A eficácia imediata dos direitos fundamentais



1 - A EFICÁCIA IMEDIATA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

Este capítulo tem como objetivo analisar a eficácia dos direitos fundamentais. Para tanto, faz-se necessário examinar a evolução desses direitos, o que efetivamente representam para a sociedade, e o que mais interessa para o presente estudo, os direitos sociais, a fim de tentar buscar qual o papel do mínimo existencial e da reserva do possível no processo de concretização de tais direitos.

1.1 - A evolução dos direitos fundamentais

Para compreender o papel do Estado perante a sociedade, é importante compreender a evolução dos direitos fundamentais, quanto ao rol de direitos e quanto à sua efetividade.

 Os direitos fundamentais surgiram em diferentes períodos da história, passando por diversas transformações em seu conteúdo de acordo com as teorias e os pensamentos de cada época. Dessa forma, a doutrina costuma classificá-los em gerações ou dimensões. Segundo Ingo Wolfgang Sarlet (2010, p. 45), “Desde o seu reconhecimento nas primeiras Constituições, os direitos fundamentais passaram por diversas transformações, tanto no que diz com o seu conteúdo, quanto no que concerne à sua titularidade, eficácia e efetivação.”.

Os valores protegidos pelos direitos fundamentais não são estáticos, pelo contrário, são mutáveis e dinâmicos, acompanham a evolução da sociedade, ganhando um novo alcance. Consequentemente, não existe hierarquia entre eles, e sim correlação. Ressalte-se que o termo “geração” não é apropriado, pois remete à ideia de que uma geração de direitos fica ultrapassada com o surgimento de outra, sendo “dimensão” um termo mais adequado.

Como ensina George Marmelstein (2009, p. 56-57):

A expressão geração de direitos tem sofrido várias críticas da doutrina nacional e estrangeira, pois o uso do termo geração pode dar a falsa impressão da substituição gradativa de uma geração por outra, o que é um erro, já que, por exemplo, os direitos de liberdade não desaparecem ou não deveriam desaparecer quando surgem os direitos sociais e assim por diante. Na verdade, todo o Estado- Democrático de Direito é alicerçado nos direitos de primeira geração, de modo que seria inconcebível que eles cedessem lugar aos direitos de segunda geração.

  Pode-se afirmar que o nascimento de tais direitos se deu com seu reconhecimento e sua positivação pelos ordenamentos jurídicos. Antes da referida positivação, existiam os denominados direitos do homem, cujos valores compreendidos também eram vinculados à dignidade da pessoa humana. São direitos inerentes ao homem. Embora, às vezes, sejam utilizadas como sinônimos, tais expressões são distintas. Joaquim José Gomes Canotilho (2003, p. 393) assim se manifesta:

As expressões “direitos do homem” e “direitos fundamentais” são frequentemente utilizadas como sinônimas. Segundo a sua origem e significado poderíamos distingui-las da seguinte maneira: direitos do homem são direitos válidos para todos os povos e em todos os tempos (dimensão jusnaturalista-universalista); direitos fundamentais são os direitos do homem, jurídico-institucionalmente garantidos e limitados espacio-temporalmente.

Os direitos fundamentais de primeira dimensão são os direitos civis e políticos. Nasceram no final do século XIX, em reação ao Estado absolutista, que se caracterizava por ser um regime de intervenção religiosa, econômica, política e jurídica na vida dos indivíduos. A falta de liberdade e a opressão estimularam movimentos, como o liberalismo e o individualismo, influenciando o pensamento dos indivíduos. A burguesia em ascensão almejava direitos na esfera política e econômica, bem como liberdade religiosa, e para isso era necessário um Estado mínimo, que não intervisse nas relações sociais e econômicas.

Com base nas ideias do liberalismo, surgiram as primeiras declarações de direitos, ou seja, os direitos dos homens passaram a ser positivados em inúmeros documentos, como pontua George Marmelstein (2009, p. 44):

Os pilares éticos defendidos pelo liberalismo foram incorporados em diversas “declarações de direitos” proclamadas durante esse período, com destaque para a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, decorrente da Revolução Francesa, e a Declaração de Direitos da Virgínia, de 1776, decorrente da Revolução Americana (Independência dos Estados Unidos).

É importante mencionar que os direitos fundamentais estão intimamente relacionados com a ideia de limitação jurídica do poder público. Assim, os direitos de primeira dimensão representavam um instrumento de combate ao abuso de poder, assegurando aos indivíduos liberdade e autonomia. Os direitos civis e políticos positivados nas primeiras Constituições representavam limites de atuação do Estado, significavam um não agir, sendo, assim, denominados direitos negativos, liberdade negativa ou direito de defesa.  A função do Estado seria proteger a propriedade e garantir a segurança dos cidadãos.  Assim explica Nagibe de Melo Jorge Neto ao citar Ingo Wolfgang (2008, p. 37):

Os direitos de primeira geração são também chamados direitos civis e políticos. Esses direitos são característicos do Estado Liberal, que primava, acima de tudo, pela proteção da liberdade, da igualdade e da propriedade. A liberdade é a primeira fronteira de conquistas dos direitos fundamentais, é o primeiro grau de respeito à dignidade da pessoa humana. Aliás, a liberdade já era tida como fundamento da dignidade da pessoa humana por Tomás de Aquino; para ele, o que fazia do ser humano superior, além de ser feito à imagem e semelhança de Deus, era a sua inata liberdade, o livre-arbítrio.

