Do controle difuso se constitucionalidade: breve análise



DO CONTROLE DIFUSO DE CONSTITUCIONALIDADE – BREVE ANÁLISE

 Carolina R. Torres Gruber

Lorena Ferreira Fraga

 

1 Introdução

 

 

O controle de constitucionalidade, seja ele difuso ou concentrado, é indispensável quando se preza pela supremacia constitucional. Quando ele inexiste ou quando é ineficaz, a norma constitucional, ou seja, aquela inserida num corpo único de normas deixa de “ser”, i.e., se iguala a todas as outras regras provenientes do legislador ordinário. O poder constituinte derivado passa a ter o mesmo valor que o poder originário e o sentido de constituição rígida se deturpa, isto é, ele se equivale ao da constituição flexível.

O poder real da Constituição se verifica quando é tal, que exige um controle das normas pós-constitucionais, tendo como parâmetro as regras inseridas na Lei Fundamental. Isso significa que a norma infraconstitucional que viole algum preceito já definido pela Lei Maior, sejam requisitos formais – subjetivos, como a competência do órgão que o editou ou objetivos, como os prazos, a forma, o rito, observados em sua edição – quanto requisitos substanciais –  quando a matéria disciplinada por norma ordinária é incompatível com aquela tratada pela Constituição –, deve ser imediatamente retirada do Ordenamento Jurídico em que está inserida – se já em vigor – ou nem sequer chegar a produzir seus efeitos – se ainda percorre os trâmites legislativos essenciais para que seja aplicada.

O controle judiciário – aquele realizado por órgão integrado no Poder Judiciário – difere-se do controle político, na medida em que, neste, a verificação de constitucionalidade é confiada a órgão não pertencente ao Poder Judiciário. Ele (o controle judicial) pode ser difuso ou concentrado. Quando a incumbência de apreciar a alegação de inconstitucionalidade de um ato normativo pertencer a qualquer juiz, tem-se o controle difuso. Quando, porém, essa mesma verificação é confiada a um único órgão do Poder Judiciário, está-se diante do chamado controle concentrado. No concernente a esse último, a sua apreciação no presente artigo não se faz necessária, uma vez tratar o presente trabalho apenas da primeira vertente do controle de constitucionalidade – difuso. Sua – controle concentrado – menção nesta parágrafo faz-se imprescindível apenas para fins comparativos.

A inconstitucionalidade mantém estreita relação com a ilegalidade, diferindo-se dela apenas em alguns breves aspectos. Em ambas as hipóteses, trata-se de conflito entre normas jurídicas. A diferença, no entanto, reside na natureza do ato imediatamento ofendido. Na inconstitucionalidade, a Constituição é violada, ao passo que, na ilegalidade, é a lei.

 

 

2 Histórico e Conceito

 

 

O exame de constitucionalidade que parte do Poder Judiciário surgiu nos estados Unidos da América, por meio de uma reflexão jurisprudencial acerca da supremacia constitucional em face das demais leis infraconstitucionais.

A manifestação pioneira de controle de uma norma jurídica em face da Constituição verificou-se no caso Marbury versus Madison, julgado em 1803 pela Suprema Corte daquele país. A lide em questão trouxe à discussão questões relativas à esfera de atuação do judiciário, a qual abarca também a apreciação da constitucionalidade e à supremacia constitucional frente às demais normas do Ordenamento Jurídico, evidenciado a hierarquia entre as leis. A determinação da constitucionalidade, ou não, de um ato infraconstitucional é a solução de um conflito de leis: o conflito entre a norma constitucional e a norma infraconstitucional, sempre prevalecendo os preceitos pré-estabelecidos na Lei Maior.

A fiscalização jurisdicional difusa, também chamada de sistema americano de controle, compartilha de mesma origem do controle de constitucionalidade per si: os Estados Unidos. Fundamenta-se, outrossim, na declaração da inconstitucionalidade – ou não – de um ato normativo por qualquer componente do Poder Judiciário, juiz ou tribunal, em face de um caso concreto submetido a sua apreciação. O órgão do Poder Judiciário, declarando a inconstitucionalide de norma concernente ao direito-objeto da lide, deixa de aplicá-lo ao caso concreto.

Na discussão de um caso concreto, já em vias de ação, tem-se a dúvida sobre a (in)constitucionalidade da norma a ser aplicada. Deve ser, então, submetida à apreciação do Poder Judiciário, que julgará (im)procedente o pedido, e, caso tratar-se de norma constitucional, deverá ela ser aplicada à lide em questão. De outro lado, tratando-se de regra incompatível com a Lei Maior, sua aplicação deverá ser suspensa. Julgando o caso em exame, sendo, para tal, indispensável uma declaração acerca da constitucionalidade da norma, estará o juiz – ou qualquer responsável por apreciar o pedido – realizando o chamado controle difuso de constitucionalidade.

A dúvida referente à constitucionalidade da norma, ou seja, a indagação sobre a compatibilidade de certa norma em face de regra constitucional, não deve, a priori, ser objeto da lide. O autor da ação procura a tutela do Poder Judiciário por causa de uma agressão a direito concreto. O exame da constitucionalidade só é suscitado se necessária a aplicação de determinada norma jurídica, cuja validade é questionada, à lide.

