Psicanálise e infância: revisitando a obra de Françoise Dolto



Psicanálise e infância: revisitando a obra de Françoise Dolto

La psychanalyse et l'enfance: revisiter l'oeuvre de Françoise Dolto

Harrison Rivello Louro

 

Resumo: Psicanálise e infância se encontram desde a invenção do legado freudiano. Já nos primeiros trabalhos de Freud é possível entrever a importância por ele dada ao infantil, sobretudo à sexualidade e sua relação com os processos inconscientes. Todavia, Freud não amplia a psicanálise de crianças a partir de sua técnica, tarefa que ulteriormente coube à outros analistas que, não obstante as divergências, trouxeram enormes contribuições à psicanálise de crianças. O presente trabalho pretende revisitar os conceitos elaborados pela psicanalista francesa Françoise Dolto, no que tange ao atendimento psicanalítico de crianças. Considerada uma grande personalidade da psicanálise, desenvolveu conceitos originais a partir de sua experiência clínica e de sua singular escuta.

Palavras-chave: Infância. Psicanálise. Psicanálise de crianças. Françoise Dolto.

Résumé: La psychanalyse et l'enfant sont de l'invention de l'héritage de Freud. Dans les premières œuvres de Freud peut entrevoir l'importance qu'il attribue à l'enfant, en particulier la sexualité et leur relation avec les processus inconscients. Cependant, Freud ne s'étend pas la psychanalyse avec les enfants à partir de leur tâche technique qui est tombé ensuite à d'autres analystes que, malgré les désaccords, des contributions apportées à la psychanalyse d'énormes avec des enfants. Cet article se propose de revisiter les concepts développés par les Français psychanalyste Françoise Dolto, en ce qui concerne le traitement psychanalytique des enfants. Considéré comme une grand personnalité de la psychanalyse, a développé les concepts originaux de son expérience clinique et son écoute unique.

Mots clefs: Enfance. Psychanalyse. La psychanalyse avec les enfants. Françoise Dolto.

 

Desde a criação da psicanálise por Sigmund Freud, a infância vem se impondo e se difundindo em nossa cultura como algo indelével. A indissociabilidade entre psicanálise e infância se dá na inauguração do próprio discurso e legado freudiano, que a insere na base da interpretação dos males psíquicos. A primeira direção dada por Freud foi a postulação da cena sexual ocorrida na infância do sujeito, que produziria, ulteriormente na adolescência ou na vida adulta, sintomas psíquicos. Um infantil, digamos, adjetivado, que se refere a uma cronologia do sujeito. A partir disso, é possível imaginar como as postulações freudianas foram impactantes para as sociedades do século XX, onde situar a infância como palco de cenas sexuais era algo um tanto repulsivo. Mas Freud foi além: não bastando descrever a sexualidade na infância, também a considerou, por um certo caráter excessivo, uma financiadora das neuroses dos adultos.

 

O primeiro trabalho freudiano a abordar o sofrimento psíquico de uma criança ocorreu em 1909, com a publicação de Análise de uma fobia em um menino de cinco anos, ensaio também conhecido como “O Pequeno Hans”. Freud tencionava, a partir deste caso, além de aliviar sintomas, dar um novo impulso às suas teorias sobre a sexualidade infantil, sobretudo acerca do complexo de Édipo. No entanto, ele se depara com uma dificuldade técnica, que se resume na questão da linguagem verbal da criança, que, para ele, é restrita. Desta forma, não obstante toda a sua contribuição, Freud não amplia a análise de crianças de forma técnica. Em 1933 publica as Novas conferências introdutórias sobre psicanálise, onde registra que a psicanálise de crianças é um campo a se obter os maiores êxitos, ressaltando a influência da relação com os pais no tratamento, embora a mesma se faça necessária.

 

Mas a psicanálise de crianças nos é apresentada hoje com uma história um tanto peculiar. Passando por Hermine von Hug-Hellmuth (1871 - 1924), próxima a Freud e considerada por ele a primeira analista de crianças, podemos ainda citar a também vienense Melanie Klein (1882 - 1960). Esta última, junto a Donald Woods Winnicott (1896 - 1971), contribuiu consideravelmente para o desenvolvimento da escola inglesa. A psicanálise de crianças, ainda na Inglaterra, contou com a presença (não tão marcante quanto a de outros analistas, mas historicamente considerada) de Anna Freud (1895 - 1982), também analista e última filha de Sigmund e Martha Freud. Klein e Anna Freud: duas analistas marcadas por divergências em relação à psicanálise de crianças, sobretudo à formação teórico-prática.