São exemplos de tais direitos: a liberdade de expressão, a participação política, e a liberdade religiosa.

A segunda dimensão de direitos é constituída pelos direitos sociais, culturais e econômicos, surgidos no século XX, sob a influência de ideias antiliberais e movimentos sociais. Tais direitos serão tratados mais adiante e detalhadamente.

Com o passar do tempo, percebeu-se a necessidade de tutelar a coletividade, e não apenas determinados indivíduos. Os processos de urbanização e industrialização atingiram interesses individuais e difusos. Dessa forma, apareceram os direitos de terceira dimensão, que protegem interesses do gênero humano indistintamente. Seus titulares são a coletividade, pois os valores albergados por tais direitos dizem respeito a todo o gênero humano.

A internacionalização da humanidade e universalidade elevam esses direitos ao âmbito internacional, tendo como embrião o princípio da dignidade da pessoa humana.  Portanto, os direitos à paz, ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, à autodeterminação dos povos e ao respeito ao consumidor floresceram em decorrência da solidariedade e da fraternidade.

A Constituição de 1988, por exemplo, destina o Capítulo VI, no seu artigo 225, a tratar da proteção ao meio ambiente.

Sobre o assunto, Ingo Wolfgang Sarlet (2010, p. 48) afirma:

A nota distintiva destes direitos da terceira dimensão reside basicamente na sua titularidade coletiva, muitas vezes indefinida e indeterminável, o que se revela, a título de exemplo, especialmente no direito ao meio ambiente e qualidade de vida, o qual, em que pese ficar preservada sua dimensão individual, reclama novas técnicas de garantia e aplicação.

Na concepção de Paulo Bonavides (2011, p. 571), existe uma quarta dimensão de direitos fundamentais, quais sejam: a democracia direta, o pluralismo, e a informação. Derivam da globalização política, que acaba por mitigar a soberania do Estado, cabendo à sociedade concretizá-los, nas palavras do referido doutrinador:

São direitos de quarta geração o direito à democracia, o direito à informação e o direito ao pluralismo. Deles depende a concretização da sociedade aberta do futuro, em sua dimensão de máxima universalidade, para a qual parece o mundo inclinar-se no plano de todas as relações de convivência.

1.2 - Direitos sociais como direitos fundamentais

Os direitos sociais são aqueles que visam à igualdade social e possibilitam melhores condições de vida aos indivíduos. Consistem em prestações positivas por parte do Estado, direta ou indiretamente, e estão relacionados às necessidades básicas dos indivíduos, como saúde, educação, trabalho, assistência social entre outras. São implementados pelo Estado por meio de políticas públicas. Logo, o Estado tem o dever de proteger e efetivar os direitos sociais.

É importante destacar que nem todos consistem em prestações positivas, pois abrangem, também, direitos negativos, vale citar: o direito de greve e o direito de liberdade sindical.

José Afonso da Silva (2002, p. 285-286) comenta sobre direitos sociais:

 

[...] os direitos sociais, como dimensão dos direitos fundamentais do homem, são prestações positivas proporcionadas pelo Estado direta ou indiretamente, enunciadas em normas constitucionais, que possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a igualização de situações sociais desiguais. São, portanto, direitos que se ligam ao direito de igualdade.

E como menciona Paulo Bonavides (2011, p. 564):

São os direitos sociais, culturais e econômicos bem como os direitos coletivos ou de coletividades, introduzidos no constitucionalismo das distintas formas de Estado social, depois que germinaram por obra da ideologia e da reflexão antiliberal do século XX. Nasceram abraçados ao princípio da igualdade, do qual não se podem separar, pois fazê-lo equivaleria a desmembrá-los da razão de ser que os ampara e estimula.

Muitos fatores contribuíram para o aparecimento dos direitos sociais. Na segunda metade do século XVIII, surgiu a chamada Revolução Industrial, em decorrência da utilização de técnicas de produção que possibilitaram um grande crescimento econômico. A mecanização não se limitou apenas ao setor têxtil, estendendo-se, também, para os transportes, a metalúrgica, a agricultura e outros setores da economia.

A partir de então, as fábricas empregavam diversos trabalhadores. Tendo início na Inglaterra, a revolução no modo de produção se expandiu para os Estados Unidos e outros países da Europa. As inovações e constantes transformações na vida da população proporcionaram reformas urbanas e o acesso a novos meios de transportes, tornando-se marca registrada de cidades como Paris e Londres.

Entretanto, a prosperidade econômica gerada pela Revolução Industrial não atingiu a todos igualmente. Enquanto uma minoria rica vivia no luxo, uma grande parcela da população estava em condições cada vez mais degradantes.

O clima era de insatisfação por parte dos menos favorecidos, pois havia uma série de problemas sociais, como fome, desemprego e falta de assistência médica. Os trabalhadores (homens, mulheres e até crianças) estavam, também, insatisfeitos em razão das condições de trabalho a que eram submetidos, como jornadas de trabalho intenso, inexistência de descanso regular e salário mínimo medíocre. A indústria criou os núcleos urbanos, onde os pobres moravam em cortiços desprovidos de saneamento básico, e a burguesia, em casas caras.

Alguns trabalhadores contrariados reagiram à situação por meio de reivindicações por melhores condições de vida. Ocorreram, assim, protestos violentos contra a propriedade e o capital, como a destruição de máquinas por trabalhadores. Notadamente, o Estado não conseguia controlar a ordem social em razão de diversas reivindicações.

