Perto do coração selvagem



UMA NOVA ESTRUTURA LITERÁRIA NA NARRATIVA PERTO DO CORAÇÃO SELVAGEM DE CLARICE LISPECTOR

 

Resumo

 

Este trabalho tem como destaque central a obra de Clarice Lispector, em especial, Perto do Coração Selvagem e suas rupturas com o mundo literário até então existente, derrubando paradigmas de uma estrutura linear, metódica que se apresentava antes da 3ª Fase do Modernismo. O rompimento das relações entre a escritura de Clarice Lispector e as ressonâncias de uma tradição transformam a obra clariceana em um novo despertar literário. Clarice Lispector pertence a essa última fase do Modernismo onde os fatos tornam-se secundários e surge a priorização das repercussões dos fatos nas pessoas, ou mesmos, os registros das impressões subjetivas (é o tempo de James Joyce e Virginia Woolf). Clarice usa de metáforas, rupturas bruscas de segmentos de escrita ao mesmo tempo em que apresenta um encantamento pela vida quando se reporta ao mar, caracterizando em Perto do coração selvagem, a fuga e ao mesmo tempo a segurança do realismo da personagem Joana; a presença feminina é característica, também, da obra de Clarice, pois existem questionamentos a respeito da figura feminina e o seu papel dentro da sociedade. Perto do Coração Selvagem é o seu primeiro romance, escrito em 1945, e foi agraciada com o prêmio Graça Aranha. O estudo, baseado em pesquisa bibliográfica desse trabalho, é apenas um pequeno apêndice sobre a apresentação da obra clariceana Perto do Coração Selvagem e a sua aceitação e transformação na literatura brasileira, rompendo com tudo que se podia dizer sobre as obras editadas e que eram destaques na época.

 

Palavras-chave: Clarice Lispector, linguagem, literatura e obras

 

1 Introdução

            O trabalho literário de Clarice Lispector criou, em todos os seus aspectos, opiniões as mais diversificadas possíveis, uma vez que muitos autores e/ou críticos a apoiavam e outros consideravam sua obra estranha, intolerável, pois o estilo literário de Clarice é inconfundível e esse estilo perdura-se em toda a sua obra.

            Clarice Lispector era uma escritora que dizia que escrever era um pesadelo que se tornava um sonho maravilhoso. São as antíteses, as metáforas, as adjetivações caracterizando uma linearidade em seus textos; aparecendo em sua obra de estreia Perto do coração selvagem.

            Os traços pessoais da autora, presentes no decorrer de sua obra, são constantes, mas alguns críticos achavam-na uma “experiência incompleta” que apresentava certas falhas na construção à personagem, e deve-se levar em conta o desconhecimento de alguns críticos por essa nova maneira de se colocar no papel romances de uma singularidade ímpar, tornando os textos clariceanos em um rompimento com a época que se preocupava com os regionalismos e com a política até então existentes.

            Clarice Lispector sempre se considerou caótica, amadora dizendo que “escrevo porque encontro nisso um prazer que não consigo traduzir. Não sou pretensiosa. Escrevo para mim, para que eu sinta a minha alma falando e cantando, às vezes chorando...”

            Clarice expressava, na sua maneira de escrever, o consciente de suas personagens, por isso todos alegam que há um “fluxo de consciência” e uma “epifania” permanente em seus escritos. A autora tinha por hábito escrever de modo singular, muito simples, pois colocava em qualquer papel ou mesmo em um  pedaço de papel o que lhe ocorria em certos momentos. Para ela a liberdade que sentia era quando escrevia, a palavra era o seu domínio sobre o mundo. Um pequeno pedaço de papel, mesmo sendo um guardanapo, recebia suas anotações; a autora não relia nada do que escrevia. Simplesmente escrevia e pronto.

            São palavras citadas pela autora:

 

Eu só escrevo quando eu quero, eu sou uma amadora e faço questão de continuar a ser amadora. Profissional é aquele que tem uma obrigação consigo mesmo de escrever, ou então em relação ao outro. Agora, eu faço questão de não ser profissional, para manter minha liberdade.

 

            Clarice Lispector introduziu, na literatura brasileira, uma nova postura na arte de escrever; escrevia com uma semelhança indiscutível aos das escritoras inglesas Katherine Mansfield e Virginia Woolf cujos romances sempre foram introspectivos, demonstrando que o enredo importa bem menos do que o “mergulho” do narrador no fluxo do pensamento do personagem.

            Essa ruptura é tão abrupta, realmente tão brusca que o leitor acaba se deparando com ele sem nenhum aviso por parte do narrador, sentindo-se como se tivesse “pulado” páginas do livro.

            Percebe-se com muita clareza que a ficção de Clarice Lispector nada mais é do que uma articulação, um similar de sua própria vida que a autora inventava no decorrer de sua vida profissional por suas viagens, por seus amigos, por suas relações entre outros comportamentos e atitudes.

            Para se ter uma ideia da obra de Clarice Lispector é necessário conhecimento sobre a vida da autora, as humilhações de uma menina que desde cedo tem a voracidade pela leitura e o afã de querer ser uma escritora; a perda da mãe, aos dez anos de idade e também a morte do pai (grande amigo e companheiro) são fatos que acabaram por fazer parte da ficção do enredo introspectivo de Perto do Coração Selvagem e que de prontidão são encontrados nas primeiras linhas do romance no primeiro capítulo intitulado “O PAI”.

