Direito e literatura: homicídio em "os faroleiros", conto de monteiro lobato



Direito e Literatura: Homicídio em “Os Faroleiros”,  conto de Monteiro Lobato

                                                                                                Márcia Belzareno dos Santos

                                                                                                marciabelzareno@ uol.com.br

 

                         “Matar alguém” – art. 121 do Código Penal – sempre foi  circunstância ou tema causador de muita indignação entre nós. Não é à toa que notícias sobre homicídios lideram os índices de audiência televisiva. Quando sabemos de alguém que, deliberadamente, abreviou a vida de outrem, ficamos, no mínimo, estupefatos. Somos tomados por uma espécie de comoção coletiva.  Queremos imediatamente saber o porquê daquela atrocidade. Tentamos, em vão, compreender os motivos que levaram uma pessoa a aniquilar  a vida de outra.

                          Na literatura não é diferente. Vários escritores, igualmente humanos como nós, mas, do ponto de vista artístico,  infinitamente mais sensíveis,  abordaram o tema do “matar alguém”,  em suas obras.

                          É o que acontece no conto “Os Faroleiros”, de Monteiro Lobato. A narrativa, publicada pela primeira vez em 1917, teve originalmente como título “Cavaleria Rusticana”, nome em seguida trocado pelo escritor, pois, segundo o próprio Lobato, as pessoas confundiam o significado de “cavaleria” com “cavalaria”.

                            O conto relata a história de Gerebita, um homem de aparência rude, que se tornou faroleiro com vinte e três anos apenas. Gerebita é descoberto por Eduardo, amigo do narrador . Contou Eduardo ao narrador que, após uma de suas leituras, sentiu curiosidade em conhecer, de verdade,  um farol por dentro.

                            Assim,  apesar de alguma resistência por parte de Gerebita para aceitar a presença de Eduardo  no farol,  sob a alegação de que o regulamento proibia estranhos na torre, é imediatamente vencido por Eduardo, ao lhe mostrar o que ele mesmo chamou de “o argumento decisivo”, ou seja, dinheiro. Levado até o farol por Dunga, conhecido de Gerebita, Eduardo  nem imaginava que, com aquela aventura,  acabaria sendo “comparsa numa tragédia noturna de arrepiar os cabelos”, ao presenciar, talvez involuntariamente, um crime de morte.

                           Aos poucos, Eduardo passa a conhecer uma parte da vida de Gerebita,  que se dispõe a explicar a Eduardo tudo refente ao seu ofício de faroleiro e à realidade daquelas paragens marítimas, longe de tudo e de todos. Apenas em relação à família, Gerebita se mostra reticente e pouco fala a respeito.

                           Com a convivência, Eduardo  se dá conta de que Gerebita não está sozinho no farol, tendo a companhia de uma espécie de ajudante, de colega de ofício – Cabrea.  De imediato, Eduardo constata que Gerebita nutre um ódio assumidamente consciente por Cabrea, inclusive, dizendo tratar-se o companheiro de uma pessoa louca.

                            Até que um dia, Geremita abordou, abertamente, com Eduardo, a questão da loucura e do consequente e necessário homicídio:

                                      “ – Quero que o senhor me resolva um caso. Estão dois homens numa casa; de repente um enlouquece e rompe, como cação esfomeado, para cima do outro. Deve o outro deixar-se matar como carneiro ou tem o direito de atolar a faca na garganta do bicho?”.

                          Será que, nesse trecho do conto, Geremita já demonstra a intenção de matar Cabrea? Será que Geremita usa a suposta loucura de Cabrea como um futuro argumento de legítima defesa? Será, ainda,  que Geremita desconsidera a condição humana de Cabrea, já que se refere a “bicho”, quando fala em uma hipotética defesa ?

                          Foi, então que, segundo o narrador, Eduardo contou que teria respondido  a Gerebita, como um rábula positivo:

                                      “ – Se Cabrea enlouquecesse e o agredisse, matá-lo seria um direito natural de defesa – não havendo socorro à mão. Matar para não morrer não é crime – mas isso só em último caso, você compreende.”

                       Geremita diz a Eduardo, distraidamente, que compreende, como quem está a seguir os volteios de uma ideia fixa.