Nesse contexto, nasce um novo modelo político, o chamado “Welfare State”, ou seja, o Estado do bem-estar social. Sua função é garantir um conjunto de bens e serviços aos cidadãos e garantir as condições básicas para uma vida digna. Ana Paula Barcellos (2011, p. 136) salienta que “a garantia dos direitos individuais clássicos tornou-se insuficiente, na medida em que o Estado deixou de ser o único opressor.”.

Dessa forma, surgiram os direitos dos trabalhadores, quais sejam: férias, piso salarial, limitação da jornada de trabalho e direito de greve e sindicalização. E surgiram, também, os direitos sociais, que impõem deveres ao Estado, com a finalidade de concretizar o princípio da dignidade da pessoa humana.

 Percebe-se que as liberdades propiciadas pelos direitos de primeira dimensão não se revelaram suficientes para garantir a dignidade da pessoa humana.

As primeiras constituições que reconheceram os direitos sociais foram: a Constituição do México de 1917 e a Constituição Alemã de Weimar de 1919. No Brasil, a Constituição de 1934, bem como a de 1946, positivaram alguns direitos sociais, dentre os quais vale citar: educação, aposentadoria e assistência social.

Na Constituição de 1988, os direitos sociais estão previstos no Título II - Dos Direitos e Garantias Fundamentais, no Capítulo II, nos artigos 6º ao 11º, e estão regulados ao longo do texto constitucional. O artigo 6º assegura que “são direitos sociais, a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”.

O artigo 5º, § 1º, da Carta Magna de 1988 assevera que “as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicabilidade imediata”. Referido artigo é tema de controvérsia doutrinária acerca da aplicabilidade imediata dos direitos sociais. Nesse ponto, podem-se mencionar dois motivos pelos quais há quem sustente que tais direitos não são considerados normas dotadas de aplicabilidade imediata.

Primeiramente, pode-se citar que há quem defenda que somente os direitos fundamentais do artigo 5º da Constituição Federal possuem aplicabilidade imediata. Tal entendimento se mostra inadequado, uma vez que os direitos sociais encontram-se inseridos no catálogo de direitos fundamentais, ou seja, a aplicabilidade imediata deles se justifica pelo simples fato de serem direitos fundamentais. Esse é o entendimento que a doutrina majoritária vem consolidando.

 

Na concepção de George Marmelstein (2009, p. 296):

Assim, por força da cláusula de aplicação direta e imediata, o direito fundamental tem capacidade de produzir efeitos mesmo que não esteja regulamentado pelo legislador infraconstitucional.

Vale ressaltar que todos os direitos fundamentais são favorecidos pela cláusula da aplicação imediata, já que o disposto constitucional não faz qualquer exclusão. Trata-se, portanto, de um princípio geral que se aplica a todos os direitos fundamentais indistintamente, apesar de estar no art. 5º da Constituição Federal brasileira.

E pode-se citar, também, a classificação feita por José Afonso da Silva (2002, p. 180) quanto à eficácia das normas constitucionais. De acordo com essa classificação, as normas constitucionais podem ter eficácia plena, limitada e contida, sendo determinadas de acordo com o enunciado do dispositivo, e levam em consideração a aptidão de cada norma para produzir efeitos. Para o citado autor:

Por regra, as normas que consubstanciam os direitos fundamentais democráticos e individuais são de eficácia contida e aplicabilidade imediata, enquanto as que definem os direitos econômicos e sociais tendem a sê-lo também na Constituição vigente, mas algumas, especialmente as que mencionam uma lei integradora, são de eficácia limitada, de princípios programáticos e de aplicabilidade indireta [...].

De acordo com a mencionada classificação, as normas de eficácia limitada não produzem efeitos com a sua entrada em vigor, pois dependem de regulamentação por lei para a produção de seus efeitos.

A importância da compreensão dos direitos sociais como de eficácia contida está na percepção de que as políticas públicas já começam a ser tratadas na Constituição, ou seja, há uma verdadeira restrição à discricionariedade do legislador e do administrador.

O que importa para o presente trabalho é entender que desconsiderar a eficácia imediata dos direitos sociais significa criar obstáculos à sua concretização.

Em decorrência da classificação de José Afonso da Silva (2002, p. 138), surgem as normas programáticas. Essas normas, como caracterizadoras dos direitos sociais, também constituem uma barreira à sua eficácia. Segundo o mencionado autor:

[...] podemos conceber como programáticas aquelas normas constitucionais através das quais o constituinte, em vez de regular, direta e imediatamente, determinados interesses, limitou-se a traçar-lhes os princípios para serem cumpridos pelos seus órgãos (legislativos, executivos, jurisdicionais e administrativos), como programas das respectivas atividades, visando à realização dos fins sociais do Estado.

Os direitos sociais, enquanto direitos fundamentais, não podem ser interpretados de forma restritiva, ou seja, não podem ser emoldurados como normas programáticas.

Ao classificá-los dessa forma, incorre-se no risco de abrir espaço para que o legislador não realize seus deveres, pois não haverá compromisso que o vincule à realização desses direitos. Portanto, garantir a aplicabilidade imediata dos direitos sociais é fechar a porta para uma futura omissão do legislador. Sobre o tema, Ana Carolina Lopes Olsen (2008, p. 107) entende que:

Entendemos, entretanto, que não se pode conceber normas de direitos fundamentais – tais como as já delineadas no presente estudo – como “normas programáticas”, pois não estabelecem meramente “programas” ou fins a serem cumpridos pelo Estado, mas conferem verdadeiros direitos aos seus titulares. Em alguns casos, estes direitos serão abstratos, e dependeram de atuação do intérprete, que mediante a ponderação, poderá identificar, no caso concreto, os direitos definitivos.