 

Mas de repente num estremecimento deram corda no dia e tudo recomeçou a funcionar, a máquina trotando, o cigarro do pai fumegando, o silêncio, a folhinhas, os frangos pelados, a claridade, as coisas revivendo cheias de pressa como uma chaleira a ferver. Só faltava o tin-dlen do relógio que enfeitava tanto. Fechou os olhos, fingiu escutá-lo e ao som da música inexistente e ritmada ergueu-se na ponta dos pés. Deu três passos de dança bem leves, alados (LISPECTOR, 1998, p.13).

 

            As metáforas insólitas são as bases de sustentação do fluxo de consciência e da epifania em seus escritos. As presenças femininas como Joana (a protagonista), a mãe, a tia, a mulher da voz, Lídia são características predominantes em toda a obra clariceana, principalmente no romance Perto do Coração Selvagem publicado em 1943, época em que a mulher é ainda submissa ao homem e à sociedade de uma maneira generalizada.

 

2 A autora Clarice Lispector

 

            Clarice Lispector tinha pouco menos de 20 anos quando, em 1943, publicou seu primeiro romance Perto do coração selvagem, leitura que causou grande impacto no público e na crítica porque desconsiderava toda a tradição do romance da década anterior, de teor regionalista e também realista.

            A autora reproduzia a novidade de uma narrativa introspectiva e intimista, em que a história em si (a sequência de episódios) tinha pouca relevância. O que predomina é a corrente da consciência, o labirinto da memória, a ruminação interior dos acontecimentos e dos mais leves movimentos da vida.

            A narrativa remete a episódios da vida de Joana, a protagonista. Mas o que segue são suas sondagens introspectivas, seus monólogos interiores. Joana não tem rosto; dela fica-se conhecendo não o perfil físico, mas as alegrias e as paixões; não uma história linear, mas a memória e o experiencial íntimo de sua existência no alcanço do selvagem coração da vida.

            A obra de Clarice Lispector compõe-se de vários romances e livros de contos, adquiriu projeção internacional e continua gerando encantamento em sucessivas gerações de leitores brasileiros pela singularidade de sua maneira de narrar.

            Clarice Lispector nasceu em 1920 na Ucrânia, veio para o Brasil com sua  família ainda recém-nascida, morando  inicialmente em Pernambuco e, mais tarde, no Rio de Janeiro, aonde a escritora viria a falecer em 1977. Desde sua primeira obra, que publicou aos dezenove anos de idade, logo se percebeu em Clarice Lispector o esforço em querer atingir as camadas mais profundas da consciência humana, em busca do que significava a existência e da própria atividade de escrever. Ainda estudante, produziu seu primeiro romance, Perto do coração selvagem.

            O interesse principal em seus romances e contos não se encontra no desenrolar do enredo; o que importa à autora é investigar como os fatos se desenrolam sobre a consciência das personagens. Como se vê, é uma literatura introspectiva, que mergulha fundo no interior do ser humano para revelar suas dúvidas e inquietações. Ou, nas próprias palavras de Clarice: “Tenho medo de escrever. É tão perigoso. Quem tentou, sabe. Perigo de mexer no que está oculto – e o mundo não está à tona, está oculto em suas raízes submersas em profundidade de mar (...)”.

            Reconhecida pela preocupação em capturar e até definir o instante sobre o qual escreve, a prosa de Clarice muitas vezes explora a revelação proporcionada por um instante que a princípio parece igual aos outros, parece fazer parte do dia a dia mais banal, mais corriqueiro O tempo tem importância fundamental em sua obra – escoa, se esvai e acaba. Essa ideia que indica fim a assusta, e a escrita resulta desse medo. Afirma Clarice:

            “O tempo não existe. O que chamamos de tempo é o movimento de evolução das coisas, mas o tempo em si não existe”.

            Clarice Lispector pertence à Terceira Fase do Modernismo que se especifica pela busca de uma nova linguagem.

            Para Clarice Lispector, em sua obra, o que interessa é a sondagem psicológica do indivíduo, a análise de suas angústias e seus dramas existenciais. O fato em si pouco interessa à narrativa: “o importante é a repercussão do fato no indivíduo”, como declarou a própria escritora. Na verdade, a ocorrência do fato provoca o mergulho da personagem no seu mundo interior, em direção ao subconsciente e ao inconsciente.

            Em uma linguagem que transita entre a prosa narrativa e as imagens típicas da poesia, Clarice Lispector rompe com a linearidade da narrativa, ou seja, a narrativa com começo, meio e fim. À escritora interessa a narrativa baseada na memória e na emoção, isto é, no fluxo da consciência da personagem, e esse fluxo não segue ordem cronológica. Essa característica observa-se,sobretudo nas narrativas mais longas como a apresentação em seus romances, e isso demonstra que não há diferença entre o espaço e o tempo.

            Interrompem-se as linhas e os círculos perfeitos se transportam para a forma do romance que não possui linearidade. Várias passagens de sua obra exprime linhas interrompidas que buscam relações com passagens posteriores, e outras que se apresentam como círculos que encerram uma etapa da vida da personagem. Os acontecimentos que são narrados no romance não induzem a um clímax e, portanto não há hierarquia entre os momentos de vida da personagem.

