial, bem como adequar nosso sistema de persecução penal aos ditames de nossa Constituição Federal de 1988 e a moderna teoria da intervenção penal mínima e do garantismo penal. O direito penal deve ser a Ultima Ratio da sociedade.
Não podemos mais ficar alheios aos problemas do nosso processo penal e o assunto tem que ser amplamente discutido pela sociedade, sem, entretanto, esquecermos que nosso sistema prisional é precário e nem de longe pode ser considerado satisfatório em um regime dito democrático.
Sistema Acusatório:
O sistema acusatório surgiu na Grécia antiga entre os atenienses e chegou posteriormente aos romanos, quando do surgimento da república.
É o sistema próprio dos regimes democráticos. Nele há a absoluta distinção entre os órgãos de acusação, defesa e julgamento. Cada um deles deve atuar apenas em suas funções, não podendo haver interferência entre eles.
As funções de acusar, defender e julgar devem ser de responsabilidade de pessoas diferentes, de modo a garantir a imparcialidade, o contraditório e a ampla defesa em sua máxima extensão.
À defesa é garantido o direito de se manifestar após a acusação e os atos processuais são públicos, em regra, salvo exceções previstas na lei.
A produção das provas cabe à acusação e a defesa, não devendo o julgador atuar nessa área. Este, por sua vez, possui como atribuição julgar através do livre convencimento motivado de suas decisões, sendo vedada a prolatação de sentenças que careçam de fundamentação jurídica.
A fundamentação da sentença deve se pautar nos elementos probatórios produzidos sob o pálio do contraditório, sob pena de nulidade da decisão.
É garantida a isonomia processual entre a acusação e a defesa, tendo elas uma posição de equilíbrio processual pleno e paridade de armas processuais.
Em regra, o acusado responde ao processo em liberdade, pois ele possui a garantia de defesa plena e técnica e de se manifestar sobre todos os elementos de prova que constem nos autos, bem como acesso a todos os elementos que foram apurados na fase investigatória.
É vedada a adoção de provas ilícitas e das provas derivadas destas e é assegurado o devido processo legal em toda a sua extensão.
Segundo Tourinho Filho1, no processo acusatório são traços profundamente marcantes:
a) o contraditório, como garantia político-jurídica do cidadão;
b) as partes acusadora e acusada encontram-se no mesmo pé de igualdade;
c) o processo é público;
d) as funções de acusar defender e julgar são atribuídas a pessoas distintas e não é dado ao juiz iniciar o processo sem provocação da parte;
e) o processo pode ser oral ou escrito;
f) existe igualdade de direitos e obrigações entre as partes;
g) a iniciativa do processo cabe à parte acusadora que poderá ser o ofendido, seu representante legal, qualquer cidadão do povo ou o Ministério Público.
A doutrina majoritária e os tribunais superiores afirmam ser este o sistema adotado pelo Brasil, em especial após a promulgação da Carta Magna de 1988, onde as funções de acusação foram garantidas ao ministério público; a defesa por um advogado ou defensor público foi assegurada a todos os litigantes; e afirmou-se que o julgamento será sempre feito por um juiz natural.
Sistema Inquisitivo:
O sistema inquisitivo é típico das ditaduras, das monarquias absolutistas e, principalmente, do direito Canônico, que foi onde se desenvolveu de forma plena.
Os tribunais realizados pela igreja católica, chamados de tribunais da Santa Inquisição, eram tribunais com todas as características desse sistema medieval.
Este sistema foi adotado no nosso país juntamente com o sistema das provas legais ou tarifadas, perdurando até a edição do código criminal de 1832, que foi inspirado por ideais iluministas que floresciam na Europa.
As provas possuíam um valor pré-definido pela lei e era admitida a tortura e outros meios desumanos e cruéis para obtenção da confissão do acusado, salvo em nobres, cavaleiros, doutores e eclesiásticos.
As funções de julgador, acusador, defensor são entregues, via de regra, à mesma pessoa, de modo que o julgamento é totalmente parcial. O acusado é tratado como objeto do processo e a confissão é considerada “a rainha das provas”.
