Publicidade em julgamento sem premissas falsas



“Penso, logo existo”. Esta foi a síntese que René Descartes encontrou para explicar que a realidade era dividida em res cogitans (consciência, mente) e res extensa (matéria). E, com seus conceitos, influenciou o pensamento ocidental desde o século 17 até hoje. Como se o corpo e a mente pudessem ser considerados separadamente, como se a medicina pudesse viver apenas de especialidades, como se o homem pudesse ser comparado a uma máquina em que as células não crescessem nem se transformassem, como se a economia pudesse prosperar com medidas reducionistas, e assim por diante... A obra de Fritjof Capra é bastante esclarecedora dos males que essas falsas premissas nos causaram.

No Brasil existe o Instituto Alana que, definitivamente, não tem o poder de influenciar a humanidade assim como fez Descartes, mas também se baseia em premissas falsas para procurar convencer famílias e até legisladores de que a publicidade é o “patinho feio” da sociedade. Em relação às crianças, então, nem se fala!

Segundo seu website, o Instituto Alana tem como missão promover a educação, a cultura, a proteção e o amparo da população em geral, visando a valorização do homem e a melhoria da sua qualidade de vida, conscientizando-o para que atue em favor de seu desenvolvimento, do desenvolvimento de sua família e da comunidade em geral....

É também incumbência do Instituto desenvolver atividades em prol da defesa dos direitos das crianças e dos adolescentes relacionadas a relações de consumo em geral, bem como ao excessivo consumismo ao qual são expostos.

Vamos começar definindo consumo consciente e consumismo. Segundo texto da Escola Superior de Propaganda e Marketing para os Indicadores de Sustentabilidade da Comunicação (www.indicadorsustentavelabap.com.br) o consumismo pode ser estudado assim: “O consumo compreende um conjunto de práticas sociais e culturais fortemente relacionadas à identidade do sujeito, como direito do qual não pode ser excluído. O consumidor é, portanto, um ator social, não simplesmente econômico. Na linguagem corriqueira, contudo, consumir costuma ser associado a consumismo, conceito ligado a gastos inúteis e compulsões irracionais (CANCLINI, 1995: 51). Nessa perspectiva, o consumismo pode ser definido como a mercadorização do próprio consumo, ou, em outras palavras, como o fenômeno que desliga o ato de consumir de seus objetos (tangíveis ou não), gerando a prática esvaziada de “consumir o consumo”. Essa questão é trabalhada por diferentes enfoques, tais como o psicanalítico (compulsão), o sociológico e o antropológico. Jesus Martin-Barbero e Nestor Garcia-Canclini, entre outros autores, discutem essas questões”.

Cabe uma observação. O consumismo não é fruto da publicidade, mesmo porque a publicidade não é a única forma de comunicação existente. A mais antiga é o boca a boca, que hoje se potencializa através da internet e das mídias sociais. Então, vejamos: a propaganda de bebidas alcoólicas induz ao consumismo, ou seja, ao alcoolismo? Não. O que induz ao alcoolismo são as condições pessoais e sociais dos indivíduos que favorecem o excesso. Aliás, as bebidas alcoólicas já eram consumidas no Egito, em Roma, nas tribos indígenas e em praticamente todo o mundo muito antes que as mídias de hoje fossem inventadas. O mesmo se dá com as drogas ilícitas, que são consumidas e podem viciar, mas não são anunciadas.

A publicidade não faz milagres. Ela só pode ser bem sucedida se houver uma tendência, uma predisposição para o consumo daquele bem. A publicidade não consegue vender carne para vegetarianos, aumentar consideravelmente as vendas de sorvetes no inverno, induzir esquimós a comprarem geladeiras... Mas ela pode, sem sombra de dúvida, estimular a adoção de alimentos orgânicos, educar populações rurais para a higiene pessoal dos sabonetes e da escovação dentária, mostrar ao público feminino as vantagens dos absorventes íntimos, promover o desenvolvimento sustentável e a economia verde.

Bobagem dizer que só a televisão vale por tudo. E as vitrines? As gôndolas de supermercados? O boca a boca? A internet? A mídia exterior? As novas formas de mídia digital que surgem a cada dia? É preciso entender que a nossa sociedade não é uma massa uniforme de gente. A sociedade é de múltipla opção: um indivíduo pode ter um carro e uma bicicleta na garagem, pode se vestir ora como executivo, ora como hippie ou esportista. Somos também multimídia, consumimos TV aberta e fechada, navegamos na internet, frequentamos eventos segmentados. O todo é o conjunto das múltiplas funcionalidades e interações. Então, tratar adultos ou crianças como uma massa de seres uniformes é uma das mais falsas premissas.

