Cachorro de mercado



 

Cachorro de Mercado

Garganta ressequida pelos raios do sol inclemente e o pensamento voltado para os dois fracos filhotes que abandonara no sótão da casa grande, ele espera concluir, em bons grados, aquela expectativa angustiante, sentado, ao cair da tarde, logo às primeiras horas, na porta do mercado.

É mais uma luta contraposta à sua vontade, traduzida naquela batalha onde tem por compromisso moral sair vitorioso, custe o que custar. A coisa de mais sublime que possui é a vida e essa para ele já está bastante desvalorizada.

A posição abusiva revela a ânsia intranquila. Espera, pronto para dar o bote no primeiro pedaço de pele que encontrar. Traseira ou dianteira, não importa, pois para a sua classe não havia liberdade de escolha. Para escolher e expressar é preciso deixar de ser cachorro – pensamento interiorizado está livre de uma surpresa telepática em linha cruzada. Só resta o consolo de que nada é impossível, pois no Ceará já chove. Mas... será que ninguém o nota? Oh! Angustiosa espera. Só tem certeza de uma coisa, triste, irracional, mas estimulante e compreensiva por causa da situação bestial: aqueles que por ele passam, disfarçados robôs aristocráticos e raciais, tem olhos vidrados, frios e inexpressivos, como se olhassem para o interior. Cadáveres ambulantes! Seres humanos consumidos por essa farsa racial e tecnocrata, características condenáveis de outras épocas.

Opa! O açougueiro parece que o viu. Ajeita o avental, faz um trejeito abusado e lança mão da faca peixeira.

- São Lázaro! Qual será sua intenção?

A resposta veio fúnebre e imediata: o peludo braço do açougueiro desce rápido por três vezes e um amigo seu, mais afoito, tomba sem vida ejaculando sangue por três orifícios profundos, ficando o gesto trágico do açougueiro retratado em um convidativo pedaço de pele que o canino teimosamente prendia à boca.

Pobre infeliz. Os homens, seus melhores amigos, finalmente o livraram da espera angustiosa... vítima da máquina!...

Que venha a pira! Mas, o melhor mesmo é baixar mais uma vez no desguarnecido pirarucu do seu Freitas. Caminha, sôfrego, pardacento, e já sem muitas pretensões, rumo ao gerador de piras – barco pesqueiro ancorado à margem do rio que transporta pirarucus, maparás, dourados e outras espécies da água doce, quando, de repente, tudo acontece. Polícia. Blitz. Presos sem documentos. E aquela violenta pancada no traseiro, dada por gênio maléfico.

Volta ao mercado, sangrando pelo traseiro violentado. Arrasta-se desesperadamente em direção a um Box vazio e deixa-se cair pesadamente. Esgotado e abatido pelo cansaço, encolhe-se num cantinho e, em meio aos constantes zumbidos dos mosquitos e o odor forte do sangue das vítimas abatidas, conclui, naquele cruel extermínio do reino animal, adormecendo.

Assim, longe da cruel realidade do sótão da casa grande, termina mais um dia de cachorro, no mercado.

 

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Autor: Francisco Antônio Saraiva De Farias


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