O 'era uma vez', no mundo do silêncio



A finalidade do brincar seria, por consenso, levar a criança a compreender, conhecer e desenvolver habilidades que contribuam para seu desenvolvimento integral.

Ainda, segundo Freire e Scaglia (2009 p.28), “Uma pessoa quando começa a falar, pode, através da fala, deixar de realizar certas ações motoras que passam a ser simbolizadas”, sendo o simbolismo o que envolve a criança no brincar, como isto se daria, no processo de desenvolvimento da criança surda? Como não pensar então, em uma comunicação não-oral para suprir a necessidade de estruturação do pensamento? Realmente, pela linguagem de sinais, a criança pode se desenvolver de forma satisfatória?

São os questionamentos que se pretende responder, já que, sua especificidade é a de não possuir a linguagem oral, como língua materna. Para isso autores como Góes, Simões e Silva, têm se ocupado especificamente desta temática e foram a base para esta pesquisa.

O Brincar

O ato de brincar é abordado e teorizado por muitos pensadores, porém, o conceito que nos baseará neste trabalho será o de Dantas (in KISHIMOTO (org.),2002, p.111) “brincar é a forma mais livre e individual” sendo expressa desde “as formas mais primitivas de exercício funcional” até o jogo simbólico e de representação de papéis. Este conceito foi escolhido por abranger todas as facetas do brincar na infância.

Enquanto brinca, a criança cria e recria sua realidade (CERISARA,2002), imita comportamentos típicos dos adultos (VIGOTSKY,1984), desenvolve habilidades motoras (DANTAS, 2002) e cognitivas (BRUNER,1978), participa da produção cultural (BROUGERÈ,2002) e se afirma enquanto sujeito único.

O brincar é característico na faixa etária entre dois e seis anos, período do desenvolvimento considerado como mais importante, segundo Moyles (2005). É através do brincar que a criança supera conflitos, pensa e organiza seus pensamentos, desenvolve habilidades sociais e afetivas, assume papéis diversos e constrói sua identidade. Nesta fase de descobertas e curiosidade, tudo o que lhe parece diferente, estranho, ou mesmo engraçado, se torna um tema para brincadeiras. Ao brincar a criança explora o mundo, impulsionada por prazer e motivação interna. 

Apesar de ser vista como uma atividade útil e estimulante para a criança adquirir conhecimentos, treinar habilidades e se distrair, o brincar infantil é social em grande parte. Ao recriar ou imitar sua realidade, além dos traços imaginativos que utiliza para compor o cenário e ambiente da brincadeira, a criança participa e age no “jogo simbólico”.

O jogo simbólico se refere ao uso da fantasia, muitas vezes misturada à própria realidade, no brincar das crianças, esta faceta do brincar, em que a criança pode inventar papéis e criar uma história, é vista como ideal para o desenvolvimento da imaginação e criatividade da criança pequena. Para que este brincar favoreça tal desenvolvimento, é necessário que haja liberdade de expressão e que ocorra a possibilidade de serem “guiadas livremente pela própria imaginação” (SMITH in MOYLES [et al], 2005 p.27). Esta liberdade é contemplada no brincar espontâneo.

 O brincar espontâneo vem sendo reconhecido como parte do desenvolvimento da criança, desde 1970 na Europa Ocidental. Hoje os teóricos entendem este tipo do brincar, como componente essencial do desenvolvimento social, intelectual e criativo. É possível ainda, perceber que durante o brincar espontâneo a criança pode explorar e conhecer o mundo a sua volta. Segundo Kishimoto (2002), Bruner, teórico da infância, destaca como ponto fundamental a contribuição, do brincar livre, ao liberar a criança das pressões da realidade.

Estas formas de brincar abrangem, conforme Smith (in MOYLES [et al],2005), o faz-de-conta, a fantasia e o jogo “sociodramático”, para o autor, o brincar “sociodramático” pode ser entendido pelo jogo entre duas ou mais crianças envolvidas em uma mesma dramatização, o que para o autor, se constitui “um modo primário de interação social neste intervalo de idade” (MOYLES [et al], 2005 p.26), por envolver a coordenação das atividades entre parceiros.

 

A linguagem e o brincar

“A linguagem incorporada à atividade prática da criança transforma essa atividade e a organiza em linhas inteiramente novas, produzindo novas relações com o ambiente, além de nova organização do próprio comportamento.”

 (VYGOTSKY,1988 apud CERISARA, 2002 p.131)

Smith (in MOYLES [et al],2005 p.31) argumenta que “o jogo simbólico é muito importante para o desenvolvimento de habilidades lingüísticas nas crianças pequenas”. Também para Bruner, citado por Kishimoto (2002), o brincar livre oferece à criança a oportunidade para “atrever-se a pensar, falar e ser ela mesma”.

