Song Of Myself



SONG OF MYSELF: A ARTE DE SI MESMO


Eliomar Rodrigues da Rocha


Whitman has a real ambition to reestablish the natural and “unfallen” man. The new man should not be afraid either of God or of the sin of the body.

Miguel Nenevé – Whitman: the new Adam preaching the anti-puritan thought


A constituição do sujeito ou a criação de modos de existência, ou seja, a subjetivação, nos últimos dois séculos - já que a origem desse estudo remonta aos gregos (por exemplo, Platão com Alcebíades) - foi o objeto de dois filósofos: Friedrich Nietzsche (1844 - 1900) e Michel Foucault (1926 - 1984). O primeiro, com discussões sobre as “novas possibilidades de vida” discutidas em Eco Hommo, Genealogia da moral; o segundo, com reflexões e uma vasta produção literária acerca da subjetivação do sujeito, principalmente em sua fase denominada por estudiosos e críticos como genealógica, época em que escreveu seus dois últimos livros que compõem a História da Sexualidade (O uso dos prazeres e O cuidado de si).
Dessa forma, refletindo, portanto, essas discussões sobre a constituição do sujeito, penso que Song of Myself, do poeta norte-americano Walt Whitman, pode ser compreendida tanto como uma recusa aos ditames sociais da época, isto é, o modus vivendi e o modus operandi de uma sociedade puritana, quanto como uma prática refletida da liberdade do sujeito.
Nesse sentido, entendendo o sujeito a partir de sua produção/construção sempre móvel dentro de uma sociedade - ou seja - o indivíduo constituindo-se em relação aos seus modos de representação para transformar-se em sujeito, creio ser possível demonstrar em Song of Myself as diversas posições que ocupa o sujeito enunciador (eu-lírico) em sua prática constituinte, refletida em sua prática. Essa prática, numa perspectiva foucaultiana,

não pode ser confundida com a operação expressiva pela qual um indivíduo formula uma idéia, um desejo, uma imagem; nem com a atividade racional que pode ser acionada em um sistema de inferência; nem com a ‘competência’ de um sujeito falante, quando constrói frases gramaticais” (2002, p. 136).