Em face da classificação dos direitos sociais como normas programáticas, há quem questione a fundamentalidade dos direitos sociais. Em sentido oposto, Ingo Wolfgang Sarlet (2010, p.66) defende que todos os direitos sociais são direitos fundamentais, ensinando que:

A acolhida dos direitos fundamentais sociais em capítulo próprio no catálogo de direitos fundamentais ressalta, por sua vez, de forma incontestável sua condição de autênticos direitos fundamentais, já que nas cartas anteriores os direitos sociais se encontravam positivados no capítulo da ordem econômica e social, sendo-lhes, ao menos em princípio e ressalvadas algumas exceções, reconhecido caráter meramente programático.

No que concerne à fundamentalidade dos direitos sociais, pode-se utilizar os princípios previstos na Constituição, em especial o princípio da dignidade da pessoa humana, como parâmetro para avaliar o conteúdo material de tais direitos. Já que, como dito anteriormente, se verifica uma íntima relação entre os direitos sociais e o referido princípio.

Portanto, o reconhecimento dos direitos sociais enquanto direito fundamental advém do vínculo com o princípio da dignidade da pessoa humana. O direito à educação, à saúde, ao trabalho, à moradia, ao lazer, à segurança, à previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados são condições básicas e essenciais a todos os cidadãos, para que possam viver, no mínimo, de forma digna.

Ingo Wolfgang Sarlet (2010, p. 110) esclarece que:

Não deveria haver, por exemplo, qualquer resquício de dúvida no que concerne à importância do direito à saúde, à assistência, e previdência social, à educação, tanto para o efetivo gozo dos direitos de vida, liberdade e igualdade, quanto para o próprio princípio da dignidade da pessoa humana.

Ao tratar da eficácia dos direitos fundamentais, não se pode deixar de comentar a sua dupla dimensão. Para muitos doutrinadores, os direitos fundamentais possuem uma dupla dimensão, objetiva e subjetiva, especialmente os direitos sociais.

De acordo com a dimensão objetiva, os direitos fundamentais, na medida em que exigem prestações positivas por parte do Estado para a sua realização, criam verdadeiras imposições ao legislador para efetivá-las, seja por meio de leis ou de políticas públicas quem tenham esse objetivo.

A dimensão subjetiva diz respeito à possibilidade de o Judiciário, ao ser provocado, efetivar os direitos fundamentais. Assim sendo, seus titulares podem exigir judicialmente a prestação material contida nesses direitos. Nesse sentido, Ana Carolina Lopes Olsen (2008, p. 96) cita Clèmerson Merlin Clève, sustentando que:

Segundo Clèmerson Merlin Clève, a dimensão subjetiva dos direitos fundamentais desempenha três funções: a) de defesa do indivíduo contra a ingerência do poder público que venha impedir a satisfação do direito fundamental; b) de prestação, segundo a qual o indivíduo pode demandar a realização do objeto do direito fundamental; e, c) de não discriminação, segundo a qual o indivíduo deve ter ao seu dispor, sem discriminação em relação aos demais (a não ser que a discriminação seja necessária para a concretização da igualdade material), os bens e serviços necessários à satisfação de seus direitos fundamentais.

A análise da dimensão subjetiva revela que a implementação dos direitos sociais não fica a cargo somente do Poder Executivo. O Poder Judiciário, quando acionado pelos titulares dos direitos fundamentais, possui a importante tarefa de efetivá-los. Reconhecer o caráter subjetivo dos direitos fundamentais sociais representa reconhecer a justiciabilidade desses direitos, embora, às vezes, encontrem limites, como, por exemplo, a reserva do possível.

Nem todos os direitos sociais são fundamentais, no sentido de necessários à própria existência, até porque, mesmo que fossem, em países como o Brasil, os recursos não atendem a todas as necessidades da sociedade. Em face dessa afirmação, torna-se importante estabelecer o mínimo de direitos fundamentais sociais, sob pena de torná-los direitos desprovidos de efetividade.

Daí por que falar em mínimo existencial e estabelecer o seu conteúdo, para que não se torne apenas uma formulação genérica, sem qualquer utilidade prática, pois, como se vê adiante, o magistrado poderá utilizar o mínimo existencial como elemento de ponderação na concretização dos direitos sociais, e o Estado poderá utilizá-lo na busca para a realização dos direitos sociais por meio das políticas públicas. A seguir, analisar-se-á a teoria do mínimo existencial.

1.3 - Mínimo existencial

         A Constituição de 1988 tem como fundamento o princípio da dignidade da pessoa humana, ou seja, todo o ordenamento jurídico deve estar em conformidade com tal princípio. Veja-se a redação do artigo 1º, inciso III, da Constituição de 1988:

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela União indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

[...]

III- a dignidade da pessoa humana;

Sobre a inclusão da dignidade da pessoa humana na Constituição Federal de 1988, Ana Paula Barcellos (2011, p.31-32) comenta:

Desse modo, por qualquer dos fundamentos possíveis - seja por tratar-se de um dom divino, um direito natural e inato, um elemento construído pela cultura ou o resultado da progressiva luta e conquista dos povos -, a dignidade humana é hoje um axioma jusfilosófico e, além disso, no nosso sistema, um comando jurídico dotado de superioridade hierárquica.