 

Na França, destacamos a pioneira Sophie Morgenstern (1875 - 1940), conhecida por suas ideias sobre o desenho, o brinquedo e a forma diferenciada de compreender as relações parentais. Esta exerceu enorme influência sobre outra analista, também francesa, da qual discorreremos a partir de agora.

 

Françoise Marette nasceu em 6 de novembro de 1908, em Paris, e é considerada, com Jacques Lacan, do qual foi fiel amiga, a segunda grande personalidade do freudismo francês (Roudinesco, 1998, p. 157). Desde cedo dizia que seria uma “médica de educação”, fruto de um desejo, segundo alguns comentadores, de proporcionar uma vida melhor para as crianças. Melhor, neste caso, do que fora sua própria.

 

A jovem Françoise teve uma infância marcada por inúmeras dificuldades, que contou desde incômodos com sua aparência à graves desentendimentos com a mãe. Aos 12 anos perdeu sua irmã mais velha em consequência de um câncer, o que agravou ainda mais a qualidade da relação com a mãe. A mãe, Suzanne Marette, que a culpava por não ter rezado o suficiente a fim de salvar a irmã.

 

Quatorze anos mais tarde, inicia uma análise com René Laforgue, que foi fundamental para Françoise. Como analisa Roudinesco,

 

Françoise tornou-se outra mulher: uma mulher consciente de si mesma e não mais alienada, uma mulher capaz de sentir-se sexualmente mulher ao invés de ter de si mesma uma imagem infantil e mortífera (1998, pp. 157-58).

 

Resolve estudar medicina, sobretudo especializar-se numa pediatra convicta em tratar crianças de forma inovadora. Seus contatos com Édouard Pichon (1890 - 1940), primeiramente, e com Sophie Morgenstern, posteriormente, a torna psicanalista. Em 1938 ingressa na Sociedade Psicanalítica de Paris, defendo sua tese de medicina em 1939, onde busca relacionar pediatria e psicanálise. Começa aí a sua grande jornada a partir do tratamento psicanalítico de crianças. Em 1942, casa-se com o médico russo Boris Dolto, com o qual teve três filhos. A parisiense Françoise Marette passa a assinar Françoise Dolto.

 

Em 1949, impressiona muitos membros da Sociedade Psicanalítica de Paris com sua exposição do caso de Bernadette, uma criança psicótica com dificuldades graves de expressão verbal. A partir deste caso, Françoise Dolto sugere à mãe de Bernadette que confeccione um objeto singular: uma boneca de tecido, sustentada por uma haste e com uma flor de margarida representando o rosto. Isso permitiu que a criança projetasse suas pulsões de morte no objeto e começasse a falar. O caso foi um verdadeiro precursor de uma das principais postulações de Dolto, a imagem inconsciente do corpo, que será exposto adiante. Embora o presente artigo não tenha pretensões biográficas extensas, cabe aqui ressaltar que Françoise Dolto faleceu em 25 de agosto de 1988, aos seus 79 anos, de complicações pulmonares. Deixou uma vasta bibliografia, entre livros, entrevistas, artigos e transcrições de seus seminários, além de gravações em áudio e vídeo.

 

A obra de Françoise Dolto nos apresenta teorizações inovadoras e, sobretudo, originais, uma vez que era tida como uma analista autêntica e genial. As falas e as reflexões de Dolto eram também conhecidas como emanações de sua clínica e de uma escuta singular do inconsciente. A seguir, discorreremos sobre os conceitos fundamentais da autora.

 

Para Dolto, o ser é inscrito num mundo transgeracional. É ser de linguagem e de linhagem, o que fez a autora pensar no termo filiação linguageira para dizer que a fonte de seu desejo vem desde a concepção. Ela faz uso do termo encarnação para ilustrar que, ao nascer, já existe um primeiro desejo de se assumir; um devir desejante. Somente assim o bebê pode ser lançado num espaço triangular. Ledoux destaca que

 

Françoise Dolto chegava até a afirmar que a criança escolhe seus pais: por isso tem deveres para com eles, assim como os pais os têm em relação a ela (1991, p.19).

 

Uma forma mais do que elegante de dizer que a introdução no campo da linguagem é antes um desejo de ser.