Ainda outra forma do brincar, o “sociodramático”, pela necessidade de se articular as situações entre dois ou mais parceiros, também pode ser considerado momento de desenvolvimento da linguagem, e a representação de papéis ao trazer a necessidade de imitação, se encaixa no mesmo patamar.

Pelas contribuições de Bruner, pode-se compreender a linguagem como instrumento de pensamento e ação, pois, se a criança brinca com desenvoltura e utiliza os elementos e objetos de seu mundo, também é capaz de desenvolver a habilidade de falar sobre estes. O autor conclui, “o que faz a criança desenvolver seu poder combinatório não é a aprendizagem da língua ou a forma de raciocinar, mas as oportunidades que tem de brincar com a linguagem e o pensamento” (BRUNER apud KISHIMOTO, 2002 p.148).

Portanto pode-se considerar que o aprendizado de uma língua, pelas crianças, acontece mais rápido quando inserido no brincar, ou seja, a partir do lúdico.

O simbolismo e a criança surda

Segundo Mrech (in KISHIMOTO (org.),2002 p.161) “o processo de desenvolvimento de cada criança necessita de desencadeadores através da linguagem e da fala”. Como poderia então a criança surda desenvolver-se sem uma língua materna?

Ao se pensar em crianças surdas, em um primeiro momento, se faz necessário identificar a necessidade de uma língua materna visual.

 “A criança nasce imersa em relações sociais que se dão na linguagem. O modo e as possibilidades dessa imersão são cruciais na surdez, considerando-se que é restrito ou impossível, conforme o caso, o acesso a formas de linguagem que dependem da audição. Sobretudo nas situações de surdez congênita ou precoce em que há problema de acesso a linguagem falada, a oportunidade de incorporação de uma língua de sinais mostra-se necessária para que sejam configuradas condições mais propícias à expansão de relações interpessoais, que constituem o funcionamento nas esferas cognitivas e afetivas e fundam a construção da subjetividade”.

                                  (GÓES,1996 apud QUADROS,1997 p.29)    

Nas abordagens psicanalítica e lingüística, e teorias do desenvolvimento, há o entendimento quanto ao domínio de uma língua materna, que é julgado como fundamental para o desenvolvimento natural do indivíduo. Sendo assim a língua sinalizada, para a criança surda, se tornaria garantia do desenvolvimento cognitivo e social. Por isso, há o consenso entre os educadores de surdos e teóricos da área, quanto a necessidade de desenvolvimento de uma língua sinalizada, principalmente na primeira infância, quando a identidade, a linguagem e o pensamento são construídos e organizados.

Segundo os teóricos pesquisados, deve-se buscar a língua sinalizada como suporte para o desenvolvimento do pensamento, o que se dá pelo simbolismo. A criança surda terá as mesmas possibilidades, de uma criança ouvinte, para se desenvolver cognitiva e socialmente a partir do uso eficiente da língua sinalizada.

Dentre as observações realizadas em pesquisas, os autores descrevem algumas situações que demonstram a forma como a criança surda se utiliza da língua sinalizada para simbolizar. Podemos tomar como exemplo o brincar simbólico e o sociodramático, que envolvem a linguagem, como pressuposto. Nas observações descritas por Góes (2001), Silva (2006) e Simões (2006), estas formas do brincar são vivenciadas pela criança surda com o uso da língua sinalizada.

Um maior conhecimento da língua materna favorece à criança um desenvolvimento social e cognitivo natural. Porém, uma grande diferença entre a evolução de crianças surdas de pais ouvintes e das que tem pais surdos, vem sendo notada. Isto se dá pela importância das interações lúdicas e vivências sociais com uso da língua materna, o que pouco ocorre quando os pais são usuários de uma língua oral. A vivência pobre, na língua de sinais dentro da família, atrasa a aquisição de uma linguagem simbólica e significativa.

Segundo Curtis (in MOYLES [et al], 2005 p.41) “os efeitos culturais do ambiente familiar não podem ser ignorados, pois tem uma considerável influência sobre os padrões posteriores de comportamento e do brincar da criança”. Portanto as experiências em língua sinalizada nos momentos do brincar, dentro da família, são de grande importância para o desenvolvimento da afetividade entre pais e filhos e a evolução do simbolismo pela criança surda.

Já se reconhece que a formação da linguagem está ligada ao processo de evolução da capacidade de simbolizar, o que Piaget (apud FREIRE & SCAGLIA,2009 p.28) descreve como “representação mental dos objetos do meio externo”. O simbólico funciona como maneira de relacionar, e organizar internamente, experiências, conhecimentos e entendimentos, “com o surgimento da linguagem nasce-se para um novo mundo, sem fronteiras, ligado ao imaginário, aos sonhos e fantasias, aos projetos e pensamentos” (FREIRE & SCAGLIA,2009 p. 32), realidade que pode ser observada, também na vivência da criança surda.