Não há presunção de inocência e não há garantia de defesa técnica, ou melhor, não há garantia sequer de defesa neste sistema.
Também não há publicidade nos atos processuais nem direito pleno ao contraditório e à ampla defesa.
Parte-se do principio de que se o acusado está nessa situação é porque pode ser culpado e, se pode ser culpado, é porque fez algo errado. Caso seja inocente, não precisará de ninguém para defendê-lo.
Não há divisão entre os órgãos e as funções de acusar, defender e julgar, podendo o magistrado atuar sempre de ofício. O acusado praticamente não possui garantias no decorrer do processo e justamente por isso ele é secreto.
Não existe paridade de armas processuais, sendo a defesa do réu, quando permitida, bastante restrita.
Também não há presunção de inocência e, em decorrência disso, o acusado pode permanecer durante todo o tempo que durar o processo preso, sem necessitar de maiores explicações ou justificações para tanto.
Nele presume-se a culpa do acusado. É o extremo oposto do sistema acusatório.
Segundo Tourinho Filho2, “este processo é a antítese do sistema acusatório. Não há o contraditório, e por isso mesmo inexistem as regras da igualdade e liberdade processuais. As funções de acusar, defender e julgar encontram-se enfeixadas numa só pessoa: o juiz. É ele quem inicia, de oficio, o processo, quem recolhe as provas e, a final, prefere a decisão, podendo, no curso do processo, submeter o acusado a torturas, a fim de obter a rainha das provas: a confissão”.
“O processo é secreto e escrito. Nenhuma garantia se confere ao acusado. Este aparece em uma situação de tal subordinação que se transfigura e se transmuda em objeto do processo e não em sujeito de direito”.
Trata-se de um processo nos moldes da obra prima do escritor Franz Kafka, o livro “O Processo”, onde o personagem Josef K. sofre todas as mazelas de um processo nos moldes do sistema inquisitório.
Sistema Misto:
O sistema misto mescla os sistemas acusatório e inquisitório.
Ao mesmo tempo em que todas as garantias do acusado são asseguradas, em especial no tocante ao contraditório, à ampla defesa e à presunção de inocência, é facultado ao juiz produzir algumas provas de ofício e restringir a publicidade do processo em determinados casos.
Este sistema foi desenvolvido na França após a revolução de 1789, onde é utilizado até hoje.
Nele na fase da instrução preparatória, ou juizado de instrução, bem como na fase de investigação preliminar, o sistema inquisitivo é o adotado. Na fase judicial, por sua vez, que começa após o recebimento da denúncia, todas as garantias do sistema acusatório são asseguradas ao acusado.
Nos países que adotam o sistema misto, o juiz que atua na instrução não é o mesmo que atua no julgamento, pois há a presunção de que ele é parcial e que, por isso, não poderá julgar a causa.
Tourinho Filho4 nos ensina que este processo de tipo misto se desenvolve em três fases: a) investigação preliminar a cargo da polícia judiciária, sob a orientação do Ministério Público; b) instrução preparatória, a cargo do juiz instrutor; c) fase do julgamento.
E ainda diz que das duas primeiras fazes não participa a defesa. Na fase do julgamento, o processo se desenvolve sob a égide do contraditório.
Este sistema também é chamado de sistema “inquisitivo garantista” e de acordo com posição minoritária da doutrina é o sistema adotado no Brasil.
Os defensores desta tese, que é encabeçada pelos professores Guilherme de Souza Nucci e Denilson Feitosa Pacheco, aduzem que a Constituição Federal adotou o sistema acusatório e que a legislação infraconstitucional, ao seu turno, adotou o sistema inquisitivo, resultando, em razão disso, em um sistema misto.
Dizem que o artigo 156 do Código de Processo Penal faculta ao juiz a produção de provas, claramente sinalizando a adoção do sistema inquisitivo.
Segundo Denilson Feitosa Pacheco5, o magistrado poderia determinar de ofício a produção de provas em geral, seja durante a investigação criminal, seja durante o processo penal, inclusive ordenando interceptações telefônicas, requisição de instauração de inquéritos policiais, determinar oitivas de testemunhas, provas documentais, entre outras.