 

Dolto introduz dados importantes no que se refere à relação mãe-bebê. Para ela, a triangulação é concepcional, sendo o nascimento uma consumação do encontro de três desejos. Uma díade que será tríade. Mas enquanto díade, é preciso que o bebê fundamente sua existência, seu desejo de ser, através da relação com um outro tutelar. Essa relação é a primeira e principal segurança narcísica, que é o que permite a mediação de percepções. São as percepções do bebê que lhe dão as condições de ser falante e receptivo, à espera de trocas linguageiras vocais ou gestuais. Segundo Dolto, aí está o que ela chamou de comunicação interpsíquica. Quando o infans não encontra respostas aos seus apelos por trocas, perde-se da mediatização das vivências que lhe dão sentido. É o que ocorre na ausência da mãe, que promove uma descontinuidade no que Dolto chamou de co-ser da criança.

 

Imaginemos uma alternância, conforme propôs Dolto, no co-ser com a mãe e o não-co-ser. Para a autora, ainda que temível, essa alternância é também pontuadora, pois inicia a experiência da falta no fluxo temporal do infans e espacial da mãe. A mãe também deseja em outros lugares. Não obstante existem configurações diversas da relação mãe-bebê, Dolto sinaliza para as consequências, graves ou não, de eleger o bebê como objeto reparador, excessivamente erotizado. Como nos diz Dolto: “... considero que a mãe tanto pode ser símbolo da morte quanto da vida” (1988, p. 84).

 

Dentre as diversas singularidades das ideias de Dolto, destaca-se a função do pai, que, na relação mãe-bebê, tem a função primordial, e humanizante, de tirar a criança de uma situação regressiva e puramente imaginária com a mãe. Ele é o eixo da tríade, de função separadora, que visa indicar sua lei dissociativa à criança. A mãe não pertence à criança, assim como a criança não é o seu produto. O pai é a barra do choro e do sorriso e de toda a sua necessidade no contexto da díade. Esse princípio doltoiano, diga-se, coincide com a ideia de Jacques Lacan do pai como um privador do objeto.

 

Dolto nos traz também uma noção de castração que, embora não superponha a noção freudiana, é bastante original. Ela mantém a castração no status da Lei, como uma experiência de separação simbólica e operacional. Não obstante “lei” possa significar uma repressão, como noção geral, Dolto a trata psicanaliticamente como iniciadora, humanizante e, em outro tempo, sublimatória. Ao interditar um desejo, a castração permite outros encontros pulsionais. Veremos a seguir as consideráveis castrações simboligênicas de Françoise Dolto.

 

A primeira castração doltoiana é a castração umbilical. Dolto lança mão deste termo para explicar, sobretudo, a passagem de um meio líquido para um meio aéreo, a perda de uma condição essencial à vida do bebê. É uma saída difícil, embora primordial, onde o bebê perde a segurança do corpo inteiro (Dolto, 2001). Essa perda, esse desencontro com o único estado vital até então conhecido, significa um importante momento simbólico, como se a alternativa fosse “saia de teu envoltório, é tua placenta ou a morte” (Ledoux, 1995, p. 217). É uma cicatriz que permitirá ao bebê um sopro pulmonar, o primeiro contato com o ar, a fundação de seu esquema corporal e o reconhecimento dos limites do corpo. Para Dolto, a castração umbilical é a primeira fonte vital simbólica, concomitante ao nascimento, ainda que esteja ao nível do narcisismo dos pais. É como imaginar que o bebê, a partir de agora, necessita de um outro objeto além da ligação umbilical.

 

Dolto, em seguida, nos traz a noção de castração oral, concomitante ao desmame. A criança é privada aqui de uma parte de si mesma, o leite, separando-se, ao mesmo tempo, do objeto parcial seio. Ante a proibição do corpo-a-corpo, instaura-se na criança o desejo da fala, pois permite à relação mãe-bebê comunicar-se de outros modos que não pelos cuidados corporais. Dolto não permite em suas teorizações uma noção de substituição a partir de uma castração. Opta por transmutação, transmudar-se. Ou seja, a castração oral viabiliza uma nova vicissitude para as pulsões orais: o comportamento linguageiro.