Sugerem ainda, as teorias analisadas, que a criança surda é capaz de simbolizar e construir situações imaginárias, apesar da pouca presença da língua sinalizada em seu cotidiano e observa-se que a linguagem interfere no nível de complexidade da imaginação, inerente ao ato de brincar, e nas interações sociais. Porém a criação e imaginação podem ser comprometidas, pela falta da linguagem, e algumas vezes são insuficientes para a evolução do simbolismo.

O simbolismo no brincar traz para a criança a possibilidade de compreender o mundo à sua volta, quando se pensa na criança surda, segundo Simões (2006), a aquisição da língua de sinais é o que irá proporcionar significado ao ato do brincar. Em seus estudos a autora observa que a criança usuária da língua de sinais utiliza-se da linguagem como apoio para a representação de papéis, explicando as situações e produzindo um “cenário imaginário”, para que aconteçam as interações.

Góes (2004), citada por Simões (2006 p.8), argumenta que “este aspecto do brincar é fundamental por envolver um trabalho de elaboração que é feito sobre as imagens e membros do grupo social e sobre os modos de agir e de estabelecer relações de modos interpessoais”, isto se dá pela imitação do outro, característica principal da representação de papéis.

A elaboração e experimentação de outros papéis trazem para a criança, a partir da linguagem, a possibilidade de se conhecer enquanto parte da cultura e meio social em que vive, favorecendo a construção de sua identidade, esse “faz de conta”, para Brougère (apud KISHIMOTO (org.),2002 p.147) “é também uma forma de socialização que prepara a criança para ocupar um lugar na sociedade adulta”.

Assim como ocorre com a criança ouvinte, Góes (apud SIMÕES, 2006) conclui em suas pesquisas, que a criança surda, assim como a ouvinte, se desenvolve linguística e cognitivamente a partir de interações sociais e por experiências de interação lúdica com o outro. Fato que certamente pode ser facilitado, e despertado, por meio do brincar.

Conclusão

O brincar para a criança surda se mostra tão importante e ocorre de forma tão natural, quanto para a criança ouvinte. Porém, ainda existe a necessidade de se buscar maior qualidade nas interações familiares e com outros pares, para que haja maior possibilidade de desenvolvimento, principalmente da linguagem de sinais, por meio do simbolismo, no brincar. Esta necessidade é pertinente, por ser a língua sinalizada de suma importância para o desenvolvimento, de forma integral, da criança surda.

Referências

FREIRE, João Batista; SCAGLIA, Alcides José. Educação como prática corporal. São Paulo: Scipione, 2009. Cap.9

GÓES, Maria Cecília Rafael de. O Brincar de Crianças Surdas: Examinando a Linguagem do Jogo Imaginário. In: 24a. Reunião Anual da ANPED, 2001, Caxambu. Anais da 24a. Reunião Anual da ANPED, 2001. Disponível no site: http://www.educacaoonline.pro.br/index.php?option=com_content&view=article&id=52:o-brincar-de-criancas-surdas-examinando-a-linguagem-no-jogo-imaginario&catid=5:educacao-especial&Itemid=16

KISHIMOTO, Tizuko Morchida (org.). O brincar e suas teorias. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2002.

MOYLES, Janet R. [et al]. A excelência do brincar. Porto Alegre: Artmed, 2005.

REGO, Teresa Cristina. Vigotsky: uma perspectiva histórico-cultural da educação. 21 ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2010.

SILVA, Daniele Nunes Henrique. SURDEZ E INCLUSÃO SOCIAL: O QUE AS BRINCADEIRAS INFANTIS TÊM A NOS DIZER SOBRE ESSE DEBATE?

Caderno Cedes, Campinas, vol. 26, n. 69, p. 121-139, maio/ago. 2006. Disponível no site: http://www.scielo.br/pdf/ccedes/v26n69/a02v2669.pdf

SIMÕES, Marina Velosa. A língua de sinais como foco de construção do imaginário no brincar de crianças surdas. ETD – Educação Temática Digital, Campinas, v.7, n.2, p.24-33, jun. 2006. Disponível no site: http://www.salesianolins.br/areaacademica/materiais/posgraduacao/Educacao_Especial_Inclusiva/Fundamentos_e_pr%E1ticas_de_%20ensino_para_pessoas_com_necessidades_educativas_especiais/art%20sim%F5es.pdf


Autor: Amanda De Almeida Soares Barbosa


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