Mas, a constituição do sujeito deve ser pensada na relação texto (oral/escrito), contexto histórico e o próprio sujeito imerso em uma luta semântica; um sujeito envolto em um contexto imediato, daí as condições de exercício da função enunciativa desse sujeito e sua criatividade/inventividade na irrupção de seus discursos ao longo de sua prática. Esses discursos, nos diz Foucault, “não devem ser tratados como um conjunto de signos (elementos significantes que remetem a conteúdos ou representações), mas como práticas que formam sistematicamente o objeto de que falam” (2002, p. 56). Assim, a prática discursiva - conceitua Foucault - “é um conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço que definiram, em uma dada época e para uma determinada área social, econômica, geográfica ou lingüística, as condições de exercício da função enunciativa” (2002, p. 136). E ainda com Foucault: “essas regras são imanentes a uma prática e a definem em sua especificidade” (2002, p. 53).
Sendo assim, dialogo neste texto com alguns versos de Song of Myself não em busca de um sujeito ideal, transcendental. Mas sim, procuro saber quem fala? Qual é o status desse indivíduo que tem o direito de proferir tal discurso? Nesse sentido, visualizando a liberdade não como uma escolha livre do sujeito, nem tampouco como a recusa de todos os freios morais (liberdade moral), mas a libertação enquanto não alienação de si, isto é, o sujeito não alheio a si mesmo. Essa é a meta do socialismo marxista que surgiu pouco tempo depois de Song of Myself como resultado de releituras do Marxismo. Neste texto, busco a compreensão de um percurso discursivo construído por um sujeito diverso, onisciente e onipresente. Contudo, compreendo que o sujeito não faz o que quer, senão aquilo que lhe cabe na posição de sujeito que ele ocupa num dado momento.
Dessa forma, para efeito de ênfase, procuro mostrar neste texto - através da conjugação de certos versos de Song of Myself a alguns conceitos da Análise do Discurso de vertente francesa e de noções do Pós-colonialismo - a afirmação de um “eu” desvencilhado do discurso puritano da época, compreendendo o amor como única resposta para todos os males humanos. Assim, acredito que é possível visualizar-se a construção de um sujeito “ideal”, porque liberto de toda alienação da época; pertencendo, por isso mesmo, a todos os tempos e épocas, a toda e qualquer sociedade humana.
Sobre a questão da alienação, citada no parágrafo precedente, Pedro Dalle Nogare - em Humanismos e anti-humanismos - enumera quatro tipos de alienações citadas por Karl Marx: a religiosa, a ideológica, a política e a econômica. Nessa obra, Nogare, a partir de releituras do Marxismo, elabora uma síntese histórica, em grandes linhas, das diversas concepções formuladas por filósofos, ou por correntes e sistemas filosóficos, em torno do ser humano, sua identidade, valor e função no mundo, questões que, de certa forma, podem ser visualizadas em Song of Myself (como mostraremos mais adiante).
De acordo com Nogare, a alienação religiosa foi a primeira que Marx denunciou. Assim, seguindo a prática discursiva de Marx, denuncia: “é preciso destruir a religião para que o homem se recupere a si próprio, recuperando sua dignidade e liberdade” (1998, p. 106). Há, ainda, a alienação ideológica. A ideologia, termo primeiramente utilizado por Detust de Tracy, conforme Michael Lowy (2002) para se referir ao estudo das idéias, serve como farol aos humanos para indicar-lhes os caminhos de sua libertação. E, também, a alienação política que acontece porque “os homens formam grupos e sociedades e em particular criam o Estado, para que seus direitos e seus bens sejam garantidos e promovidos” (1998, p. 106). Enfim, a alienação econômica como “a base e a determinante de todas as outras alienações e se funda na propriedade privada dos meios de produção” (1998, p. 106).
Nessa perspectiva, Nenevé, em seu artigo Whitman: the new Adam preaching the anti-puritan thought (1993, p. 11), esclarece que Whitman produziu uma poesia de combate ao Puritanismo, movimento religioso que buscava uma reforma radical da Igreja na Inglaterra, no século XVI. Insatisfeitos com certas práticas entre seus membros, vários indivíduos dessa religião mudaram-se para a América do Norte (a Terra Prometida), para poder assim, colocar em prática as doutrinas propagadas pelo que mais tarde passou a ser chamado “Puritanismo,” uma vez que os seus seguidores buscavam a exaltação do espírito e a subjugação do corpo; ou seja, almejavam a pureza de vossas almas, por conseguinte, o corpo deveria ser mortificado diariamente, conforme ensinamentos bíblicos.