 

A terceira e última é a castração anal, que permite a separação da mãe em relação à uma dependência excrementícia. Ou seja, marca a término da assistência ao corpo e o início da autonomia motora da criança. Para Dolto, existem duas acepções acerca da castração anal. A primeira, é o reconhecimento do agir da criança, da possibilidade de autonomia. A segunda, que se articula com a primeira, é o acesso ao dizer. Dolto nos diz que as pulsões da criança deixam de ser, em parte, obstruídas, permitindo trocas lúdicas e socializadoras e o prazer na intersubjetividade. É o reconhecimento dos limites. Dolto adverte ainda sobre o qualidade da castração anal, não devendo esta nunca assumir o desejo de controle, de mutilação ou de adestramento.

 

Um dos conceitos mais originais de Françoise Dolto, de unanimidade entre os comentadores, é a supracitada imagem inconsciente do corpo. Literalmente original por ser estruturante em toda sua obra e por estar de forma íntima ligado à sua prática analítica com crianças. Trata-se, primeiramente, de uma amarração do corpo e do psíquico proposta por Dolto. O corpo e sua imagem inconsciente é aquele que não existe sem linguagem, que é um substrato relacional do sujeito com o outro (Dolto, 2001).

 

Dolto enfatiza que sua ideia de imagem inconsciente do corpo não se refere à imagem especular; refere-se à uma questão de identidade. Todavia, a autora trata a construção das imagens do corpo como pré-especulares. O espelho que, para Dolto, é uma assunção do sujeito em seu narcisismo. Entretanto, é preciso que o estádio seja para o sujeito um efeito de corpo próprio-integração; que ele reconheça este corpo como sendo o seu e, sobretudo, seja uma mais-valia de suas pulsões, a natureza de seu afeto (Dolto, 2001).

 

O sujeito, em sua origem, é fonte autônoma de desejo, portanto vai ganhando um corpo imerso em linguagem e se apoiando em seus vínculos mais imediatos, que são substanciais. Nesse sentido, entendemos por substancial todos os objetos parciais que permitem trocas, bem como as sutilezas das percepções. Os afetos e as palavras se associam às vivências corporais, marcando de forma somato-psíquica o infans e permitindo atividades representativas. Quando trazemos a ideia da imagem do corpo como uma marca da clínica e da obra de Dolto, queremos dizer que as inconsistências dessas imagens são reveladas pelas crianças a posteriori, a partir do desenho e da modelagem. A imagem do corpo é um vestígio das representações precoces do sujeito, sobretudo do momento em que estas foram elaboradas. É importante destacar ainda que a imagem do corpo diferencia-se do esquema corporal. Para Dolto,

 

O esquema corporal é uma realidade de fato, sendo de certa forma nosso viver carnal no contato com o mundo físico. Nossas experiências de nossa realidade dependem da integridade do organismo, ou de lesões transitórias ou indeléveis, neurológicas, musculares, ósseas e também, de nossas sensações fisiológicas viscerais, circulatórias (2001, p. 10).

 

Dolto utiliza de um exemplo para nos explicar a diferença fundamental entre imagem do corpo e esquema corporal. Uma criança paraplégica que projeta, apesar de sua enfermidade no corpo, uma imagem do corpo. Ela encontra na mãe alguém que aceita, com ela, este jogo projetivo. A mãe lhe fala sobre correr, saltar e atividades que as crianças de sua idade fazem. Ou seja, permite trocas simbólicas por meio de palavras e representações gráficas; e ali pode-se encontrar seus fantasmas e suas satisfações. Um brincar verbalmente, como escreve Dolto (2001).

 

Uma criança com um déficit físico deve ter em palavras o seu passado, sua diferença congênita em relação às demais crianças e, sobretudo, poder expressar-se a partir de suas trocas. Como observa a autora, a imagem do corpo é estrutural e está ligada às relações intersubjetivas tutelares, enquanto o esquema corporal se sustenta na fisiologia corporal, ou, como nos traz Dolto, no viver carnal.

 

Françoise Dolto ainda aprimora sua noção de imagem do corpo a partir de três aspectos. O aspecto estrutural se refere à imagem de base, que corresponde ao ser em sua coesão narcísica (uma continuidade de ser e uma mesmidade de ser), sendo que qualquer ameaça a esta imagem pode ser sentida como mortífera; à imagem funcional, que é enraizadora e veicula as pulsões de vida; e à imagem erógena, que se refere às relações com o outro, relações de prazer e desprazer. Essas imagens descritas, segundo Dolto, podem ser entretecidas pela imagem dinâmica, que é nada mais que o advir do desejo e o direito de desejar do sujeito, que depende de concessões dos adultos tutelares.

