Deborah e eu



DEBORAH E EU

Janeiro de 1953. O velho ônibus GMC ‘46 do Colégio dos Padres enguiça em frente à oficina de meu pai, que consegue dar-lhe um jeito. O Frade Reitor o recebe, mostra um Chevrolet preto ‘48 meio fora de forma, meu pai o repara também. Ficam amigos, e, como bônus, ganho uma bolsa e sou matriculado no 1º ano ginasial do Colégio.

Dezembro de 1958. Rio 40 graus. Aos dezessete anos, concluo o 2º Científico, entro em férias e ajudo o velho na oficina, que cresceu. Moramos na Tijuca, rua estreita e movimentada; terreno largo e comprido, residência à frente, galpão nos fundos e um corredor lateral que dá passagem a carros. Mais à direita, a esquina com uma pequena travessa, com residências elegantes e uma vila. Os fundos de duas dão para nosso terreno, separado delas por muros altos com cacos de vidro. É por ali que Deborah chega ao galpão, assustando-nos ao cair em pé dentro de um velho carter e sujando-se toda de óleo: uma gata siamesa de cor champanhe, olhos azuis e pontas das patas e do rabo bem pretas. Usa coleira dourada com seu nome gravado. Atraiu-a o aroma do bacalhau seco ao vento, velha receita europeia que minha mãe aprendeu com seus avós italianos e prepara para a ceia de Natal - dali a quatro dias. E logo se dá o amor à primeira vista entre Deborah e minha irmãzinha temporã Cecília, a quem nossa mãe, ex-pianista, deu o nome da Padroeira dos músicos. Aos dez anos, é uma capetinha morena, meu xodó. Cuido dela, ajudo nas lições, levo ao cinema, acoberto suas traquinagens...

Manhã de sábado. Enquanto Cecília corta lascas do bacalhau e os repassa à gata, chega seu dono – Tyrone. Sim, conheço-o. Estudamos no mesmo Colégio, mas ele faz o Clássico, cujo 2º ano concluiu: quer ser advogado. Mesmas idade e altura que eu, porte atlético – joga vôlei e nada no Tijuca Tênis - bronzeado, cabelos lisos e alourados, imberbe. É o Teresópolis da rua – alto, bonito e fresco. Veste o roupão de seu Clube e uma sunga vermelha. Da piscina de casa, vira Deborah fugir e viera buscá-la. Explica: os pais, cinéfilos, deram aos filhos nomes de artistas – Ingrid e Tyrone. Ao comprarem a gata, o filme do momento era O Rei e Eu, com Yull Bryner e Deborah Kerr. Vai daí...

Convida-nos a acompanhá-lo até sua casa, para aproveitar a piscina. Topo, corro ao quarto, visto calção e bermuda. Cecília se assanha, quer ir também, mas a mãe a chama para ajudar na cozinha e murmura algo ininteligível. Parece-me ouvir “efebo”, não entendo, pergunto - “Hein, mãe?” - e ela responde – “Sabonete Phebo, preciso comprar”. Tyrone, com um trejeito esquisito, levanta Deborah do chão, coloca-a no colo e grita – “Ai! Suja e fedendo a bacalhau”. Acena para meus familiares e lá vamos, ele, eu e a gata, para sua bela casa, que ele, pedante, chama de maison, na tal travessa.

Samia, a mãe, é gaúcha e filha de palestinos. Morena, cabelos e olhos negros, rosto e corpo belíssimos, beira os quarenta anos. Lá pelos dezoito, em Pelotas, ingressou na Panair do Brasil e tornou-se comissária de bordo. Seus pais tinham posses, pagaram-lhe cursos de Inglês e Francês, tornou-se fluente. Voando na linha para Buenos Aires, conhecera Érico, co-piloto de um dos Constellations da empresa. Catarinense de Blumenau, alto, vistoso, filho de alemães, dez anos mais velho. Viajando juntos, hospedando-se nos mesmos hotéis, não demorou para que se apaixonassem... e Ingrid anunciasse sua chegada. Casaram-se, estabeleceram-se no Rio, Samia deixou a Panair para evitar falatórios, e, com o pistolão de amigos para os quais costumavam trazer de fora uísques e perfumes, tornara-se uma bem sucedida vendedora de joias da Masson.

