Engraxate...



 

Engraxate...

 

O menino avançava com a caixa na mão, observando um papa-capim que comia carrapatos na beira da estrada...

Se tivesse sido acostumado a comer carrapatos, talvez agora não estranhasse a fome que o atormentava. Enquanto caminhava, pensava na farsa que lhe estavam pregando os entendidos; eram cursos, palestras e mais palestras, promessas de realizações mirabolantes, tudo em comemoração ao dia da criança. Enquanto isso, a fome aumentava, os problemas se multiplicavam e o desespero cada vez mais se apoderava dele.

- Uma engraxada, seu moço?

Antes da resposta passa à ação:

Graxa preta, graxa marrom. Puta merda!

O sapato do freguês é incolor!

- Cadê o diabo da incolor?...

Olha para o homem, olha para a caixa e começa a passar marrom, notando que o freguês se distraia com o papa-capim que comia carrapatos à beira da estrada.

Dá a primeira batida na caixa, sinal de que o primeiro sapato estava lustrado, aí o homem olhou para os pés e lá estava o contraste, um marrom e o outro incolor.

Limpa! Limpa já, seu muleque. Exclamou o homem indignado suspendendo o menino pela gola da camisa.

O pequeno ficou tenso, aguentando firme, pois já estava acostumado a maltrato. Totalmente colérico, o homem afrouxou a mão da gola e o pequeno esborrachou-se no chão. Calma seu moço, eu dispenso o pagamento, só não posso é limpar.

Estava acostumado a maus tratos. Verdade cruel! Pensou de repente. O Brasil pagaria o preço de sua marginalização. Era o terceiro irmão de uma geração de criminosos. O primeiro dos três fora encarcerado aos dezenove anos por delitos cruéis, incluindo arrombamentos e assaltos à mão armada, violentamente. O segundo, de dezessete anos, foi enrolado pela “nega”, por estupro, estrangulamento e assalto à mão armada, além da moral maculada pela venda e uso constante de maconha. O terceiro era ele. Sabia que não nascera para ser marginal, mas, tão logo escapasse daquela maldita engraxada, iria dedicar-se a serviços mais fáceis... Expondo-se menos aos caprichos da vida.

Não conhecera amor de pai, nem de mãe, tampouco bancos de escola. Fora totalmente desgarrado de uma sociedade que também era sua. Nunca sentira o prazer de um afago ou a satisfação de uma refeição coletiva, não, nunca sentira! Agora iria cobrar tudo àquilo que haviam lhe usurpado, custasse o que custasse. Acabara de morrer a criança ingênua e conformista que estava dentro dele, para dar vazão a mais um ladrão fabricado pela sociedade...

Na primeira noite de ação já substituíra a caixa de engraxate por um micro system e um equipamento que os bacanas chamavam de tablet, tudo em troca de um bom pescoção em um velho que estava de bobeira em uma parada de ônibus. Foda-se! Conseguia burlar com maestria as rondas da “nega”. E assim foi agindo, dia sim dia não, para não dar muito na vista. Vivia frustrado, atordoado, mas sentia-se feliz, pois conseguia todo o conforto dispensado a um ladrão que busca vingar-se de tudo aquilo que fizeram dele.

Em grandes manchetes os jornais alertavam o povo contra as suas façanhas. Agora se preocupavam com ele. Que se lascassem! Só roubava o que pensava lhe pertencer. Gargalhava de prazer, pensando que só estava se vingando das condições de vida realmente humanas que lhes foram roubadas. Tabletes, micro systems, bicicletas, roupas de grife, bujões de gás e sofisticados equipamentos de som formavam a sua grande riqueza, o seu patrimônio. Vendia tudo a preço de banana, tornando-se, desgraçadamente, um ferrenho combatente à inflação.

Em uma noite fria, quando estudava terreno para mais uma ação, aconteceu o triste desfecho de sua carreira. Estava parado próximo a uma parada de ônibus, no meio fio da rua, quando foi violentamente apanhado por um caminhão basculante, só identificado por ele, minutos antes da morte instantânea.

No outro dia os mesmos jornais das grandes manchetes sobre as suas façanhas noticiaram a morte violenta do ex-engraxate, vítima de atropelamento por um veículo não identificado pela polícia. Desta vez a noticia ocupava pequenas colunas. Imprudências de trânsito informavam eles, e só.

Assim, de maneira cruel e inumana, uma mão misteriosa exterminou o perigoso adolescente, fabrico do nosso egoísmo, restituindo à sociedade a sua tranquilidade normal... A vida segue o seu curso!

Restando o asfalto tinto e, infelizmente, a certeza de que outros jovens iguais a esse decerto virão, porque o papa-capim continua comendo carrapatos na beira da estrada...

 

Download do artigo
Autor: Francisco Antônio Saraiva De Farias


Artigos Relacionados


O Que é Direito?

Sedutora

Sem Comentário...

Medo De Ser “eu”

Instrução Normativa N.º 001 De 27 De Setembro De 2010

NÃo Mais

Fatboy Slim