 

 

3 Legitimidade ativa e Competência

 

 

As partes no processo têm legitimidade para propor a inconstitucionalidade de lei duvidosa a órgão jurisdicional, exatamente por se tratar de controle indireto de constitucionalidade, cuja característica inerente consiste no fato de recair sobre caso concreto. Os interessados na lide poderão provocar o judiciário para que aprecie e declare – se for o caso – a inconstitucionalidade de determinada lei.

Ademais, o Ministério Público, atuando como “fiscal da lei” (custus legis), e os possíveis terceiros interessados no curso do processo poderão, também, iniciar o controle de constitucionalidade, na medida em que suscitem dúvida acerca da incompatibilidade de certa norma jurídica com a Constituição. O juiz que aprecia a questão poderá, de ofício, sem que seja provocado, indagar sobre a validade de lei que deverá ser aplicada ao caso concreto.

A dúvida sobre a constitucionalidade de certa norma jurídica não requer a provocação das partes. O magistrado, exatamente por ter o chamado “poder-dever” de defender a Constituição, pode declarar inconstitucional se assim o entender.

Qualquer órgão pertencente ao Poder Judiciário, juiz ou tribunal, tem a competência para julgar determinada ação de inconstitucionalidade que tem como base um caso concreto. Os tribunais de segundo grau, os tribunais superiores e o próprio Supremo Tribunal Federal (STF) realizam o controle difuso de constitucionalidade se lhes for apresentado um caso concreto, seja de forma originária – nos casos em que a competência inicial lhes é atribuída -, seja mediante as sucessivas interposições de recursos.

Muito se discutiu, e o STF já postulou entendimento sobre o assunto, a respeito da reserva de plenário a ser aplicada no tocante ao controle incidental de constitucionalidade. A reserva de plenário consiste na aprovação – ou não – de questão relativa à constitucionalidade de ato normativo pela maioria absoluta dos membros do tribunal ou pela maioria absoluta dos membros do respectivo órgão especial, postulado este consagrado na Lei Maior, no seu artigo 97.

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CF/88), por meio do artigo mencionado, prevê obrigatória a observância desse quorum de votação de questões relativas à constitucionalidade de determinada norma jurídica, sob pena de nulidade se descumprido. Ao estabelecer essa exigência, procurou o legislador constituinte assegurar maiores segurança ao Estado e estabilidade ao ordenamento, na medida em que se impõem obstáculos para retirar certa norma do mundo jurídico. Evidencia-se o resguardo do princípio da presunção de constitucionalidade das leis, na medida em que, se não atingido o quorum mínimo para a declaração de inconstitucionalidade, fica presumida a compatibilidade da norma sob suspeita com a Constituição. É evitada, dessa maneira, a discricionariedade de alguns poucos membros em decidir sobre um assunto de tão relevante importância para a manutenção da ordem constitucional de um Estado que se diz Democrático de Direito.

Para que a declaração de inconstitucionalidade seja proferida, é necessário atingir o quorum mínimo – a maioria, não dos juízes presentes na sessão, mas dos magistrados membros do tribunal ou do órgão especial responsável pelo julgamento.

Quando não há órgão especial para declarar a incompatibilidade da norma à Constituição, a deliberação somente é admitida se realizada pelo plenário. Nos órgãos fracionários do judiciário, a declaração de inconstitucionalidade é vetada, mesmo se, por unanimidade, decidirem os juízes membros pela não consonância da regra à Lei Maior. Quando a argüição de inconstitucionalidade for acatada por um órgão fracionário, deverá esse submeter o caso ao plenário ou ao órgão especial, para que julgue a questão. Assim que decidido sobre a (in)constitucionalidade, o caso será devolvido ao órgão que, a princípio, recebeu a ação, para que esse decida sobre o caso concreto e lavre o acórdão (sempre em consonância com o previamente julgado pelo Plenário ou pelo órgão especial).

O STF, numa ação para flexibilizar o instituto da reserva de plenário, na medida em que promove uma maior celeridade aos processos e consequente desobstrução do judiciário, consolidou entendimento de que os órgãos monocráticos ficarão impedidos de julgar, pela primeira vez, um caso de inconstitucionalidade, ficando essa incumbência ao plenário e ao órgão especial. No que concerne, no entanto, às decisões, cujos órgãos superiores já demonstraram inclinação quanto ao resultado, poderão os órgãos fracionários do judiciário julgar a argüição de inconstitucionalidade, desde que a decisão se fundamente em entendimentos pretéritos. Dessa maneira, concedeu o STF, às câmaras, turmas e seções do judiciário, numa nova interpretação do artigo 97 da CF/88, a possibilidade de declarar inconstitucional determinada norma, desde que esse mérito tenha sido previamente julgado pelo plenário, órgão especial ou até mesmo pelo próprio STF. Entende o Pretório Excelso, assim, já ter sido preenchida a exigência constitucional.