Segundo ainda Nenevé, “in New England the Puritans had their chance to put in practice their theology discussed in old England ”. Dessa maneira, tendo sido “criado sob a orientação da seita dos quakers fundada por George Fox, em l647”, conforme Monteiro (1984, p. 29), Whitman recebeu uma formação espiritual-filosófica de liberdade humana que marcou sua trajetória poético-filosófica. Certamente, sua obra constrói-se repleta de incentivos à valorização da vida e, obviamente, à não exaltação do espírito em prejuízo ao corpo, mas a busca pela eqüidade entre esses dois pólos do humano. Através de sua poesia, o leitor deve acreditar-se um ser divino, como quer o poeta em sua Song of Myself: “divino eu sou por dentro e por fora e torno sagrado tudo àquilo que toco ou por que sou tocado” (p.46). Como escreve Nenevé (1993, p.13), “through his poetry Whitman preaches the innocence of the new man who is in fact the new Adam without anything behind him ”.
Seguindo a perspectiva aqui adotada de verificar a arte de si mesmo ou a produção de modos de existência em Song of Myself, acredito que os versos que compõem cada estrofe, assim como as estrofes que compõem o poema Song of Myself, sugerem a liberdade de expressão que englobam a visão, a audição, o tato, a degustação e a olfação. A produção desses versos, em forma livre, sugere a liberdade de criação de si mesmo não apenas enquanto poeta, mas também enquanto divindade humana, porque acredita ser parte de Deus: “tudo é apenas uma parte” (p.98)
Da mesma forma, a construção sintática marcada pelo uso da primeira pessoa - “eu” - marca a posição que deve ocupar todo indivíduo: ser o dono de si mesmo; ser o dono de seu corpo; ser o dono de seus desejos e de suas vontades, em suma, libertar-se de si mesmo em relação às alienações e de certos paradigmas sociais e culturais estabelecidos em toda sociedade, pois esses cerceiam as várias possibilidades de vida existentes nos vários indivíduos.
Entretanto, sabe-se que em todo grupo humano existiu e existirão regras. Como escreve Michel Foucault em Vigiar e Punir (2007, p. 118), “em qualquer sociedade, o corpo está preso no interior de poderes muito apertados, que lhe impõem limitações, proibições ou obrigações”. Entretanto, cabe aí a inventividade e criatividade do indivíduo para colocar-se como sujeito; buscar sua(s) identidades) através de sua prática lingüístico/discursiva, de sua economia e de sua sexualidade; do contrário não existirá o sujeito, mas tão somente um indivíduo sem voz, desejos e lutas; um objeto a ser manipulado por outrem.
Song of Myself constrói-se como parte do discurso de um sujeito atuante, que se constitui na fusão do fora/dentro e seus entornos e através de uma linguagem. Assim, têm-se o nascimento do sujeito como parte do todo, partícula do macro/micro universo. A posição discursiva ocupada pelo eu-lírico é a ideal, porque contém a origem, o passado e o futuro, pois, é a junção de todos os elementos, daí, a sua singularidade. Antes de si não há começo, nem fim. Logo, o sujeito como origem de tudo e de si mesmo, como uma luz que brilha na escuridão e condena tudo à claridade: ser o seu próprio começo e ser seu próprio fim. Em suma, ser deus de si mesmo. Admirar-se e cantar como declara o poeta no início de sua canção, “eu celebro a mim mesmo” (2000, p.06), marca sua posição de autoria de si mesmo.
A posição discursiva ocupada pelo sujeito-narrador mostra-nos sua resistência em relação ao discurso religioso da época e retrata sua prática refletida de liberdade. É uma tentativa de liberta-se da objetivação religiosa “puritana” do contexto histórico em que estava inserido esse sujeito. Contra essa normalização da “verdade” proclamada pelas disseminações do bem e do mal, dentro da história do cristianismo, é que resiste o sujeito-enunciador. E ainda, contra a própria idéia de salvação ou perdição eterna (a promessa do céu ou do fogo eterno no inferno) imposta aos indivíduos pelo cristianismo. Segundo o poeta, “crenças e escolas ficam em suspenso” (2000, p. 06). Adiante, questiona ainda o poeta: “Por que deveria orar? Por que deveria venerar e ser cerimonioso?” (p. 37).
O convite do sujeito-enunciador aos camaradas/leitores:

Passa este dia e esta noite comigo e possuirás a origem de todos os poemas/Possuirás o bem da terra e do sol (há milhões de sóis ainda)/Não terás mais nada em segunda ou terceira mão, nem verás através dos olhos dos mortos/nem te alimentarás mais dos espectros dos livros/Também não verás de meus olhos, nem receberás nada de mim/Ouvirás todos os lados e os filtrarás de teu ser” (p. 08),


significa a abertura dada a todo indivíduo para constituir-se como sujeito de si mesmo; pensar-se como produção de si mesmo e, formar-se em contato com a alteridade. As práticas objetivadoras devem ser pensadas, refletidas, repensadas. O movimento criado no poema de ir/vir marca essa competência do sujeito questionador. Assim, em vez de seguir a linearidade e a continuação de certas crenças e criações do poder, o indivíduo é levado a pensar a temporalidade como algo disperso, anônimo, sem volta: não às elaborações profético-religiosas que caem como um véu negro sobre o indivíduo em toda e qualquer época. Essas são tão somente estratégias de poder criadas pelo próprio humano objetivando a detenção e perpetuação do poder numa determinada sociedade.
Assim, não há objetivação, nem transcendência do sujeito em Song of Myself, mas a constituição de um sujeito metonímico, daí, um sujeito híbrido, porque “de toda cor e casta eu sou, de toda classe e religião” (2000, p. 32). Portanto, capaz de elevar-se e enlevar-se além de si próprio e, como canta o poeta, desacreditar da própria morte: “morrer é algo diferente do que todos supunham, e bem mais afortunado/Sei que sou imortal” (p. 16)/”. Para o sujeito dessa prática refletida de liberdade, o próprio ato de escrever, isto é, a produção da escrita, empenha-se em enganar sua própria relação com o tempo e a com a morte, posto que mesmo tendo ocorrido a morte física daquele que escreve, ou seja de um escritor, seu discurso o representará nos diferentes gêneros da sua pós-escrita. O “cuidar que se ganha em se perder”, como canta Camões, multiplica-se nas infindáveis retomadas dessa escrita e, indubitavelmente, garante-lhe vida póstuma. Como diz Michel de Certeau (1982, p. 314), “o texto não escapa do processo que analisa, ele o persegue”.
Essa perseguição, portanto, é inerente ao próprio processo de escrita e, entendendo o sujeito constituinte como um processo sempre inconcluso (até que a morte chegue) e concluso se se perceber a si mesmo como formando um todo e sendo parte, acredito haver certa libertação das diversas alienações humanas. Quando o poeta afirma, “formo um todo contigo, também sou de uma fase e de todas as fases” (2000, p. 42), alcança sua conclusibilidade, não porque se concebe completo, mas porque é parte completa de um todo.
Assim, o amor cantado a todas as coisas e a todos os seres viventes, (se bem que o poeta não cita o índio), marca sua ascensão espiritual e filosófica, bem como abre espaço para as discussões a respeito da alteridade. O outro não é visto pelo poeta como um ser inferior: “em todas as pessoas vejo a mim mesmo, nenhuma é superior e nenhuma sequer é grão inferior” (p. 38), idéia negada pelo movimento colonialista sobre as regiões ditas periféricas em relação às metrópoles colonizadoras durante o processo de colonização (se é que se encerrou tal empreendimento político).
O enunciado acima, como qualquer outro enunciado na perspectiva da Análise do Discurso, tem suas margens povoadas por outros enunciados pertencentes a esse mesmo eixo discursivo. Assim, pode-se afirmar que o Outro é o mesmo - como sugere a poesia de Whitman; que é um ser humano, porque humano tanto quanto aquele que o observa e o registra. É um fazer-se em comunhão com o outro que lhe parece o mesmo, pois através desse sujeito deslocando-se sempre - sujeito metonímico - todos os demais sujeitos estão nele representados, como afirma o poeta:

Meu Deus! Não aceitarei nada de que todos não possam ter seu contraponto nos mesmos termos/Através de mim as diversas vozes há muito emudecidas/Vozes das intermináveis gerações de prisioneiros e escravos/Vozes dos doentes, desesperados, bandidos e anões/Vozes dos ciclos de preparação e crescimento/E dos fios que ligam as estrelas,dos úteros e da substância dos pais/Dos direitos daqueles que são oprimidos pelos outros/Dos deformados, insignificantes, simplórios, insensatos, desprezados/Através de mim as vozes proibidas/Vozes dos sexos e dos desejos, vozes veladas e eu retiro o véu/Vozes indecentes por mim esclarecidas e transfiguradas (46).


Assim, se a negação do Outro tem sido imposta há muito tempo, como forma de domínio e extermínio desse Outro, é preciso que o libertemos desse passado que o aprisiona e o condena à destruição. Afinal, a sórdida história da colonização de grande parte do mundo, é a mestra na arte de negar e apagar a história do Outro. Negros e índios não somente surgem no cenário histórico como seres inferiores, mas como não sujeitos de si mesmo, porque todos os seus modos de existência e de representação foram, sub-repticiamente, apagados, senão negados. “O colonialismo,” diz Frantz Fanon (2005, p. 244), “se orienta para o passado do povo oprimido e o distorce, desfigura, aniquila”.
Essa ferida aberta pelo colonialismo é combatida pelo sujeito-enunciador de Song of Myself, pois, “Não aceitarei nada de que todos não possam ter seu contraponto nos mesmos termos”, e ainda mais conciso: “Dos direitos daqueles que são oprimidos pelos outros/Dos deformados, insignificantes, simplórios, insensatos, desprezados”. Obviamente, há nesses versos a recusa a toda e qualquer forma de subjugação do Outro. Assim, temos um sujeito consciente de todas as formas de repressões e humilhações existentes nas diversas sociedades humanas. Contra esse absolutismo generalizado é que se opõe esse sujeito liberto e libertador. Seu trabalho de conscientização é cantado através de seus versos.
Dessa forma, mesmo não se referindo ao processo de colonização encabeçado pelo império britânico e seguido por outros impérios, pode-se afirmar que esse sujeito-enunciador, possui uma consciência de todas as formas de escravidão e extermínio acentuadas pelo colonialismo. Esse ato, encouraçado por uma propagação do cristianismo, arrasou regiões e gerações. Aprisionou e manteve sob seus desejos toda a população de determinadas regiões do planeta. Esse cruel movimento político, como um empreendimento cristianizador, ainda continua surtindo efeitos, senão exemplo de “civilidade” para muitos indivíduos.
A busca pelo poder e, concomitamente, pelo controle de vidas alheias ainda figura nas mentes humanas. A consciência, ainda por vir, mantém-se na penumbra e é afastada pela ganância. Falta-lhes (nos indivíduos) um mergulho profundo na assertiva descartiana: “Conhece-te a ti mesmo” para revesti-los de uma visão ampliada do que é a vida, do que é a verdadeira razão de se está no mundo e, logicamente, de consciência de que é preciso valorizar-se a si mesmo, como pontua o poeta: “Se eu cultuar alguma coisa mais do que o resto será extensão do meu próprio corpo, ou qualquer parte dele” (p. 47).
Esse exercício de auto-conhecimento é necessário àquele que se quer evoluído como humano. Assim como não haverá a planta sem a semente, não há sujeito liberto se não há práticas de humildade. Esse exercício, requerido pelo próprio discurso a seus proferidores, requer policiamento e reeducação da linguagem. Ela, a língua, obriga-nos à construção de determinados enunciados, entretanto, como escreve Barthes, “a linguagem é o sujeito” (2007, p. 66). Assim, devemos refletir a linguagem que nos formata, o discurso que nos recobre e que, por um castigo dos deuses, nos descobre a nós mesmos. Como diz uma das várias vozes que compõem Song of Myself, “a fala é a irmã gêmea da minha visão, está além de toda a medida/Me provoca sem parar, diz sarcasticamente/Walt, já conténs o bastante, então por que não pões um pouco para fora”?
Esse colocar-se para fora é um exercício de conhecimento de si mesmo, um policiar-se enquanto proferidor de discursos, já que somos sujeito discursivo. Entretanto, é preciso que saibamos o quanto podemos ser trapaceados pela própria linguagem. Aqui, a saída de mestre seria trapacear com a própria língua, como em um jogo de trapaças que a própria sociedade, encarrega-se de ensinar a todos os seus membros. No uso da linguagem, cabe a criatividade e a inteligibilidade do sujeito. Todavia, como adverte Foucault, “não importa quem fala, mas o que ele diz, não o diz de qualquer lugar” (2002, p.161).
Nessa diversidade de posições discursivas a ser ocupada por diversos sujeitos, a prática discursiva da época, reina soberana, pois determina quem pode falar. Assim, têm-se um sujeito em construção, no interior da história. Esse sujeito, envolto nas tramas da história, deve ter sido aprovado em diversos rituais, tanto lingüísticos, quanto econômicos e sociais - o que lhe garantirá estatuto de sujeito. Ninguém pode entrar no universo do discurso sem que seja capacitado para tal tarefa, nos aconselha Foucault.
Dessa forma, foi produzida uma canção de si mesmo, uma poesia de contraponto aos danos causados pelos próprios humanos a Outros. A mensagem maior que se pode retirar dessa poesia, não é a extensão de lugares pontuados pelo sujeito enunciador, nem as diversas fontes de cheiro, luz e calor humanos, mas a prática de uma liberdade conscientizada pela própria situação de um indivíduo no mundo.
Assim, inserido em determinado contexto, atento às mazelas e sofrimentos humanos, consciente da beleza de si mesmo e de sua participação no universo, esse sujeito foi além de tantos outros indivíduos, porque a partir de si mesmo, viu e compreendeu todos os outros indivíduos. Esse exercício de compreensão o capacitou para ocupar as diversas posições discursivas: homens, mulheres, crianças, negros, rios, florestas, terras, vales, colinas, imensidões humanas. Seu vôo ainda continua. Seus versos ainda soam como alerta das competências e saberes humanos, afinal, é ao sujeito que reportam todas as ciências humanas, e é ele o objeto da poesia whitmaniana. A grande missão, então, é alçar-se a tudo e ser capaz de compreender todos os gestos e situações dos próprios humanos. È a estes que convém conhecer e libertar das garras da ganância pelo poder. Até porque, onde o saber e o poder geram subjetividades, produzem, também, focos de resistência, como se verificou em Song of Myself com a constituição de um sujeito sempre móvel dentro de uma sociedade.
Song of Myself não é mais um poema, ou mais uma poesia, mas um hino de liberdade. Uma canção de um sujeito descolonizado. Uma ode para os ouvidos cansados de tanta mediocridade advinda de tantos outros praticantes da escrita. Uma oração de força aos miseráveis e condenados que povoam a maior parte da Terra. Como um exercício de libertação de tantos valores morais e religiosos propagados e retidos como a suprema verdade por muitos, senão todos os indivíduos em variados tempos históricos. A “vontade verdade” de cada época. Song of Myself, questionando conceitos como Deus, Morte, Corpo e Felicidade, convida o leitor à reflexão de tudo: “Vedes Ó meus irmãos e minhas irmãs?/Não é o caos ou a morte - é a forma, união, projeto - é vida eterna - é Felicidade/O passado e o presente murcham - eu os preenchi e esvaziei/E começo a preencher o meu próximo recôncavo do futuro” (2000, p. 109). Logo, a história fora sumariamente apagada e renasce agora com um novo homem. Este não deve se voltar ao passado, mas construir com suas vontades, desejos e ações sem temer o castigo de um Deus supremo e irado. Deus, também eu o Sou.







REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


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LÖWY, Michel. As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Münchhausen: marxismo e positivismo na sociologia do conhecimento. Trad. Juarez Guimarães e Suzanne Felicie Léwy. Cortez: São Paulo, 2002.

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Autor: Eliomar Rocha


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