            O monólogo também é uma característica marcante da clariceana, já que é uma técnica adequada a aprender a introspecção das personagens. O diálogo ocorre sempre com menor frequência.

            A obra de Clarice Lispector compõe-se de vários romances e livros de contos, e adquiriu projeção internacional e continua gerando encantamento em sucessivas gerações de leitores brasileiros pela singularidade de sua maneira de narrar.

            Em seu primeiro romance: Perto do Coração Selvagem criou-se um grande impacto entre os críticos brasileiros, pois enquanto alguns achavam a obra estranha , intolerável, muito introspectiva dizendo  que Clarice era uma “ escritora de nome esquisito” com tendências à exibição, outros, mesmo não vendo perfeição em sua obra, reconheceram a coragem de Clarice, até então uma autora desconhecida que usou o idioma para a criação de frases introspectivas originais, metáforas, antíteses, adjetivações, fluxos de consciência, epifania além de enredos bem diferenciados dos romancistas considerados regionalistas como Érico Veríssimo, Jorge Amado, Graciliano Ramos, José Lins do Rego e outros que escreviam suas obras em envolvimentos políticos atraindo o gosto e/ou preferência dos leitores.

            A obra Perto do Coração Selvagem destaca as marcas de toda a criação clariceana com a presença das metáforas insólitas, o fluxo de consciência , o monólogo interior, a ruptura com o enredo factual. As personagens vivem mergulhadas em um estado de profunda introspecção, em uma atmosfera nebulosa, pois são delimitadas, podadas para a vida real; mas, de certa maneira, tudo isso, trabalhado de forma harmoniosa com uma linguagem bem elevada, que toca o lado poético. A sua ficção concentra-se, sobretudo, nas regiões mais profundas, mais intrínsecas do inconsciente, trazendo à tona, os desejos e as volições que muitas vezes, tornam-se ignorados até mesmo pelas próprias personagens. Em relação ao espaço exterior, as suas narrativas têm importância pouco relevante ou secundária, pois tudo se condensa à mente das personagens.

            O objetivo maior do texto é o momento da epifania: a personagem descobre que vive em um mundo absurdo, ocorrido por meio de um fato inusitado, a partir do qual, o desequilíbrio interior provocará uma mudança radical na vida da personagem.

            Nos contos e romances de Clarice, a epifania aparece não apenas como motivo, mas como técnica utilizada como um procedimento que se constrói em linguagem.

            Olga de Sá utiliza-se do conceito exegético para explicar a transfiguração que os acontecimentos cotidianos sofrem nos textos de Clarice e sua transformação em meios para uma “efetiva descoberta do real”.

            O que mais impressiona na obra de Clarice é o fluxo de consciência, uma técnica usada por grandes escritores como James Joyce, Virginia Woolf, para que se possa alcançar o íntimo de suas personagens: a narrativa faz com que o leitor mergulhe nos seus pensamentos, mas sem nenhuma garantia de articulação lógica, temporal e espacial entre as ideias, quebrando, desse modo, a tradição narrativa completamente.

            Percebe-se que a escritora teve a preocupação em ler e concordar com Antonio Candido sobre como era importante que o pensamento entrasse em sintonia com a linguagem afinando-a e a língua sugerir o pensamento por ela afinado, pois no texto “Literatura de vanguarda no Brasil”, de 1963, sobre a língua, pensamento e literatura, a autora escreveu:

 

Nossa língua ainda não foi profundamente trabalhada pelo pensamento. ‘Pensar’ a língua portuguesa do Brasil significa pensar sociologicamente,psicologicamente, filosoficamente, linguisticamente sobre nós mesmos. Os resultados são e serão o que se chama de linguagem literária, isto é, linguagem que reflete e diz, com palavras que instantaneamente aludem a coisas que vivemos; numa linguagem real, numa linguagem que é fundo-forma, a palavra é na verdade um ideograma. (OE, p.106)

 

            Clarice Lispector consegue fazer sobressair o sentido oriundo da linguagem literária quando a considera que esta “diz com palavras que aludem”, “numa linguagem real”, “fundo-forma”, “um ideograma”.

            Ao iniciar as críticas a respeito de seu primeiro romance Perto do Coração Selvagem, já apontavam problemas que se relacionam com as expectativas dos leitores quanto aos modelos do considerados romances convencionais. Para muitos leitores, pela incompreensão dentro de sua obra, pelas convenções antigas, a obra clariceana era defeituosa, cheia de enigma, e além disso, personagens surgiam inesperadamente do nada. Paul Ricoeur (1995) com relação à configuração do tempo na narrativa, afirma que:

 

Uma coisa é a rejeição da cronologia; outra, a recusa de qualquer princípio substitutivo de configuração: não é pensável que a narrativa possa dispensar qualquer configuração. O tempo do romance pode romper com o tempo real: é a própria lei da entrada na ficção. Mas ele não pode deixar de configurá-lo segundo novas normas de organização temporal que sejam ainda percebidas pelo leitor como temporais, graças às novas expectativas relativas ao tempo da ficção. (RICOEUR, 1995, p.41)

            A preocupação de Clarice sempre foram as palavras: essas sim conseguem transmitir em sua essência, aquilo que a autora quer transpor, no papel, seus sentimentos, suas angústias e como Rachel de Queiroz expressa: “Gostava muito dela e ele gostava muito de mim. Era uma pessoa estranha, muito fechada, cheia de fragilidades. Você magoava Clarice sem saber, era uma pessoa extremamente difícil. Como escritora, era a maior de todos nós.”