O Instituto Alana afirma que as crianças com idade até 11 anos não têm capacidade crítica para serem expostas a comunicações mercadológicas, mas diz também que elas influenciam as compras dos seus pais. No mínimo, um paradoxo.

Ao mesmo tempo, o Media Smart ensina crianças de 6 a 11 anos de idade a analisar criticamente a publicidade a que estão expostas. Em que pesem opiniões de educadores solicitando a proibição da propaganda para crianças, o Media Smart afirma que “existem vários estudos que confirmam que o nível de maturidade das crianças e a sua capacidade de adquirir sentido crítico dependem das circunstâncias culturais, econômicas e sociais em que se desenvolvem. Um programa de educação sobre a publicidade, como o Media Smart, ajuda professores e pais a fornecer essas competências mais rapidamente e de forma mais eficaz”.

“O Media Smart pretende ajudar as crianças a desenvolver capacidades de compreensão e interpretação da publicidade desde muito cedo. Os materiais do programa Media Smart foram elaborados de forma a desenvolver as capacidades das crianças para ler, compreender, apresentar, discutir e escrever sobre anúncios em papel, bem como em imagem fixa e /ou movimento”.

O Instituto Alana poderá verificar que, apenas no Reino Unido (http://www.mediasmart.org.uk/about-take-up.php), 9.397 escolas primárias requisitaram os materiais do Media Smart, que atua também na Alemanha, Noruega, Bélgica, Suécia, Finlândia, Portugal e Hungria. Afinal, quando se trata de mudar hábitos, educar é muito mais inteligente do que proibir. E, se alguma coisa deve ser proibida, são os produtos comprovadamente maléficos. O consumo deles não cessa se a publicidade é proibida. Uma das evidências são as cracolândias.

Na contramão do consumismo está o CONSUMO CONSCIENTE. É o comportamento de consumo que busca o equilíbrio entre a satisfação pessoal, a preservação do meio ambiente e o bem-estar da sociedade, refletindo sobre o que consome e prestigiando empresas comprometidas com a responsabilidade social. Fonte: Instituto Akatu Pelo Consumo Consciente (http://www.akatu.org.br). O que se pretende evitar, principalmente, são os excessos, o desperdício, já que não podemos negar consumo às populações que estão chegando a níveis econômicos mais elevados ou àqueles que vivem como miseráveis. Humanitariamente, todos têm o direito de ter. É suprema a felicidade de ter filhos, alimentos, vestuário, moradia, saúde, educação, entretenimento, bem estar...

E se reduzíssemos drasticamente o consumo, mesmo para as classes mais favorecidas? Duas calças jeans para cada um. Ponto. E assim nas várias categorias de produtos e serviços, numa escalada espartana. Fecharíamos milhares de fábricas e lojas, perderíamos os empregos, todos estariam equalizados na miséria – uma sustentabilidade às avessas.  Será que alguém pensa neste cenário quando generaliza as compras na categoria consumismo?

Agora vejamos como o Instituto Alana define o chamado Consumismo Infantil: hoje, todos que são impactados pelas mídias de massa são estimulados a consumir de modo inconseqüente. As crianças, ainda em pleno desenvolvimento e, portanto, mais vulneráveis que os adultos, não ficam fora dessa lógica e infelizmente sofrem cada vez mais cedo com as graves conseqüências relacionadas aos excessos do consumismo: obesidade infantil, erotização precoce, consumo precoce de tabaco e álcool, estresse familiar, banalização da agressividade e violência, entre outras.

Não sabemos o que o Instituto Alana define como mídia de massa. Porque há uma infinidade de serviços e produtos que são vendidos sem ser anunciantes. Vitrine de loja de shopping é mídia de massa? Prateleira de supermercado é mídia de massa? Os “aviõezinhos” que distribuem drogas ilícitas são mídia de massa? Jogo do bicho anuncia na televisão?