 

O segundo é o aspecto genético, que são as reformulações da imagem do corpo, o reconhecimento da imagem. Tem, portanto, um contexto especular.

 

Por fim, o aspecto relacional, que se ordena no sentir e no dizer do outro. A fala do outro é o substrato da imagem e organiza o cruzamento entre imagem do corpo e esquema corporal.

 

Abordemos a questão edípica na obra de Françoise Dolto. Ela situa o complexo de Édipo no desejo que ocupa o imaginário, num momento já de autonomia e de manutenção do corpo da criança. Menino e menina estabelecem uma relação primária com a mãe, e são as castrações simboligênicas, também primordiais, que encaminham o sujeito para o Édipo. Ou seja, a superação da angústia primária de castração é que inicia o sujeito na realidade de seu corpo, dando início à problemática de seu sexo. Este é o momento (do desejo) de atingir um corpo adulto e tentar retirar o genitor de seu lugar. A fase edípica caracteriza-se por ser um tempo onde a criança

 

“observa todos os detalhes do comportamento e da vida dos outros e igualmente a natureza” (Dolto,1996, p.181)

 

Para Dolto, a menina se descobre menina a partir de seu sexo, e não a partir da menina que lhe é dita ou de sua forma de se vestir ou de ser penteada, por exemplo. A menina perceberá o seu sexo junto a um suposto semelhante (Dolto, 1996): um menino. Uma decepção inquieta a respeito do pênis que lhe falta tão logo se manifesta e, a partir de palavras tranquilizadoras ditas, sobretudo pela mãe, é preciso que haja uma conformação de ser. As palavras maternas lhe permitirão certificar de que, mais tarde,

 

terá seios como as mulheres, e também de que trará filhos ao mundo, como sua mãe; mas é-lhe impossível imaginar que esses filhos sejam outra coisa senão excrementos singulares, mágicos, procedentes de uma ingestão oral” (Dolto, 1996, p.181).

 

Essa conformação ingressa a menina no campo do feminino. A castração é um momento para a menina que marca sua entrada no Édipo. Todas as suas pulsões orais e anais são dirigidas para esse campo, como o coleguismo, e toda sua rivalidade, as tarefas domésticas ou quaisquer outras ações que visam ativar o interesse do sexo oposto.

 

O menino, diante de sua diferença de sexo, transforma o pênis num glorioso e valorizado instrumento, ainda que lhe seja misterioso. É um apêndice, embora altamente erógeno, de função exclusivamente mictória. Mas toda essa glorificação, que faz o menino exibir-se ainda mais, apresenta para ele perguntas mudas sobre o sentido de se ter um pênis, sobretudo de ser ter ereções. Ao observar o sexo da menina, pode experimentar uma angústia especular de constatação, vendo ali, em seu suposto semelhante, uma mutilação. São as palavras do pai, sobretudo, que poderão confirmar suas constatações, dar um sentido às ereções e à função paternal.

 

Françoise Dolto, ao longo de toda sua obra, preocupou-se com a ética psicanalítica, em parte influenciada por sua leitura freudo-lacaniana, em parte construída a partir de seu estilo próprio. Estilo que se construiu nos seus quarenta anos de experiências clínicas com crianças e adolescentes.

 

Recusando-se a aceitar a psicanálise como uma especialidade, deixou palavras que inovaram a técnica. Tratou da dimensão subversiva da psicanálise; psicanálise, que segundo Dolto, não é algo que se põe a serviço de cuidados e necessidades, mas sim do sujeito e do seu desejo. A psicanálise está no adulto como também na criança que este foi, e essa visão de Dolto marcou, posteriormente, sua forma de trabalhar com os pais e de estruturar suas entrevistas preliminares.

 

Muitas crianças repetem o que foram seus pais, e esta não é uma questão moral, ou de bem ou mal, mas de sofrimento de gerações. Dolto dizia que uma mãe tem o pleno direito de não querer criar seu filho, de negar sua tutela a este. Para tanto, no contexto da adoção, é indispensável, independente de seu tempo, dizer ao bebê sobre sua filiação, sobre sua mãe, sobretudo, e sobre seus novos tutores. Em Dolto podemos encontrar a ideia de que as palavras têm, sim, importâncias simbólicas, mas os não-ditos são os mais patológicos. Uma palavra não-dita sobre a história de um sujeito pode vir a ser um silêncio angustiante.