Para uma melhor compreensão do significado de dignidade da pessoa humana, recorre-se à lição de George Marmelstein (2009, p. 18) citando Ingo Wolfgang Sarlet:

Melhor ficar então com o conceito de desenvolvido por Ingo Sarlet, que diz: onde não houver respeito pela vida e pela integridade física e moral do ser humano, onde as condições mínimas para uma existência digna não forem asseguradas, onde não houver uma limitação do poder, enfim, onde a liberdade e a autonomia, a igualdade em direitos e dignidade e os direitos fundamentais não forem reconhecidos e assegurados, não haverá espaço para a dignidade da pessoa humana.

         Como foi dito, o reconhecimento dos direitos sociais como direitos fundamentais decorre do vínculo com o princípio da dignidade da pessoa humana. Verifica-se, portanto, que o citado princípio deve orientar a interpretação dos direitos sociais, bem como de todos os direitos fundamentais.

A busca pela dignidade da pessoa humana antecede o surgimento dos direitos de primeira dimensão. Mas percebe-se que esta busca aprofunda-se com a noção de direitos de segunda dimensão, já que os direitos de primeira dimensão não foram suficientes para assegurá-la.

O mínimo existencial é um conceito fruto da doutrina alemã. Foi concebido a partir da dignidade da pessoa humana, sendo amplamente utilizado pela jurisprudência alemã. Esse conceito pode ser entendido como o conjunto de direitos básicos, mínimos e essenciais para que um cidadão possa viver com condições dignas, daí sua decorrência da dignidade humana.

Na doutrina brasileira, não há consenso sobre o conteúdo de mínimo existencial, em razão de ser bastante subjetivo. Logo, estabelecer esse conteúdo não é tarefa fácil. Tem-se, portanto, que a doutrina se divide em relação à definição desse conteúdo, até porque a Constituição Federal não expressou quais os direitos que o compõem. A Carta Maior não garantiu um mínimo de direitos aos cidadãos, tampouco estabeleceu um núcleo menor de direitos que devem ser efetivados, pois todos os direitos sociais devem ser garantidos.

            O professor Ricardo Lobo Torres (2009, p. 35) entende que nem todos os direitos sociais são fundamentais, mas apenas aqueles relacionados ao mínimo existencial. Sobre o conceito de mínimo existencial, o mesmo autor assim o define:

Há um direito às condições mínimas de existência humana digna que não pode ser objeto de intervenção do Estado na via dos tributos (= imunidades) e que ainda exige prestações estatais positivas.

            Acrescenta o autor (2009, p.80 - 81), ainda, que:

Em síntese a jusfundamentalidade dos direitos sociais se reduz ao mínimo existencial, em seu duplo aspecto de proteção negativa contra a incidência de tributos sobre os direitos sociais mínimos de todas as pessoas e de proteção positiva consubstanciada na entrega de prestações estatais materiais em favor dos pobres. Os direitos sociais máximos devem ser obtidos na via do exercício da cidadania reinvidicatória e da prática orçamentária, a partir do processo democrático. Esse é o caminho que leva à superação da tese do primado dos direitos sociais sob os direitos de liberdade, que inviabilizou o Estado Social de Direito, e a da confusão entre direitos fundamentais e direitos sociais, que não permite a eficácia destes últimos sequer na sua dimensão mínima.

            À luz da teoria de Ricardo Lobo Torres, o mínimo existencial é um direito que possui uma dupla face. Fernando Facury Scaff (2006, p. 148) explica esse duplo aspecto com base na teoria de Ricardo Lobo Torres, a qual alega que o mínimo existencial possui um aspecto positivo e outro negativo:

Assim, entende o autor fluminense que o mínimo existencial é composto por duas dimensões, ambas ligadas à liberdade: uma negativa, que impede o exercício do poder tributário por parte do Estado em razão da situação econômica da pessoa; e outra positiva, que são os serviços públicos dirigidos diretamente à manutenção da liberdade da pessoa. O mínimo existencial gera direito público subjetivo aos seus beneficiários, pelas limitações positivas e negativas à liberdade.

            O mesmo autor (2006, p. 150) segue comentando (p.150):

O mínimo existencial não é uma categoria universal. Varia de lugar para lugar, mesmo dentro de um mesmo país. É a combinação de capacidades para o exercício de liberdades políticas, civis, econômicas e culturais que determinará este patamar de mínimo existencial. Não são apenas aspectos econômicos envolvidos.

             “Não é qualquer direito mínimo que se transforma em mínimo existencial. Exige-se que seja um direito a situações existenciais dignas.” É o que ensina Ricardo Lobo Torres (2009, p. 36), e, completando seu entendimento, afirma (p. 244):

Afirmação do direito ao mínimo existencial em seu status positivus libertatis aparece na CF, nas leis complementares e em inúmeras leis ordinárias.

São os seguintes os direitos que compõe positivamente o mínimo existencial: direito à seguridade social, direito à educação, direito à moradia e direito à assistência jurídica.

Ana Paula de Barcellos (2011, p. 292) conceitua mínimo existencial como:

Em suma: o chamado mínimo existencial, formadas pelas condições matérias básicas para a existência, corresponde a uma fração nuclear da dignidade humana à qual se deve reconhecer a eficácia jurídica positiva ou simétrica.