                       Passam-se os dias e certa tarde Geremita chama a atenção de Eduardo para o agravamento da suposta loucura de Cabrea, aduzindo várias provas concludentes, às quais, é bom que se diga, não são citadas no conto. Diante da observação de Geremita, Eduardo pergunta:

                                “ – Tens medo?”

                               “ – Medo? Eu? De Cabrea?”, responde Gerebita, com expressão de ferocidade que lhe endurece o rosto.

                     Daí em diante, a conversa cessa; e Gerebita  fica a baforar seu cachimbo, como quem rumina uma ideia fixa.

                     Na mesma  noite, Eduardo acorda com barulhos vindos de cima, da torre. E pressente a catástrofe esperada.  Constata que são barulhos de luta e encontra os dois faroleiros engalfinhados em uma luta feroz. Tenta intervir e, pela primeira vez, ouve a voz de Cabrea,  que  em nada denuncia a suposta loucura, sempre alegada por Geremita.

                     Ao final da horrenda luta, Eduardo encontra uma cena hedionda. Cabrea com a carótida estraçalhada a dentes, caído num lago de sangue.  Gerebita com o rosto e o peito vermelhos, a mão sangrenta, no chão, sem sentidos.

                      Na manhã seguinte à catástrofe humana, Gerebita disse a Eduardo:

                               “ – O mar não leva daqui os corpos à praia e o mundo não precisa saber de que morreu Cabrea. Caiu n’água – morte de marinheiro, e o moço é testemunha  de que matei para não morrer. Foi defesa. Agora vai  jurar-me que isto sempre ficará entre nós.”

                    Tocando de leve a mão mutilada de Gerebita, Eduardo fez o juramento de não contar o que havia acontecido.

                    Nesse mesmo dia, o mesmo barco que levou Eduardo para o farol, veio buscá-lo.   

                   No caminho de volta, Eduardo contou ao capitão de embarcação a sua versão sobre o ocorrido.  Que Cabrea havia despencado torre abaixo, vindo a sumir paa sempre no meio das ondas. Para surpresa de Eduardo, o capitão demonstrou não acreditar muito na história por ele contada. Disse que todos já conheciam Cabrea, desde que ele havia furtado Maria Rita, então mulher de Gerebita.  Disse que, na época em que Maria Rita fugiu com Cabrea, Gerebita quase morreu. Não morreu, mas se refugiou no farol, que é uma forma de morrer para o mundo. Mas que, logo após, Maria Rita acabou deixando também Cabrea, fugindo com um terceiro. E que, por essas coisas da vida, os dois faroleiros acabaram se encontrando no mesmo lugar. E que se a história não tivesse terminado assim, conforme Eduardo contou, teria terminado na ponta de uma faca.

                  O conto de Monteiro Lobato  é um relato de homicídio que, embora  presenciado por uma única testemunha, já havia sido previamente anunciado pelas circunstâncias vividas pelos envolvidos e pela constante animosidade que os acompanhou durante boa parte de suas vidas.  Lobato, através da Literatura, traz subsídios ao Direito para analisar, interpretar e tentar compreender  um dos delitos  que mais intrigam e indignam a sociedade.

Questões para debate:

- Geremita tinha intenção premeditada de matar Cabrea, ainda que não fosse agredido ?

- Geremita estaria forjando uma suposta loucura de Cabrea, a fim de utilizá-la como argumento de legítima defesa,  posteriormente?

- Com base na situação narrada no conto, poderíamos dizer que aconteceu um crime passional ? Sim ou Não? Por quê?

- A mão mutilada de Gerebita pode ser indício de uma possível legítima defesa ?

- O fato de Cabrea ter se mudado justamente para o mesmo farol pode indicar que ele se encontrava com o mesmo ânimo de contrariedade e de adversidade, constatado em Gerebita?

- Qual a situação jurídica de Eduardo, ao presenciar  e omitir um delito consumado?

-  O conto, ora comentado, foi publicado pela primeira vez em 1917, há quase um século atrás. De lá para cá, houve progresso em relação à edição e à aplicação das leis penais ? 

O conto “Os Faroleiros” foi retirado de: LOBATO, Monteiro. Urupês. São Paulo: Editora Globo, 2008.

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Autor: Márcia Belzareno Dos Santos


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