Ela veste um maiô inteiro, verde-esmeralda. Sorri, oferece uma das espreguiçadeiras, aponta-me a limonada sobre uma mesa e pede desculpas pela “invasão” de Deborah. Agradeço, sirvo-me. Pergunto por Érico, cujo De Soto ‘56 já passou pelas mãos de meu pai. Ele agora é Comandante, voou para Nova Iorque, voltará antes do Natal.

A seu lado, a exuberante Ingrid, loura de olhos verdes como o pai, num duas-peças lilás, usa um rabo-de-cavalo. Pouco mais velha que eu, concluiu o 3º ano Clássico, fez o vestibular para Filosofia, quer ser professora universitária... e noivar com Beto, o namorado rico, que acaba de buzinar seu MG conversível na porta da mansão. Entra, também em traje de banho, com a cabeça coberta por uma boina azul-marinho, para esconder a raspagem “a zero” que sofreu, como trote, na Faculdade de Medicina, onde acabou de ser aprovado. Pálido, esquálido, tímido, pergunto-me o que Ingrid viu nele. Ela e a mãe evocam duas Misses Brasil – Samia lembra Adalgisa Colombo, a atual, de 1958, e Ingrid, a baiana Marta Rocha, de 1954. Já Tyrone, à beira d’água, deita de bruços, para bronzear as costas. Tem os glúteos arrebitados, como a mãe e a irmã. Sem se voltar, dirige-se a mim – “Você tem físico definido, por acaso faz peso?”. Respondo-lhe que não, só os exercícios do Charles Atlas. Deborah se aninha em meu colo, acaricio-a e desconverso. Samia ironiza – “Essa é fêmea mesmo, adora um homem...”. Rimos, a empregada traz canapés, mergulho na piscina, dou umas braçadas, belisco algo, desculpo-me - é hora do almoço - e volto para casa um tanto ressabiado...

Janeiro de 1959. Bacalhau, agora, só na Páscoa. É a vez das sardinhas da feira de domingo, assadas na churrasqueira - um aro de roda tala larga de caminhão. Cuido delas enquanto meu pai joga sua pelada semanal e minha mãe e Cecília vão à igreja, para a Missa das dez e o trabalho no bazar paroquial, até as treze. Deborah logo aparece, querendo sua quota de peixe, e, minutos depois, chega Ingrid, de short e bustiê, para buscá-la. Cumprimento-a, parece cansada, veio correndo. Pede desculpas pela nova “invasão” de Deborah, que, alheia, degusta as sardinhas cruas que lhe dei. Ingrid vê o De Soto conversível do pai, que aguarda uma regulagem qualquer. Abre a porta da direita, senta-se no banco inteiriço e estica as pernas sobre o painel largo. “Ah, cansei!”, diz, arfante. Abro a geladeira do galpão, busco uma Coca-Cola; ela vê outro tipo de garrafa – “Hum... Faixa Dourada...”. Rio, apanho a Antarctica Pilsen e dois copos que gelam junto dela. Abro-a. “Sem colarinho”, pede Ingrid. Sirvo-a. Entro no De Soto, sento no lado do motorista e encho meu copo. Brindamos e bebemos. No cinzeiro aberto há um maço de Chesterfield pela metade e um pequeno isqueiro Monopol, feminino, que já vi em outro carro. Ponho-o no bolso sem que ela perceba. Ela pega o maço e comenta – “Ué, meu pai fuma Camel”. Retira um cigarro. Giro a chave de ignição, ligo o acendedor; ele salta, puxo-o e ofereço-o a Ingrid, que segura suavemente minhas mãos enquanto acende o cigarro. Ligo o rádio do carro; na Tamoio, Johnny Mathis entoa Misty“I get misty just holding your hands...” Ela bebe mais um gole, tira uma lenta baforada, desce as pernas do painel, pousa ali o copo. Solta os cabelos curly hair, pousa as mãos sobre minhas coxas e se aproxima, lábios entreabertos, cantarolando “I get misty, the moment you’re near”.  Deborah sobe ao capô e nos fita. Sorrimos. Nossos rostos estão bem próximos. Sinto seu perfume Arpège e mergulho.