A proposta de definição do conteúdo de mínimo existencial de Ana Paula de Barcellos se distingue do conteúdo apresentado por Ricardo Lobo Torres, pois a autora (2011, p. 302) não reduz a jusfundamentalidade dos direitos sociais ao mínimo existencial:

Na linha do que se identificou no exame sistemático da própria Carta de 1988, o mínimo existencial que ora se concebe é composto de quatro elementos, três matérias e um instrumental, a saber: a educação básica (assumindo-se a nova nomenclatura constitucional), a saúde básica, a assistência aos desamparados e o acesso à Justiça. Repita-se, ainda uma vez, que esses quatro pontos correspondem ao núcleo da dignidade humana a que se reconhece eficácia jurídica positiva e, a fortiori, o status de direito subjetivo exigível diante do Poder Judiciário.

Depreende-se das lições acima que o conteúdo de mínimo existencial é bastante subjetivo, variando de acordo com as necessidades de cada sociedade. Fixado o seu conteúdo, embora não esteja positivado na Constituição, pode-se concluir que o magistrado, ao analisar o caso concreto, deverá avaliar esse conceito e o seu conteúdo para determinar qual seria o mínimo de direitos que o indivíduo teria para aquele caso específico.

E ainda pode-se mencionar que o mínimo existencial deveria ser levado em consideração no planejamento das políticas públicas, pois as necessidades são muitas e os recursos são escassos, com o desígnio de orientar quais seriam as prioridades do Estado. Desse modo, a execução das políticas públicas com base no mínimo existencial asseguraria que as condições básicas e imprescindíveis a qualquer ser humano fossem respeitadas.

Embora o Estado tenha que garantir os direitos sociais, ele não pode se escusar completamente do seu dever, principalmente no que diz respeito à garantia do mínimo de direitos aos indivíduos. Sem este mínimo, a dignidade da pessoa humana não se realiza. Em sendo assim, fica claro que, sem a garantia do mínimo, os direitos fundamentais perdem sua essência. Portanto, justifica-se a intervenção do Judiciário com o fito de assegurar aos cidadãos a dignidade.

Já se sabe que o Estado é encarregado de garantir e efetivar os direitos sociais e, por conseguinte, o mínimo existencial. É imperioso destacar que muito se discute acerca da impossibilidade de efetivação dos direitos sociais em consequência das limitações financeiras do Estado.

 Conforme abordado anteriormente, os direitos sociais se realizam por meio de prestações por parte do Estado, por meio das políticas públicas, mas, para seu cumprimento, são necessários recursos financeiros. O que leva à conclusão de que a concretização de tais direitos decorre diretamente do orçamento público. Logo, por serem de implementação onerosa, subordinam-se à existência de previsão orçamentária. Diante do já mencionado custo, a efetivação desses direitos demanda verbas, que, como se sabe, não conseguem atender a todas as necessidades da coletividade.

Todavia, é preciso ter em mente que não são apenas recursos financeiros que estão envolvidos na realização de um determinado direito social. George Marmelstein (2009, p. 319) explicita:

Implementar um direito a prestação exige a alocação de recursos, em maior ou menor quantidade, conforme o caso concreto, e, vale ressaltar, não apenas recursos financeiros, mas também recursos não monetários, como pessoal especializado e equipamentos. No entanto, há menos recursos do que o necessário para o atendimento de todas as demandas.

Diante disso, o Poder Público constantemente utiliza o argumento da “reserva do possível” para justificar a não efetivação dos direitos sociais. Sobre o tema, será tratado a seguir.

1.4 - Reserva do possível

A cláusula ou teoria da “reserva do possível” surgiu na Alemanha, tendo sido invocada em um julgamento promovido pela Corte Constitucional Federal, no caso numerus clausus (BVerfGE 33, 303). Vários estudantes foram admitidos em Faculdades de Medicina, porém não existiam vagas suficientes para eles. Em face disso, consideraram que o direito à educação estava sendo violado e pleitearam, em juízo, o aumento do número de vagas na universidade. (OLSEN, 2010, p. 215).

Ao examinar a demanda judicial, a Corte Constitucional Federal julgou improcedente o pedido, alegando a “reserva do possível”. Destarte, a “reserva do possível” teve como fundamento aquilo que a sociedade pode realmente exigir de forma razoável e a existência de recursos financeiros por parte do Estado. Ana Carolina Olsen (2010, p.223), sobre a teoria germânica, traz à baila:

No contexto da sociedade alemã, a reserva do possível representa um limite à pretensão dos titulares de direitos fundamentais prestacionais na medida em que não lhes cabe requerer além daquilo que o Estado já prestou dentro de sua capacidade, cumprindo seus deveres constitucionais. Como na interpretação do famoso caso numerus clausus, verifica-se que o Estado fornecia universidades públicas para seus cidadãos, e inclusive havia programas de expansão do número de vagas. Todavia, não estava conseguindo conter a demanda de estudantes, especialmente para o curso de Medicina. Diante disso, não se poderia exigir do Estado que fornecesse universidades públicas para absolutamente todos os cidadãos com interesse individual e particular naquele curso superior. Não é razoável exigi-lo. E este limite fático não viola a proporcionalidade, na medida em que o Estado fizera aquilo que efetivamente estava ao seu alcance.

No Brasil, referida teoria foi interpretada como “reserva do financeiramente possível”, sobre a influência das ideias neoliberais, reconhecendo que os direitos de segunda dimensão devem ser efetivados pelo Estado, mas dentro das possibilidades financeiras.

