Você sabe o que é "boca de rango"?



“Solidariedade é responsabilidade mútua, nexo moral que vincula o indivíduo à vida, aos interesses e às responsabilidades de um grupo social, de uma nação ou da própria humanidade.” (Dicionário Aurélio )

Ao colocar o indivíduo no centro da reflexão da humanidade, a teoria social moderna dispensou o ensinamento que privilegia a totalidade. Segundo Roberto Damatta, não era a sociedade que constituía as pessoas, eram os indivíduos que inventavam a sociedade. Por outro lado, nós que vivemos no sistema capitalistas somos influenciados pela Ética do mercado que nos libera da obrigação com os outros.

Para falarmos em solidariedade temos que transcender essa visão da sociedade formada por indivíduos envolvidos consigo mesmos e apontar para a complementaridade de duas ou mais pessoas que se percebem dependentes entre si.

Essa solidariedade exige o engajamento de todos na luta contra as desigualdades: se uma parte da sociedade é miserável, e a outra vive fartamente, esse desnível desencadeia nosso compromisso de lutar pela mudança. Essa solidariedade social não exclui a solidariedade de classe e nem suspende a ação dos movimentos reivindicatórios. E é ela que está por trás das ações coletivas de distribuição de alimentos aos pobres.

A cidade de São Paulo já ostentou o título de locomotiva do país e ainda hoje tem papel significativo no desenvolvimento econômico brasileiro. Por outro lado, ela é reflexo da maior perversidade de nossa sociedade que mantém uma pequena minoria num nível de riqueza enquanto a grande maioria sofre as agruras da fome, do desemprego e da falta de moradia.

Censo realizado pela Prefeitura aponta quase 14 mil pessoas vivendo em situação de rua na cidade de São Paulo. Quando foi feito este levantamento, constatou-se que apenas 61,8% recebiam atendimento em albergues e abrigos, e 48,7% pernoitavam nas ruas da cidade.

Blem-blem, blem-blem, blem-blom! Os sinos da catedral da Sé anunciavam: seis horas da manhã. Eu despertava para mais um dia de vida e a cidade para mais um dia de apatia e tédio. Meus companheiros já estavam de pé, preparando a bagagem para levantarmos acampamento. Dormíamos no Pátio do Colégio, debaixo da marquise do prédio dos correios e às seis horas tínhamos que ir embora, pois os funcionários  da limpeza costumavam lavar a calçada antes da abertura do expediente, que se iniciava às sete horas. As noites passávamos ali; os dias, na Praça Clóvis. A marquise dos correios era o nosso hotel; a praça Clóvis nossa casa de campo. Sonhar não faz mal a ninguém. (Elzo Pedra Matos, 1994)

O trecho acima é parte de uma reflexão maior feita por Elzo que viveu nas ruas de São Paulo e que trazia para nossas reflexões técnicas o olhar de quem, de fato, sabia do que estava falando.

Quando abordadas, estas pessoas reafirmam suas necessidades: trabalho digno, casa para morar e respeito da sociedade.

As pessoas em situação de rua chamam de “boca de rango”  toda uma diversidade de processos que permite que elas  acessem o alimento necessário à manutenção da vida, independente do fato de serem distribuições como sopões, e lanches, seja restaurantes populares com preços acessíveis e onde eles tenham permissão de adentrar como clientes.

A sociedade paulistana, como tantas outras, tem leituras variadas e muitos grupos entendem que esta situação é injusta, mas como não identificam os caminhos para erradicar esta miséria, assumem ações filantrópicas de ajuda a estes “necessitados”.

No início da década de 90, estudo coordenado pela Secretaria Municipal de Bem Estar Social de São Paulo, analisou as práticas de distribuição de alimentos na ótica dos direitos. Além da assistência social estar se consolidando como política de direitos, o artigo 6º. da Constituição Federal garante a todos os brasileiros o Direito à Alimentação.

Segundo Yasbek (1992), a assistência vista por esta ótica torna-se “possibilidade de reconhecimento e espaço para a ampliação de seu protagonismo social”.

Nascida do Movimento pela Ética na Política, há 19 anos, a Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida colocou no cotidiano de mais de 70% da população de nosso país a reflexão sobre a fome que assolava 32 milhões de brasileiros.

Coleta e distribuição de alimentos, construção de alternativas de trabalho e renda e Reforma Agrária eram o tripé que dava suporte a essa luta contra a qual ninguém se atrevia a se manifestar.

Se a superação do problema exigia medidas estruturais como reforma agrária com geração de empregos e ampliação dos postos de emprego, as ações assistenciais como a distribuição de alimentos permitiriam “que as pessoas continuassem vivas para esperar por tudo isso”, como dizia Betinho.

Em nome da “boa ordem”  na cidade, a Prefeitura emitiu uma proibição em relação a esta distribuição de alimentos, sem ao menos dialogar com os grupos que a realizam. Face à reação de setores da sociedade, esta proibição foi revogada, mas isso me parece pouco.

É necessário um processo de diálogo voltado para a construção de alternativas concretas para esta população no sentido de que voltem para o mercado, que voltem a ter um teto para abrigá-los.

O que cada um de nós está fazendo em relação a isto?  Vamos deixar como está para ver como é que fica, ou vamos procurar caminhos dignos que permitam que este direito à alimentação, como o direito ao trabalho e o direito à moradia sejam, de fato colocados em prática. 


Autor: Maria Magdalena Alves


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