No que tange, no entanto, às normas pré-constitucionais, mesmo que incompatíveis com o texto da Constituição, não há que se falar em observância à reserva de plenário, uma vez que o próprio STF já firmou entendimento sobre o assunto, assegurando não se tratar inconstitucional aquele ato normativo editado em momento anterior à promulgação da Constituição vigente. Tratando o artigo 97 expressamente de argüição de inconstitucionalidade, devem, portanto, aquelas normas que entraram em vigor sob o império de constituição pretérita ser revogadas e não declaradas inconstitucionais, não sendo, por conseguinte, exigida a observância do quorum mínimo estipulado pela reserva de plenário.

 

 

4 Recurso Extraordinário

 

 

Nas hipóteses em que não caiba o recurso especial, deve-se fazer uso do chamado recurso extraordinário para que o Supremo tribunal Federal julgue a respeito de controvérsias entre atos normativos. O recurso extraordinário se consolida na medida em que, no caso em análise, houver contrariedade à Constituição ou divergência jurisprudencial.

No seu artigo 102, III, reza a CF/88 que o recurso extraordinário é admitido somente nos casos em que a decisão recorrida contrariar dispositivo constitucional, declarar inconstitucional tratado ou lei federal ou, por fim, julgar válida lei ou ato de governo local em discordância com o disposto pela Constituição. A norma em foco não prevê ser necessário o julgamento em algum tribunal, o que supõe caber recurso extraordinário nos casos em que a questão tenha sido apreciada por um juiz singular, desde que o tenha sido em “única instância”.

Por meio da Emenda Constitucional n. 45/2004, foram estabelecidas novas exigências e prerrogativas no tocante ao recurso extraordinário e sua apresentação perante o Supremo Tribunal Federal. A mencionada emenda, entre outras modificações, passou a exigir do recorrente a demonstração de repercussão geral, provinda essa da controvérsia legislativa que rege o caso concreto. Se não apresentada a justificativa, ou se essa for insatisfatória e não preencher os requisitos essenciais, pode o referido tribunal não conhecer do recurso extraordinário, desde que dois terços de seus membros estejam em consonância com a decisão. Essa modificação foi necessária exatamente para evitar que sejam postos em discussão temas irrelevantes que não vão promover senão a obstrução do judiciário, ocupado em julgar e analisar questões de ínfima importância.

Tendo ainda como objeto a questão concernente à análise dos argumentos referentes à repercussão geral da lide, estabeleceu-se que os órgãos monocráticos do Poder Judiciário não podem recusar uma argüição de inconstitucionalidade por não considerarem que o caso apresentado repercute socialmente, ou seja, por acreditarem não existir esse pressuposto de admissibilidade objetivo específico do RExt. Indigitado requisito deve ser julgado pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, por dois terços de seus membros – equivalente a oito ministros.

 

 

5 Efeitos

 

 

Por se tratar de controle difuso de constitucionalidade, cuja principal característica consiste no fato de a decisão ter sempre como base o caso concreto em discussão, as conseqüências do julgamento somente atingirão as partes litigantes – eficácia inter partes –, não terão efeito vinculante – uma vez necessária a análise do caso concreto para a definição da validade da aplicação da norma jurídica a ele – e, geralmente, tem efeito retroativo, ou seja, ex tunc.

É de importante menção o fato de a norma – mesmo sendo declarada inconstitucional - não ser retirada do ordenamento jurídico, somente podendo sê-lo se assim consentir o Senado Federal ou por meio de súmula vinculante. A lei continuará a ter eficácia e aplicabilidade geral, sendo obrigatória a sua observância a todos que não sejam parte no processo em que foi considerada incompatível com a Constituição. Esse efeito independe do órgão que declarou a inconstitucionalidade da norma jurídica, i.e., seja se se tratar de juiz singular, tribunal de segundo grau ou do Supremo Tribunal federal, os efeitos da lei só serão suspensos para o caso em litígio.

Apesar de considerar os efeitos da declaração de inconstitucionalidade por meio difuso ex tunc, ou seja, retroativos, pode o Supremo Tribunal Federal – respeitado o quorum mínimo e analisando o caso em concreto – estabelecer efeitos ex nunc – meramente prospectivos – ou até mesmo determinar uma data futura para o início da eficácia da decisão pro futuro.

Quanto a não ter efeito vinculante, estabelece o STF que, mesmo declarada inconstitucional determinada norma jurídica, nada impede que em casos posteriores – semelhantes ou não – seja proferida decisão que contrarie aquela já uma vez prolatada. Dessa forma, os órgãos do Poder Judiciário e a Administração Pública não estarão vinculados à decisão, mesmo que julgada pelo Pretório Excelso. Há uma exceção a essa regra, quando concedida a possibilidade de ampliação dos efeitos da decisão a outras partes que tenham caso semelhante a ser julgado. Isso só se torna possível quando a decisão houver sido proferida pelo STF e se assim consentir o Senado Federal, como se mencionou alhures, declarando a suspensão da vinculação da norma a terceiros não envolvidos no caso julgado ou então se o próprio STF, através da edição de súmula vinculante, assim estabelecer.

 

 

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Autor: Carolina Rita Torres Gruber


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