As decisões tomadas pelo Judiciário para proteção e concretização dos direitos sociais geravam impactos na economia, portanto a reserva do possível funcionava como um freio a essas decisões.

A reserva do possível, de acordo com a interpretação pátria, despreza o aspecto relativo à razoabilidade da pretensão e exalta a questão da escassez de recursos, bem como os custos que esses direitos envolvem para a sua realização.

O que vale, então, são os custos que os direitos sociais representam para a economia e os recursos que são escassos para atendê-los, uma vez que custam “tão caro” aos cofres públicos.

Sobre a interpretação adotada pelo Brasil acerca da teoria, Ana Paula de Barcellos (2011, p. 279) esclarece que:

Na ausência de um estudo mais aprofundado, a reserva do possível funcionou muitas vezes como o mote mágico, porque assustador e desconhecido, que impedia qualquer avanço na sindicalidade dos direitos sociais. A iminência do terror econômico, anunciada tantas vezes pelo Executivo, cuidava de reservar ao Judiciário o papel de vilão nacional, caso determinadas decisões fossem tomadas.

            Conforme exposto, o Poder Público passou a utilizar esse argumento em processos judiciais, com o intento de exonerar-se do seu dever correlacionado aos direitos sociais, tornando a deficiência da efetivação dos direitos sociais amparada pela “reserva do possível”. Cumpre esclarecer, no entanto, que tal tese somente poderá ser acolhida se o Poder Público comprovar a inexistência de verba orçamentária, não bastando apenas alegar e demonstrar em quais áreas foram aplicados os recursos disponíveis. A reserva do possível não pode ser considerada uma regra, e sim uma exceção. Interessante destacar que, sobre a reserva do possível, o Supremo Tribunal Federal se manifestou por meio da arguição de descumprimento de preceito fundamental nº 45 da seguinte forma:

EMENTA: ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. A QUESTÃO DA LEGITIMIDADE CONSTITUCIONAL DO CONTROLE E DA INTERVENÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO EM TEMA DE IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS, QUANDO CONFIGURADA HIPÓTESE DE ABUSIVIDADE GOVERNAMENTAL. DIMENSÃO POLÍTICA DA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL ATRIBUÍDA AO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. INOPONIBILIDADE DO ARBÍTRIO ESTATAL À EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS, ECONÔMICOS E CULTURAIS. CARÁTER RELATIVO DA LIBERDADE DE CONFORMAÇÃO DO LEGISLADOR. CONSIDERAÇÕES EM TORNO DA CLÁUSULA DA “RESERVA DO POSSÍVEL”. NECESSIDADE DE PRESERVAÇÃO, EM FAVOR DOS INDIVÍDUOS, DA INTEGRIDADE E DA INTANGIBILIDADE DO NÚCLEO CONSUBSTANCIADOR DO “MÍNIMO EXISTENCIAL”. VIABILIDADE INSTRUMENTAL DA ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO NO PROCESSO DE CONCRETIZAÇÃO DAS LIBERDADES POSITIVAS (DIREITOS CONSTITUCIONAIS DE SEGUNDA GERAÇÃO).

[...] Em resumo: a limitação de recursos existe e é uma contingência que não se pode ignorar. O intérprete deverá levá-la em conta ao afirmar que algum bem pode ser exigido judicialmente, assim como o magistrado, ao determinar seu fornecimento pelo Estado.

Por outro lado, não se pode esquecer que a finalidade do Estado ao obter recursos, para, em seguida, gastá-los sob a forma de obras, prestação de serviços, ou qualquer outra política pública, é exatamente realizar os objetivos fundamentais da Constituição.

A meta central das Constituições modernas, e da Carta de 1988 em particular, pode ser resumida, como já exposto, na promoção do bem-estar do homem, cujo ponto de partida está em assegurar as condições de sua própria dignidade, que inclui, além da proteção dos direitos individuais, condições materiais mínimas de existência. [...]

RTJ VOL-00200-01 PP-00191, Relator: Ministro CELSO DE MELLO, Data de Julgamento: 29/04/2004, Data de Publicação: DJ 04/05/2004  PP-00012

No entendimento acima consubstanciado, o Ministro Celso de Mello entendeu que a escassez de recursos é uma realidade que não pode ser desprezada. Todavia, ressaltou que a reserva do possível não pode ser considerada absoluta, pois devem ser levados em consideração os objetivos estabelecidos na Constituição, dentre os quais se destaca a proteção aos direitos sociais, que é dever do Estado. Portanto, a utilização dos recursos precisa ser direcionada a estes fins constitucionais.

Simplesmente alegar que os recursos são escassos para atender a todas as necessidades dos cidadãos parece lógico demais, principalmente em países como o Brasil. É necessário, também, demonstrar que estes recursos foram utilizados para atender aos fins estabelecidos na Constituição, ou seja, que os gastos realizados foram necessários a estes fins, e por isso se justificaria a escassez de recursos para efetivar determinadas prestações. Esse é o entendimento de Ana Carolina Lopes Olsen (2010, p. 196) ao utilizar a ponderação e a fundamentação na aplicação da reserva da possível:

Neste sentido, a alegação, pelos poderes públicos, de que não dispõem de recursos suficientes para satisfação de uma pretensão material deduzida em juízo deverá passar pelo crivo da proporcionalidade. Em outras palavras, esta escassez de recursos deverá ser necessária e proporcional.