As crianças podem ficar gordas, é verdade. Mas isso é uma questão de educação em casa e fora dela. Temos consciência de que o açúcar faz parte da cesta básica de todos os brasileiros? Sabemos que o açúcar muitas vezes é vendido com prejuízo nos armazéns porque ele chama a freguesia para a compra de outros produtos? Temos ideia do volume de produtos feitos em casa, açucarados, que alimentam as famílias sem qualquer influência da publicidade? Recomendamos visitar a Embrapa (http://www.agencia.cnptia.embrapa.br/gestor/cana-de-acucar/arvore/CONTAG01_109_22122006154841.html) : “O consumo de açúcar no Brasil cresceu expressivamente nos últimos 60 anos, impulsionado, sobretudo, por alterações no padrão de consumo e no crescimento vegetativo da população. Na década de 1930, o consumo médio anual de açúcar era de 15 quilos por habitante. Já nos anos 1940, esse número aumentou para 22. Na década de 1950, o consumo passou a ser de 30 quilos por pessoa, passando para 32 nos anos 1960. Em 1970, a média era de 40 quilos e, em 1990, esse índice estabilizou-se em 50 quilos por habitante”.

Então não devemos promover nossas festas folclóricas? O que se come numa festa junina? Pé de moleque, canjica, cocada, quentão? Esses produtos são anunciantes ou são produzidos pelas famílias porque fazem parte da nossa cultura? Não é missão do Alana promover a cultura?

Também não sabemos porque erotização precoce, consumo precoce de tabaco e álcool, estresse familiar, banalização da agressividade e violência estão elencados como consumismo. Se a intenção é agredir a atividade publicitária, é bom esclarecer que a erotização precoce não é permitida pelo CONAR – Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária. Consumo precoce de álcool também não. Propaganda de tabaco é proibida por lei. E o estresse familiar e a banalização da agressividade e violência são encontrados nos filmes e outras formas de dramaturgia, raramente na publicidade. Autoridades constituídas são encarregadas de classificar essas obras de acordo com a idade recomendada para assisti-las.

O Instituto Alana continua apresentando as suas premissas: em 2006, os investimentos publicitários destinados à categoria de produtos infantis foram de R$ 209.700.000,00 (IBOPE Monitor, 2005x2006, categorias infantis). No entanto, a publicidade não se dirige às crianças apenas para vender produtos infantis. Elas são assediadas pelo mercado como eficientes promotoras de vendas de produtos direcionados também aos adultos. Em março de 2007, o IBOPE Mídia divulgou os dados de investimento publicitário no Brasil. Segundo o levantamento, esse mercado movimentou cerca de R$ 39 bilhões em 2006. A televisão permanece a principal mídia utilizada pela publicidade. Ao cruzar essa informação com o fato da criança brasileira passar em média quatro horas 50 minutos e 11 segundos por dia assistindo à programação televisiva (Painel Nacional de Televisores, IBOPE 2007) é possível imaginar o impacto da publicidade na infância.

Afinal de contas, as crianças têm capacidade crítica para consumir publicidade? Se não têm, como podem influenciar seus pais? Será que eles também não têm capacidade crítica quando ouvem seus filhos? Pesquisa feita pelo Ibope em 2009 para saber “Como o brasileiro percebe e avalia a propaganda” concluiu que 31% dos entrevistados gostam mais ou menos dos anúncios, 43% gostam e 13% gostam muito. Pais com filhos até 12 anos avaliam positivamente a propaganda em proporção superior a 50%, inclusive a propaganda infantil. E somente 18% veem necessidade de limitar horários. Dois terços dos entrevistados consideram a propaganda importante para as suas vidas e 71% consideram que esta atividade tem evoluído para melhor. Então, prezado Instituto, estamos todos idiotizados, pais e filhos?

Vamos ampliar nosso conhecimento em relação ao consumo infantil, agora abordando o mercado de brinquedos. Primeiramente, vamos atualizar os dados: segundo o Censo IBGE 2010, a população brasileira era de 190 milhões. Entre 0 e 14 anos de idade, tínhamos 46 milhões de habitantes. O investimento em TV aberta e fechada de brinquedos e afins, inclusive videogames, nos 9 principais mercados do país, segundo o Ibope Monitor, foi de R$402 milhões. O que nos leva a crer que o investimento por habitante entre 0 e 14 anos, em todo o território, foi menor do que R$20,00 reais por ano. É muito? Somente a Casas Bahia investe 2,7 vezes mais do que toda a indústria de brinquedos. O comércio varejista investiu em 2010 o total de R$6,3 bilhões em mídia impressa (9 mercados). Provavelmente não teve como alvo o público não alfabetizado, ou semi. Também não parece lógico anunciar na televisão com o intuito de vender para os pais através dos filhos. Mas voltemos aos dados da indústria de brinquedos: o website da Associação Brasileira da Indústria de Brinquedos (http://www.abrinq.com.br/download/O%20desenvolvimento%20do%20setor%20-%20estatisticas%202011.pdf) reporta que em 2010 aconteceu o seguinte: o faturamento da indústria foi de R$3,1 bilhões, ou seja, venderam R$67,81 em um ano por habitante entre 0 e 14 anos. É muito? Pois deveria ser muito mais. Vejamos as vendas por segmento:

Desenvolvimento afetivo 22,1%

Primeira idade 4,9%

Mundo técnico 16,3%

Atividades físicas 21,4%

Atividades intelectuais 9,4%

Criatividade 13,1%

Relações sociais 12,8%

Só falta surgir alguém para dizer que vender livros infantis também é consumismo.

Continuemos com o texto do Instituto Alana: A TNS, instituto de pesquisa que atua em mais de 70 países, divulgou dados em setembro de 2007 que evidenciaram outros fatores que influenciam as crianças brasileiras nas práticas de consumo. Elas sentem-se mais atraídas por produtos e serviços que sejam associados a personagens famosos, brindes, jogos e embalagens chamativas.

Ou seja, se a embalagem é importante, talvez tivéssemos que vender produtos com tarjas pretas cobrindo todos os apelos. Mas o Instituto reconhece que a opinião dos amigos também foi identificada como uma forte influência. É o boca a boca, a forma mais primária de comunicação existente. O Instituto Alana quer proibir a TV. Como vai proibir as amizades, a interação com tios e primos? Ou, como já dissemos, os alimentos feitos em casa para dar sabor à vida?

Seguem eles: o Projeto Criança e Consumo, do Instituto Alana, combate qualquer tipo de comunicação mercadológica dirigida às crianças por entender que os danos causados pela lógica insustentável do consumo irracional podem ser minorados e evitados, se efetivamente a infância for preservada em sua essência como o tempo indispensável e fundamental para a formação da cidadania.

Então, não devemos produzir, anunciar e vender brinquedos educativos, por exemplo? E cadernos para colorir e livros infantis, podemos?                                

Segue a missão do Instituto Alana: visando a valorização do homem e a melhoria da sua qualidade de vida.

O que significa isso para o Instituto? Vamos todos virar vegetarianos, não comeremos mais doces? Não teremos o prazer de degustar uma barra de chocolate? Não poderemos sentir a beleza dos pratos típicos, o aroma, o sabor? Não poderemos nos alimentar com uma feijoada, comida mineira, cozinha baiana ou capichaba, pratos de Belém do Pará nem churrasco gaúcho? Vamos negar toda a nossa cultura culinária e todos os prazeres do nosso corpo-mente, pois não é possível separa-los? Como as famílias deverão fazer na comemoração dos aniversários dos seus filhos? Não haverá mais cachorro quente, pipoca, brigadeiro, bala delícia? Nossos filhos serão proibidos de assistir TV e cinema? Internet, nem pensar? Também não poderão mais se expor à interação com seus pares?

Querem proibir a propaganda, mas grande parte desses produtos e serviços sequer anuncia. Aliás, a Coopersucar certa vez fez uma campanha: “Pergunte ao Pelé se ele substituiu o açúcar”. Exemplar.

Somente um fator é aliado daqueles que desejam censurar a publicidade de todas as formas possíveis, na base do "se eu acho que o produto é ruim, posso proibir a publicidade porque então a venda cessa": é o desconhecimento sobre o comportamento social e cultural, e sobre até onde pode ir a influência da publicidade. Ela não está sozinha neste mundo.

FIM

Este texto não foi encomendado e é de inteira responsabilidade do autor, o publicitário Marcelo C. P. Diniz, pai de cinco filhos, avô de seis crianças. Experiência profissional em www.conscius.com.br .


Autor: Marcelo Diniz


Artigos Relacionados


Todo O Alcance E Monitoração Da Publicidade Na Internet Ao Dispor De Sua Empresa

Adobe Divulga Gastos Com Publicidade Digital

Propaganda Na Mídia Televisiva: Massa De Modelar E Abreviar A Infância.

Criança, A Alma Do Negócio !

Os Pais – Como Ter Um Remoto Controle Sobre A Tv

O Direito Das Crianças E Adolescentes à Mídia De Qualidade

O Consumismo, O Meio Ambiente E A Violência