Guilherme de Souza Nucci6, com uma visão nos mesmos moldes, afirma que o sistema adotado no Brasil, embora não oficialmente, é o acusatório misto. Argumenta que se seguirmos a Constituição Federal, o sistema é o acusatório, mas se seguirmos o Código de Processo Penal, o sistema é o misto.
Há ainda os que defendem que o sistema adotado no país é o misto, alegando que na fase investigatória a cargo da polícia judiciária, o inquérito policial é sigiloso e as provas não são produzidas através do contraditório e da ampla defesa.
Obviamente esta é a posição minoritária, pois estes se esquecem de que o inquérito policial é um procedimento e não um processo.
Este procedimento, no qual se buscam elementos de informação para o titular da ação penal, não pode ser confundido com o processo, inclusive porque no inquérito se busca a verdade real - através da descoberta de indícios da autoria e da materialidade do delito -, sem qualquer juízo de valoração por parte da autoridade policial quando da elaboração do relatório final.
Ademais, conforme o artigo 155 do código de processo penal, ninguém poderá ser condenado com base em elementos probatórios coligidos exclusivamente dos autos de inquérito policial, devendo as provas ser produzidas sob o crivo do contraditório judicial (salvo as antecipadas, irrepetíveis e cautelares).
Norberto Avena7, por sua vez, defende que o sistema acusatório adotado pelo Brasil em 1988 é o acusatório, posição aceita amplamente pela doutrina, pelo STF e STJ, mas que realmente o Código de Processo Penal possui um cunho inquisitivo e por conta disto tem que ser interpretado com algumas restrições em face da Constituição Federal, - em especial no tocante a produção de provas pelo juiz e aos seus poderes instrutórios.
Conclusão:
Segundo Tourinho Filho8, “No direito pátrio, o sistema adotado, pode-se dizer, não é o processo acusatório puro, ortodoxo, mas um sistema acusatório com laivos de inquisitivo, tantos são os poderes conferidos aquele cuja função é julgar com imparcialidade a lide, mantendo-se equidistante das partes. Na verdade, pode o juiz requisitar abertura de inquérito, decretar de ofício prisão preventiva, conceder habeas corpus de ofício, ser destinatário da representação, ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, ouvir outras testemunhas além das indicadas pelas partes e, inclusive, as referidas pelas testemunhas”.
Vale acrescentar que nosso Código de Processo Penal foi elaborado sob a égide de um regime totalitário e sobre influência do código adotado na Itália de Benito Mussolini e por isso contém traços inquisitivos; enquanto, nossa atual Constituição Federal, foi desenvolvida no florescer de um período democrático e por isso conta com todas as características de um processo penal acusatório, com clara divisão entre as funções de acusar, julgar e defender, direito a ampla defesa, contraditório, publicidade dos atos processuais e todos os direitos e garantias que se coadunam com o moderno principio da Dignidade da Pessoa Humana - que é tido como o mais importante de todo o ordenamento jurídico.
Desta forma, ao analisarmos as opiniões dos principais processualistas penais da atualidade, pode-se observar que a maioria da doutrina entende que se cuida de um sistema acusatório. Entretanto, ressalte-se que essa mesma doutrina concorda que não se trata de um sistema acusatório puro, reconhecendo a existência de algumas características diferenciadas, sem, entretanto, poder ser considerado um sistema acusatório misto e muito menos inquisitivo.
O que precisa ser feito é a adequação do Código de Processo Penal aos preceitos de nossa Carta Magna. Seja através de sua reforma parcial - como vem ocorrendo -, seja através da elaboração de um novo diploma legal.
Bibliografia:
AVENA, Norberto Pâncaro. Processo Penal Esquematizado, 4ª edição, editora método, 2012, São Paulo.
FEITOSA PACHECO, Denilson. Direito Processual Penal, 4ª edição, editora Niterói- impetus, 2006.
NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal, 3ª edição, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2007.
OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 16ª edição, São Paulo, editora Atlas, 2012.
PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro, volume I. 7ª edição, São Paulo, editora Revista dos Tribunais, 2007.
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de Processo Penal, 14ª edição, 2011, editora Saraiva, São Paulo.
Autor: Daniel Schwarz Furlani
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