Destarte, ao analisar o caso concreto, o magistrado poderá averiguar se o Estado, ao utilizar os recursos, observou os objetivos previstos na Constituição, dentre os quais se destaca o patrocínio aos direitos fundamentais, ensejando, assim, uma correta e adequada aplicação da teoria.

Partindo desse entendimento, deve-se analisar a reserva do possível não apenas sob o prisma da escassez de recursos. É importante entender que essa escassez, em alguns casos, pode decorrer de escolhas mal elaboradas, feitas pelo administrador no uso de sua discricionariedade.

Portanto, o problema muitas vezes reside nos deveres do Estado. Em algumas situações, o administrador realiza escolhas sem total observância à promoção dos direitos sociais. Sobre o tema, é indispensável observar a lição de Ana Carolina Lopes Olsen (2010, p. 192), que faz uma importante análise acerca da escassez de recursos e das escolhas realizadas pelo Estado:

Não se pode afirmar que um direito fundamental já nasce com a limitação da reserva do possível de modo que, por exemplo, fornecer remédios para o tratamento de gripe é possível, enquanto fornecer remédios para o tratamento de hepatite “B” não é possível. A escassez dos recursos econômicos destinados à realização destes direitos não é natural, essencial, mas artificial, fruto da escolha realizada pelos poderes públicos. A prova desta artificialidade está no fato de que quando decisões judiciais determinam o fornecimento de certo medicamento, o Estado acaba por se organizar para promover uma dotação orçamentária capaz de suprir esta necessidade; e este remédio passa a ingressar na lista daqueles a serem obrigatoriamente fornecidos de forma gratuita a toda a população.

Pode-se extrair do ensinamento acima que nem sempre a escassez de recursos decorre necessariamente da sua inexistência, mas sim de escolhas realizadas pelo administrador.

Obviamente que o ideal seria que os recursos fossem ilimitados, de maneira que pudessem atender a todas as necessidades da sociedade. Contudo, deve-se planejar como atendê-las ao máximo utilizando os recursos disponíveis. Dessa forma, o mínimo existencial poderia ser uma importante ferramenta para auxiliar nas escolhas das necessidades da sociedade.

            Deve-se abordar, também, que a reserva do possível revela dois aspectos concernentes à existência de recursos materiais. O primeiro aspecto, o fático, diz respeito à inexistência de recursos, dessa forma, não é possível exigir uma prestação por parte do Estado se não há como concedê-la. O segundo, o jurídico, refere-se à falta de autorização orçamentária para a realização de determinado gasto. Ana Paula de Barcellos (2011, p. 277-278) ao analisar esse duplo aspecto ensina:

A rigor, sob o título geral da reserva do possível convivem ao menos duas espécies diversas de fenômenos. O primeiro deles lida com a inexistência fática de recursos, algo próximo da exaustão orçamentária, e pode ser identificado como uma reserva do possível fática. É possível questionar a realidade dessa espécie de circunstância quando se trata do Poder Público, tendo em conta a forma de arrecadação de recursos e a natureza dos ingressos públicos. Seja como for, a inexistência absoluta de recursos descreveria situações em relação às quais se poderia falar de reserva do possível fática. O segundo fenômeno identifica uma reserva do possível jurídica já que não descreve propriamente um estado de exaustão de recursos, e sim a ausência de autorização orçamentária para determinado gasto em particular.

Sobre o assunto, Ingo Wolfgang Sarlet (2010, p. 288) pontua que:

A reserva do possível constitui, em verdade (considerada toda a sua complexidade), espécie de limite jurídico e fático dos direitos fundamentais, mas também poderá atuar, em determinadas circunstâncias, como garantia dos direitos fundamentais, por exemplo, na hipótese de conflitos de direitos, quando se cuidar da invocação- observados sempre os critérios da proporcionalidade e da garantia do mínimo existencial em relação a todas os direitos- da indisponibilidade de recursos com o intuito de salvaguardar o núcleo essencial de outro direito fundamental.

A partir do exame dos aspectos fático e jurídico, percebe-se que a efetivação dos direitos sociais é limitada pela reserva do possível. Essa teoria, como argumento para justificar a impossibilidade de efetivação dos direitos fundamentais sociais, leva em consideração os custos necessários para a concretização desses direitos.  Esse argumento nem sempre é válido, tendo em vista que todos os direitos fundamentais, independentemente de sua dimensão, geram custos para o Estado.

Observa-se que, em Estados como o Brasil, por exemplo, os recursos não conseguem atender a todas as necessidades públicas, o que configura um dos maiores obstáculos à concretização dos direitos sociais. É necessário o reconhecimento de que, em face da insuficiência dos recursos, os direitos fundamentais não podem ser considerados absolutos, portanto alguns direitos serão satisfeitos e outros não. Porém, desconsiderar os direitos fundamentais como direitos absolutos não significa deixar de efetivá-los. Sendo assim, a reserva do possível deve ser interpretada na sua gênese, ou seja, sob a ótica da razoabilidade e da proporcionalidade.

O planejamento orçamentário deve ser realizado sempre atendendo aos objetivos da Constituição Federal, com vistas a conceder máxima efetividade aos direitos fundamentais, especialmente no que tange aos direitos sociais. 

Pode-se, então, verificar que há uma íntima relação entre orçamentos públicos, políticas públicas e direitos sociais. A concretização desses direitos depende do orçamento público e das políticas públicas.

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