 

Dolto discutiu amplamente a psicanálise de crianças e a função do analista. Para Dolto, é fundamental ouvir o cotidiano da criança e, sobretudo, sua genealogia, seus mortos, seus heróis, seus silêncios e seus segredos. Todos os detalhes devem fazer-se ouvir, como a forma de brincar, o sono e a relação com os parentes. Ela adverte sobre os riscos da normalização imposta e o abuso do poder dos adultos sobre as crianças. As crianças não podem ser um “brinquedo de outros”, um objeto do qual se fala e que constantemente é aniquilado como sujeito. Ela provocou categoricamente a tradição que chamou de “adulto-centrismo” (Dolto, 2005).

 

Dolto rejeitava o trabalho com brinquedos. As crianças tinham à disposição sua fala, lápis e massa de modelar, e tudo era dito. Dizia-se de tudo, mas não se fazia tudo. Um desenho pode ser compreendido como uma fantasia, uma revelação da imagem do corpo ou uma projeção; mas, sobretudo, é preciso que a criança fale sobre sua produção, que associe livremente. Toda produção, todo agir e todo falar são testemunhos da relação transferencial com a criança. Deve-se, no tocante da transferência, escutar as crianças ao nível de suas idades, de suas falas, de sua subjetividade. E essa escuta só é permitida a partir das imagens do corpo e de suas bases.

 

Traduzia na língua da criança o que ela estava sentindo, ensinando que o maior desafio é ouvir as crianças segundo o seu pensamento e seu expressar, sem para isso ter de sair da posição de analista. As crianças foram seus mestres.

 

Em 1980, Françoise Dolto, junto a outros colegas, fundou em Paris a Maison Verte, uma instituição com o objetivo de facilitar as relações das crianças com seus pais, numa época em que França vivia um momento de muita fragilidade nas relações de sociabilidade. No espaço, as crianças podiam brincar desenvolvendo livremente sua autonomia motora, mas não sem algumas regras, como brincar com água somente utilizando avental e não ultrapassar os limites estabelecidos no espaço de convivência. Era permitido às mães conviverem com outras mães e os pais com outros pais, e isso dava ao espaço um status nem de escola, nem creche, mas sim de um lugar de vida, de convivências e trocas. No final dos anos 1980, as casas de acolhimento de pais e crianças, inspiradas na Maison Verte, se multiplicaram na França. Como a própria Dolto nos relata:

 

A transformação operada nas mães que frequentam a Maison Verte é espetacular. Elas têm tempo para pensar e para ser, ao passo que antes eram atropeladas por suas crianças que as devoravam (…) A criança se ocupa, a mãe se ocupa, elas se comunicam, não ficam mais coladas uma à outra (…) e o pai também, quando chega aqui, descobre seu filho com outras crianças; ele descobre sua mulher com outras mulheres (…) ele se descobre em uma dimensão de pai e ao mesmo tempo de esposo em relação a sua mulher (Dolto, 2005,p. 345)

 

A obra de Françoise Dolto no Brasil, embora existam muitos títulos já traduzidos e publicados, bem como artigos sobre a autora, ainda necessita de uma maior difusão. Conhecer toda a sua originalidade e dar de encontro com sua escrita e sua fala requer, primeiramente, um desejo de escuta para com as crianças. Quando escreve que “todo aquele que se põe a ouvir a resposta das crianças é um espírito revolucionário” (Dolto, 2005), ela quer nos dizer que o saber psicanalítico, sobretudo sua forma de escutar os sintomas, pode auxiliar pais e professores a compreenderem melhor as crianças. Para ela, seja qual for a posição social do adulto, é primordial sua disponibilidade para entrar em contato verbal e afetivo com as crianças. É preciso falar com elas de seus desejos, recusando a satisfação e a consumação total do corpo. É isso que permite a introdução de toda criança na cultura. Compreender a criança na cultura a partir de Françoise Dolto é um exercício único, pois é na cultura que encontramos todos os deslocamentos de objetos, toda essa dinâmica desejante que serve à linguagem e à comunicação entre os sujeitos. Françoise Dolto, por sua ética, pelo seu senso de valor humano e pela sua confiança no outro, fez da vida um lugar acima de qualquer saber.

 

Referências bibliográficas

 

Cifali, M. (Org.) (1989). Seguindo os passos de Françoise Dolto (Beatriz Sidou, trad.). Campinas: Papirus.

 

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Autor: Harrison Rivello


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