            Clarice Lispector transmitia, em todas as suas obras, uma preocupação com a linguagem, sua literatura é considerada como um espelho da mente, registrado justamente pelo fluxo consciência que acaba por indefinir as fronteiras que existem entre a voz do narrador e das personagens segundo Campedelli e Abdala.

            Um destaque muito importante na obra clariceana é que grande parte das personagens é mulher, transformando a obra em uma obra reflexiva, o que gera uma tendência à introspecção, pois reflete os questionamentos do papel da mulher na sociedade.

            A presença da mulher Clarice se interpõe com a presença da autora Clarice, e faz em algumas passagens a nitidez dessa fusão em seu romance.

            É surpreendente como em suas obras as personagens, em sua maioria feminina, são flagradas em momentos da sua trajetória, pois o mundo ao seu redor não tem sentido, o vazio é parte intrínseca dessas personagens, buscando um retorno ao passado, totalmente libertas das máscaras sociais em um processo de individualização.

            O mundo interior das personagens clariceana é fruto de uma época que concede à literatura o pensar-se em si mesma como sua própria necessidade, a narrativa de Clarice sabe desempenhar papel de reconhecimento da linguagem como um obstáculo, um estorvo, um fracasso e ao mesmo tempo uma glória em um percurso inevitável.

            Segundo a autora:

 

A trajetória não é apenas um modo de ir. A trajetória somos nós mesmos. Em matéria de viver, nunca se pode chegar antes.

A via-crúcis não é o descaminho, é a passagem única. Não se chega senão através dela e com ela. A insistência é o nosso esforço, a desistência o nosso prêmio (p. 172)

 

            A obra de Clarice Lispector Perto do Coração Selvagem é narrada em terceira pessoa, demonstrando a libertação do personagem de um suposto condutor, sendo que o ponto de vista é do personagem e os diálogos entram quase como um acaso na narrativa.

            O espaço e o tempo é uma coisa só na obra de Clarice; não há preocupação com a ordem cronológica, mas com o tempo interior, com a sensação de existir.

 

 

3 Primeira obra de Clarice Lispector: Perto do coração selvagem

 

            A autora Clarice Lispector apresenta, em sua obra características tão diferenciadas que acabaram por marcar uma nova fase no Modernismo junto ao escritor Guimarães Rosa; a escritora desperta um novo estado de espírito até então só existente com James Joyce, Katherine Mansfield e Virgínia Woolf. Para Clarice, o enredo não é a parte de destaque, mas sim o que as personagens demonstram em repercutir em suas consciências.

            O fluxo de consciência é a preocupação e a parte investigativa da obra clariceana; não importa para a autora uma sequência de fatos que esclareçam o leitor sobre suas atitudes, o espaço, o tempo além de enredos com deslizes de altos e baixos; com ações que trazem posturas poéticas idílicas sem a apresentação da própria consciência de cada personagem.

            O romance divide-se em duas partes e possuindo cada capítulo um título. Na transcorrência do tempo entrecortado da narrativa, Benedito Nunes (1989, p.22) dispõe dizeres tais como bem observado, “alterna ou no mesmo episódio ou em episódios distintos, como sucede na primeira parte do romance, o passado com o presente” da personagem Joana.

            Com respeito à temporalidade do romance,

 

o que acompanha, nessa parte, a ordem associativa e evocativa das vivências, substitui a unidade biográfica externa pela unidade múltipla da duração que o dinamismo da consciência articula. Os estados subjetivos, com as qualidades próprias, distribuem-se em cadeias autônomas, que fixam instantâneos de presente ou passado e correspondem a episódios completos. (NUNES, 1989, p.22)

 

            O autor acima ainda quando se refere à primeira parte diz que os episódios podem ser lidos e compreendidos como episódios completos, mas os mesmos encontram-se relacionados a outros momentos desta narrativa que apresenta em seus movimentos circulares e ondulatórios aspectos constitutivos considerados importantes em suas formas. A caracterização deste aspecto é a presença de reticências em alguns títulos da primeira parte como: “O Pai...”, “... Um Dia...”, “... A Tia...”, “... O Banho...”.

            O trecho a seguir é o início da narrativa:

 

A MÁQUINA DO PAPAI batia tic-tac... tac-tac-tac... O relógio acordou em tin-dlen sem poeira. O silêncio arrastou-se ZZZZZZ. O guarda-roupa dizia o que? Roupa-roupa-roupa. Não, não. Entre o relógio, a máquina e o silêncio havia uma orelha à escuta, grande, cor-de-rosa e morta. Os três sons estavam ligados pela luz do dia e pelo ranger das folinhas da árvore que se esfregavam umas nas outras radiantes.

[...]