Fevereiro de 1959. Tarde de uma terça-feira quente. Bato à porta da casa nº 3 da vila em frente à maison de Deborah. Nelly atende. Balzaquiana, morena, bonita, desquitada, um tanto extravagante nas roupas, maquiagem e atitudes - femme fatale, dizem. Mora com uma tia idosa, viúva, surda e catacega. Tem um Pontiac ’55 , também freguês de meu pai. Cumprimenta-me, afável. Retribuo e entrego-lhe um pequeno volume embrulhado em papel de seda. Ela abre e vê o isqueiro Monopol e o que restou do maço de Chesterfield. Sorri, convida-me a entrar. Ventilador da sala ligado, aponta-me o sofá, sento-me. Traz suco de caju, senta-se a meu lado e agradece a devolução de seus pertences. Não perguntou onde os achei, nem eu disse. Ouço o ronco da tia, longe. Nelly cruza as pernas bem torneadas; a barra da saia vermelha fica muito acima dos joelhos. Ela segura minha mão, beija-me de leve o rosto e sussurra – “Obrigada”... 

Deixo a casa de vila uma hora depois, um tanto estupefato. Deborah está no muro em frente, pula em minha direção. Tyrone vem chegando, vê de onde saí, franze a testa e os lábios, irônico, e me chama. Cumprimento-o e ele propõe um estudo conjunto: é bom em História, fraco em Física. Eu sou o oposto. “Que tal um troca-troca”, pergunta, malicioso. “Néris de pitibiriba”, respondo. Mas combino estudarmos juntos um dia.

Março de 1959. Seis da tarde, acabamos o estudo no escritório de Érico, que viaja. Naturalmente, ouvimos Ray Conniff, Elvis Presley, Nat King Cole e outros. Ingrid saiu com Beto, para minha tristeza. Despedimo-nos. Tyrone sobe para tomar banho. Dirijo-me à cozinha, sairei pelos fundos. Deborah junto, enroscando-se em minhas pernas. Samia prepara o jantar. Usa um peignoir rosa, translúcido, que me permite ver a sombra da lingerie. Imita Edith Piaf, num Francês perfeito – “Quand Il me prend dans ses bras, Il me parle tout bas... Não resisto e respondo, arranhando – “Je vois la vie en rose...” Ela se volta para mim, sorridente. “Boa tarde, Vitor. Já vai?”. Respondo que sim. Já soube, por Tyrone, que ela descobriu guimbas de Chesterfield no cinzeiro do carro... com batom! Crise conjugal, culpa de Ingrid, mas não ouso delatá-la – afinal, os cigarros eram de Nelly...  Samia me pede ajuda para levar uma trouxa de roupa suja à lavanderia, junto à garagem. Atendo-a. Deborah vem junto, mas Samia a enxota. Pouso a trouxa sobre a máquina de lavar e escuto o “click” da porta de mola do quartinho se fechando. De longe chega a voz de Tyrone imitando Paul Anka em Diana. Ela passa o trinco, aproxima-se e murmura – “Ele leva uma hora no banho...”. Sensualmente desfaz o laço dos cadarços que fecham o peignoir e, como na canção, eu vejo a vida cor-de-rosa...

 Dezembro de 1959. Para manter a bolsa, tive de concluir o Científico no Internato, em Minas. Volto após dez meses, o Exército me espera. Cecília e os velhos me abraçam. Relaxo, repartimos a cerveja de meu pai e os bolinhos de bacalhau de minha mãe. Contam-me as novidades. Érico fugiu com Nelly, Samia voltou para o sul, Ingrid engravidou de Beto, Tyrone foi ser diplomata. Sumiram todos, a maison foi vendida.  “Foram-se os meus amores de verão”, penso com meus botões. Ledo engano -  um furacão cor de champanhe e olhos azuis salta sobre mim e fareja a bandeja de bolinhos. Refeito do susto, solto uma sonora gargalhada, enquanto acaricio Deborah.


Autor: Gil Ferreira


Artigos Relacionados


O Ter E O Ser Se Coadunam?

O Casamento Do Dízimo E Da Oferta Bíblica

Promessas

Sombra E água Fresca

Na Sua Opinião Os “símbolos” (abstratos Ou Concretos) São Iguais, Para Todos? Sim Ou Não? - Ii

Aprendizados Bíblicos Sobre A Oração (parte 2 De 7)

"viajantes"