O celular não aproximou-nos



O celular não aproximou-nos

 

Cada época, sob um paradigma próprio, fabrica seus brinquedos para satisfazer as necessidades do mercado e institucionalizar seus valores. O celular é um brinquedo eletrônico criado para permitir ao ser humano fugir de si mesmo.

 

Estou na casa de um amigo. Tentamos iniciar um diálogo quando o telefone toca. Sem pensar duas vezes, ele me deixa sozinho no sofá e corre, num desespero mórbido, para atender.

 

 Do outro lado da linha, alguém falando qualquer bobagem, apenas para usar seus créditos que expiram amanhã. Ele, com sua educação sinistra de quem dá mais valor as aparências e superfícies do que as essências e sutilezas, responde com risos falsos, cortejos fúnebres e respostas evasivas. Tudo para evitar o silêncio que permeia esse falso encontro, seja pela inutilidade da conversa, seja pela falsa necessidade de manter-se conectado a outrem, apenas para não perceber a própria solidão. Durante trinta minutos, duas subpersonalidades conversam puerilidades num clima solene, no afá de legitimar a seriedade de suas bobagens urbanas. Quando os créditos expiram, suas almas também expiram!

 

 

Ele volta para o sofá e tenta retomar o assunto, sempre de orelhas em pé, esperando que outra ligação importante aconteça. Ele sente-se importante. O celular transmite-lhe essa falsa sensação. Cada vez que o telefone toca, seu ego é massageado. Como não encontro naquele ambiente o amigo que tive anos atrás, vou embora e deixo-o nesse seu admirável mundo de coisas rápidas, fáceis e acessíveis. Quando estou diante de uma pessoa, preciso estar presente de corpo e alma, para ser uma autêntica companhia, do contrário, serei um espantalho ocupando, apenas, um lugar fisicamente.

 

 

Depois da celularite, doença normótica que acomete todo aquele que não consegue viver sem um celular, as pessoas não conseguem permanecer no aqui e agora, por muito tempo. Estão sempre longe, distantes, esperando um importante telefonema. Quando o celular toca, também não acontece um verdadeiro encontro. A pessoa que ligou não tem nada para dizer, porque já ligou outras três vezes já hoje, e a pessoa que atende não sabe o que falar porque tudo faz parte de um hábito alienante para nos manter conectados a qualquer coisa que nos protege do nada. As conversas tornaram-se fast foods coloquiais. O celular tornou-se um ritual para quebrar o tédio de nossas vidas vazias. Se ninguém liga, surge o silêncio. De dentro do silêncio, surgem vozes do passado, de assuntos não resolvidos, sonhos não realizados, medos infantis e neuroses. Por isso, precisamos permanecer “conectados” a toda hora, para fugir do auto encontro, para evitar a própria companhia. O mercado vende muros por pontes.

Celulares não pavimentam encontros mas acomodam solidões e distâncias. Uma confortável maneira de sentir-se menos só sem estar realmente acompanhado. Um egoísmo a dois.

 

Se atrás do telefone não existe uma pessoa de verdade porque as mil ligações não me deixam tempo para construir minha identidade, como poderia ser uma companhia para outro? Dois vazios dialogam sobre suas futilidades, usando-se mutuamente, num jogo simbiótico para manter-nos conformados com a falta de vida em nossas vidas. Além de não curar a solidão, o celular ainda aguçou-a porque impede o verdadeiro encontro. Facilita o intercâmbio de dois espantalhos mas impede a convivência sincera de duas pessoas.



João Márcio

Autor do livro Os Quatro Pilares da Educação


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