Houve um momento grande, parado, sem nada dentro. Dilatou os olhos, esperou. Nada veio. Branco. Mas de repente num estremecimento deram corda no dia e tudo recomeçou a funcionar [...]. Só faltava o tin-dlen do relógio que enfeitava tanto. Fechou os olhos, fingiu-se escutá-lo e ao som da música inexistente e ritmada ergueu-se na ponta dos pés. Deu três passos de dança bem leve, alados (PSC, p.19-20, Grifo nosso).

 

            Com referência à leitura dessas palavras que indicam o começo do seu primeiro romance, Clarice transpõe para a narrativa os sons do mundo moderno, levando o leitor a pensar no barulho do mundo como música, e com que haja uma aproximação das observações de José Miguel Wisnik, em O som e o sentido (2002, p.47), sobre os “recalque e retorno do ruído”, em um capítulo que tem esta expressão como subtítulo e no qual o autor se refere ao escrever que “o alastramento do mundo mecânico e artificial cria paisagens sonoras das quais o ruído se torna elemento integrante incontornável, impregnando as texturas musicais”. A “orelha à escuta” continua em toda a narrativa, sempre atenta ao som da chuva, das coisas, das vozes das pessoas, da natureza, dos instrumentos musicais, de tudo, fazendo referências às sensações auditivas da personagem, e ao mesmo tempo, criando para o leitor uma situação de se voltar a pensar no ambiente descritivo, nas pessoas e mesmo nos acontecimentos decorrentes na narrativa como se fossem frutos do pensamento de Joana, que se encontra totalmente enraizado no corpo, como assim o percebeu Regina Pontieri.

            Uma das fortes presenças e bem marcantes na leitura de Clarice Lispector é a conexão, o ligamento da intersecção do passado com o presente que percorrem caminhos bem simultâneos. A transcorrência do tempo cronológico é subjetivo, sempre obedecendo aos sentimentos do personagem.

            Da mesma forma, uma característica predominante é o mundo factual, escrita que enaltece os trabalhos da autora.

            Em 1979, o crítico Antonio Candido ressaltou algo que demonstra muita importância da obra de Clarice Lispector e a sua repercussão para a literatura brasileira:

 

Clarice mostrava que a realidade social ou pessoal (que fornece o tema), e o instrumento verbal (que institui a linguagem) se justificam, antes de mais nada,  pelo fato de produzirem uma realidade própria, com a sua inteligibilidade específica. Não se trata mais de ver o texto como algo que se esgota ao conduzir a este ou àquele aspecto do mudo e do ser; mas de lhe pedir que crie para nós o mundo, ou um mundo que existe e atua na medida em que é discurso literário. Este fato é requisito em qualquer obra, obviamente; mas se o autor assume maior consciência dele, mudam as maneiras de escrever e a crítica sente necessidade de reconsiderar os seus pontos de vista, inclusive a atitude disjuntiva (tem a ou tema b; direita ou esquerda; psicológico ou social). Isto porque, assim como os próprios escritores, a crítica verá que a força própria da ficção provém, antes de tudo, da convenção que permite elaborar os “mundos imaginários”. (CANDIDO, 2003, p. 206)

 

            Sergio Milliet declara e elogia o “romance introspectivo” de Clarice, sobre a conclusão do livro dizendo que:

A obra de Clarice Lispector surge no nosso mundo literário como a mais séria tentativa de romance introspectivo. Pela primeira vez um autor nacional vai além, nesse campo quase virgem de nossa literatura, da simples aproximação; pela primeira vez um autor penetra até o fundo a complexidade psicológica da alma moderna, alcança em cheio o problema intelectual, vira no avesso, sem piedade nem concessões, uma vida de recalques. (IBID, p.32)

 

            No capítulo “Alegria de Joana”, o início destaca a liberdade do pensamento de Joana, com a presença de pensamentos confusos que nem mesmo a narradora não sabe se as coisas foram pensadas por Joana-criança ou por Joana-adulta, mas essa confusão traz a realidade mesma:

 

As descobertas vinham confusas. Mas daí também nascia certa graça. [...] Outras confusões ainda. Assim lembrava-se de Joana-menina diante do mar; a paz vinha dos olhos do boi, a paz que vinha do corpo deitado do mar, do ventre profundo do mar, do gato endurecido sobre a calçada. Tudo é um, tudo é um..., entoara. A confusão estava no entrelaçamento do mar, do gato, do boi com ela mesma. A confusão vinha também de que não sabia se entrara ‘tudo é um’ ainda pequena, diante do mar, ou depois, relembrando. No entanto, a confusão não trazia apenas graça, mas a realidade mesma. Parecia-lhe se ordenasse e explicasse claramente o que sentira, teria destruído a essência ‘tudo é um’. Na confusão, ela era a própria verdade inconscientemente, o que talvez desse mais poder de vida do que conhecê-la. A essa verdade que, mesmo revelada, Joana não poderia usar porque não formava o seu caule, mais a raiz, prendendo seu corpo a tudo o que não era mais seu, imponderável, impalpável (PCS, p.55).

 

            Muitos críticos relatam que há uma falta de nexo entre os escritos clariceanos no decorrer dos episódios, mas essa falta torna-se um “princípio positivo de composição” e isso transforma a obra de Clarice diferenciada de tudo que a literatura brasileira apresentava.

            A obra de Clarice rompe com a linguagem, a gramática torna-se falha em suas prosas e isso é destacado na apresentação de orações truncadas, a presença das reticências quebram a sequência gramatical e também com a pontuação inadequada; muitos verbos não são conjugados conforme as normas da língua; essas características acabam por demonstrar que Clarice não se preocupava com a forma de escrever e com o enredo da narrativa:

 

Talvez se eu gostasse realmente com o corpo... Talvez me ligasse mais... – São confidências. Deus meu. Agora vou dizer assim: - Otávio foge de mim porque eu não trago paz a ninguém, dou aos outro sempre a mesma taça, faço com que digam: eu estive cego, não era paz o que eu tinha, agora é que a desejo.

 – Mesmo assim ... acho ... ninguém pode se lamentar ... Nem Otávio ... suponho que nem eu ... – Lídia não soubera explicar, quedara-se vaga, as mãos não pousavam sobre as coisas.

 

            Muito forte e de forma exarcebada também, a adjetivação se faz constante, contínua como uma marca que acaba por definir a sua maneira de escrever:

Naquela noite, não sei quando, havia escadarias, leques se movendo, luzes ternas balançando os doces raios como cabeças de mães tolerantes, havia um homem olhando pra mim lá da linha do horizonte, eu era uma estranha, mas vencia de qualquer modo, mesmo que fosse desprezando alguma coisa. Tudo deslizava suave, em combinação muda. Já era no fim – fim de quê? da escadaria nobre e lânguida, inclinada, acenando o longo braço brilhante, o belo e orgulhoso corrimão, o fim da noite – quando eu resvalava para o centro da sala, suave como uma bolha de ar. E subitamente, forte como um trovão, porém mudo como um espanto mudo,e , subitamente, mais um passo e não pude continuar! A barra de meu vestido de gaze estremeceu num esgar, lutou, torceu-se, rasgou-se no canto agudo do móvel e lá ficou trêmula, arquejante, perplexa sob meu olhar estupefacto. E de repente as coisas haviam endurecido, uma orquestra rebentara em sons tortos e silenciara imediatamente, havia alguma coisa triunfante e trágica no ar. Eu descobri que no fundo não havia em mim surpresa: que tudo caminhava lentamente para aquilo e agora se precipitara no seu verdadeiro plano. Eu queria sair correndo, chorando com meu pobre vestido sem barra, roto e aflito. Agora as luzes brilhavam com força e orgulho, os leques desvendavam caras resplandecentes e astuciosas, lá de longe do horizonte o homem ria para mim, o corrimão retraiu-se, fechou os olhos... (LISPECTOR, 1998, p.153-154)

 

            Outro aspecto muito marcante na narrativa de Clarice Lispector é a redundância e também o uso de ambiguidade de palavras inusitadas que confunde e ao mesmo tempo traduz o imaginário no qual Clarice envereda-se, é um mundo de sonho e devaneio, uma vez que a imaginação transforma o real em irreal, na criação e produção de imagens que surpreendem o leitor jamais se esgotam, pois o sonho e o devaneio criado no texto da autora procura recriar o real onde o leitor e/ou o crítico literário buscará a formação de suas próprias imagens. E isso surge claramente no livro Perto do Coração Selvagem.

            Por tratar-se de uma obra psicológica, a apresentação de sua estrutura está de acordo com o fluxo da consciência, onde o tempo passado, aquilo que foi que já era passa a ser apresentado não como um quadro que permanece estático e terminado, mas surge como flashes que pela constância de sua dimensão e de sua profundidade se fazem do e no “instante-já”; além do mais as imagens poéticas são as epifanias do instante.

            A escritura clariceana apresenta uma forte prolixidade, muita redundância nas, palavras, além de expressões e frases que surpreendem o leitor. Joana, a protagonista de Perto do Coração Selvagem, contém uma riqueza interior que transcende à palavra, pois ela é muito pouco para simbolizar ou mesmo para ter o poder de expressar o inexprimível. Há muita densidade na enunciação poética, e o silêncio diz muito mais e necessita, portanto, de um vocabulário e de uma sintaxe que venha, “quebrar os quadros da rotina, criando imagens novas, associações diferentes das comuns” (CANDIDO, 1970, p.128).

            Joana reproduz essa forma quando diz que “no momento em que tento falar não só não exprimo o que sinto como o que sinto se transforma lentamente no que eu digo. Ou pelo menos o que me faz agir não é o que eu sinto, mas o que eu digo” (LISPECTOR, 1980, p.21).

            A eternidade significava para Joana como a sucessão de momentos qualitativos em que a “imaginação apreendia o futuro do presente” (LISPECTOR, 1980, p. 45). O que demonstrava o significado mais intrínseco na narrativa não está nas palavras e sim nas ‘entrelinhas’ e é por isso que cada instante, cada momento traduzem-se por se obter densidade e a plenitude do artista.

            O tempo cronológico (passado, presente e futuro) acaba se fundindo em um só por que é um tempo qualitativo, vivido pela existência. Joana é o instante de tudo porque ela é o passado, é o presente e será o que tiver que ser. Nota-se que no romance psicológico, o tempo é visto simultaneamente porque o passado remoto e próximo torna-se presente e o presente é passado quase que imediatamente e o futuro, presente e passado ao mesmo tempo.

            A escritura clariceana deseja adquirir um tempo que se sobressaia com uma grande intensidade interior, buscando para o instante poético a revelação de algo que seja sublime e imortal.

            “Assim, um cão latindo, recortado contra o céu. Uma porta aberta a balançar para lá, para cá, rangendo no silêncio de uma tarde. Também um mastro sem bandeira, ereto e mudo, fincado num dia de verão” (LISPECTOR, 1980, p. 46-47). Eis o instante poético.

            Na obra Perto do Coração Selvagem surge o espelho, a janela, o ver, o olhar e o espiar. Tudo isso acaba por refletir o microcosmo do homem como imagem que é sempre desejada e muitas vezes não se consegue alcançar.

            A obra Perto do Coração Selvagem, romance bem introspectivo, alcança uma grande dimensão no interior porque jamais a percepção não é anterior ao imaginado.

 

Sonha-se antes de contemplar. Antes de ser um espetáculo consciente, toda paisagem é uma experiência onírica. Só se olha com paixão estética as paisagens que se viu antes em sonho. E é com razão que Tieck reconheceu no sonho humano o preâmbulo da beleza natural. A unidade de uma paisagem se apresenta como a realização de um sonho muitas vezes sonhado. (BACHELARD, 1989, p. 5)

 

            Impressiona que nos dizeres de Bachelard a paisagem que aí se encontra não é a mesma e também nem a mais bela que a dos devaneios do poeta. Repara-se que ele não vê com os olhos da razão, mas sim com os olhos da imaginação, portanto as imagens são criações e não são reproduções do real. No mundo imaginário de Joana os “regatos são louros” e não “dourados de sol”. A razão e a imaginação são considerados antitéticos dentro do mundo poético, surgem portanto,  as análises são fragmentárias e também sofrem criticas por aqueles que possuem uma visão centrada nos modelos racionalistas.

            Na literatura, os intelectuais da época recebiam a palavra de ordem, através e uma abordagem sobre a realidade social, política e econômica brasileira. Jorge Amado ponderou, certa vez, que nenhum autor poderá se abster ao engajamento. Sendo assim, a prosa considerada “intimista” de Clarice Lispector mantém o tempo todo contraste com essa literatura de documentação. O caráter introspectivo acarreta uma percepção do uso intensivo do monólogo interior que acaba por fazer desaparecer o enredo.

            Esse novo estilo de narrar de Clarice, associou-se à técnica dos escritores James Joyce e Virginia Woolf, que, de acordo com Alfredo Bosi (2002), há diferentes opiniões pois força os limites do estilo romanesco e toca a poesia e a tragédia: um dos críticos mais importantes da época, Álvaro Lins, critica a falta estrutural da ficção de Perto do Coração Selvagem e preconiza o livro de “literatura feminina”; outro crítico, Antonio Candido (1970)  elogia a ousadia de expressão de escritora que se inicia na literatura brasileira.

            A maneira de escrever com reflexão e sendo intimista depara-se aos romances da época, por ter surgido na literatura brasileira apresentando uma proposição inovadora e diferente de tudo que existia ate então.

            Quando se pronuncia a respeito de inovação na linguagem utilizada nos romances, o nome de Clarice Lispector associa-se a do escritor Oswald de Andrade, conforme Sérgio Buarque de Holanda (1950), que a autora com sua obra de estreia Perto do Coração Selvagem com Oswald, com a obra Memórias sentimentais de João Miramar e com Serafim Ponte Grande, são os nomes mais se destacam dentro de uma  renovação tanto da forma como da técnica romances.

            Destaca-se que o estilo oswaldiano foi declarado como estilo metonímico (de acordo com a perspectiva de Jakobson). Além desse estilo denominado metonímico, há também uma utilização da linguagem a qual Jakobson chamou de metafórico (este elege as operações de seleção e substituição) e que se assemelha ao estilo dos escritores clariceano, conforme observou Olga de Sá (1979):

 

Poderíamos definir o estilo de Clarice como centrado no pólo metafórico da linguagem. Isto significa que predominam nele as operações situadas no eixo da seleção-substituição. A metáfora estranhada, opostas aos lugares comuns, constitui um momento privilegiado na escritura de Clarice Lispector. Há, no seu texto, preferência pelos jogos metafóricos, em que se criam as associações de similaridade, em prejuízo das operações estilísticas, fundadas na contigüidade. É claro que as duas atitudes não se excluem, mas, como diz Jakobson, manipulando esses tipos de conexão, uma pessoa revela suas predileções espontâneas e seus esforços voluntários. Manifesta-se todo um modo pessoal de estruturar frase e o discurso, de organizar a sintaxe, de dar relevo a certos aspectos da enunciação (p.143)

 

            A estrutura metafórica de Clarice perpetua-se no jogo semântico das palavras, totalmente contínuo no transcorrer da narrativa e que designa os quatro elementos: terra, ar, fogo e o mais fecundo deles, a água. A terra é o hábitat da vida e do mundo orgânico: plantações e os bichos. Há o fogo, cuja área semântica aponta o vermelho, o sangue, as lavas, a púrpura, a febre, o agreste, a estrela A Hora de Estrela, o gosto do mal, mastigar vermelho, engolir fogo adocicado.

 

Não sinto loucura no desejo de morder estrelas, mas ainda existe a terra. E porque a primeira verdade está na terra e no corpo. Se o brilho das estrelas dói em mim, se é possível essa comunicação distante, é que alguma coisa quase semelhante a uma estrela tremula dentro de mim (LISPECTOR, 1998, p. 68).

 

            O ar: a liberdade que recobre-se contra a terra, que busca o mal, além de associar-se às sensações boas. “Mal posso acreditar que tenho limites, que sou recortada e definida. Sinto-me espalhada no ar, pensando dentro das criaturas, vivendo nas coisas além de mim mesma.” (LISPECTOR, 1998, p.68).

            E por fim a água, que é o mais profundo dos elementos, encontrado não só em Perto do coração Selvagem, como também em toda sua obra. Joana, como Ulisses Uma Aprendizagem ou Livro dos Prazeres, é um ser de água.

            À área semântica da água, pertencem o banho, o mar, a sede e os verbos mergulhar, flutuar, sonhar. Pode significar refúgio, calmante, poder, prazer, paz, vida, morte, e conduz o leitor em Perto Coração selvagem à uma felicidade na infância pela presença do pai.

 

A água corria pelos seus pés agora descalços, rosnando entre seus dedos, escapulindo clara como um bicho transparente. Transparente e vivo... Tinha vontade de bebê-lo devagar (PCS – p. 48).

A água cega e surda, mas alegremente não-muda brilhando e borbulhando de encontro ao esmalte claro da banheira. O quarto abafado de vapores mornos, os espelhos embaçados, o reflexo do corpo já nu de uma jovem nos mosaicos úmidos das paredes.

A moça ri mansamente de alegria de corpo. Suas pernas delgadas, lisas, os seios pequenos brotaram da água. Ela mal se conhece, nem cresceu de todo, apenas emergiu da infância. (...)

O quarto de banho é indeciso, quase morto. As coisas e as paredes cederam, se adoçam e diluem em fumaças. A água esfria ligeiramente sobre sua pele e ela estremece de medo e desconforto. (LISPECTOR, 1998, p.64, 65, 66)

 

            Faz-se necessário que a ação do romance encontra-se centrada no conflito interior da personagem principal, Joana, sendo as outras personagens apenas instrumentos a serviço desse conflito. Em decorrência disso, a conversação será fugida e acidental; será um monólogo a dois e o monólogo é o diálogo da consciência consigo mesma.

Talvez por que eu seja infeliz, medo de se aproximar. Talvez seja isso: medo de ter que sofrer também...

- É infeliz? Indagara a outra baixo (Lídia).

- Mas não se assuste, a infelicidade nada tem a ver com a maldade, rira Joana. – O que houve afinal? Não estou presente, não estou presente, o que houve, o cansaço, vontade de sair chorando. Eu sei, eu sei: gostaria de passar pelo menos um dia vendo Lídia andar da cozinha para a sala, depois almoçando ao seu lado numa sala quieta – algumas moscas, talheres tilintando -, onde não entrasse calor, vestida num largo e velho robe florido. Depois, de tarde, sentada e olhando-a coser, dando-lhe aqui e ali uma pequena ajuda, a tesoura, a linha, à espera da hora do banho e do lanche, seria bom, seria largo e fresco. Será um pouco disso o que sempre me faltou? Por que é que ela é tão poderosa? O fato de eu não ter tido tardes de costura não me põe abaixo dela, suponho. Ou põe? Põe, não põe, põe, não põe. (LISPECTOR, 1998, p.147, 148)

 

            A escritura de Clarice apresenta em seus mais altos destaques e/ou ícones as metáforas que criam condições em tornar a língua brasileira muito mais flexível, mais aberta e mais afinada em relação ao questionamento metafísico em ficção.

            De um modo generalizado, essa pode ter sido a maior contribuição que Clarice Lispector trouxe para a literatura brasileira. Mas, ao fazer com que a camada sensível da língua seja enriquecida, ela apresenta um grande lista de outras contribuições como a : a diluição dos gêneros, a estranheza das personagens, a dissolução do herói em palavra, a quebra do processo narrativo, a rarefação e a minimização do enredo, a ruptura do tempo linear e do espaço físico... Tudo isso faz parte bem definida no romance de estréia Perto do Coração Selvagem

 

4 Considerações Finais

 

            A repercussão da obra de Clarice Lispector foi tão forte que ainda hoje há pesquisas e estudos sobre o ato de escrever dessa grande autora.

            Baseando em aspectos teóricos, apresentação do estudo aqui apresentado é apenas um início de tantos outros que já exibiram suas notas e considerações a respeito de Clarice e de seus contos, crônicas, romances e que por último surgia a literatura infantil.

            O trabalho apresenta em pequeno estudo sobre a autora, seus amigos e também autores dentro do referencial teórico além de uma sinopse sobre o romance de estréia “Perto do coração selvagem”, laureado pelo prêmio Graça Aranha.

            Clarice Lispector, como ela própria dizia era caótica, introspectiva, amadora e feliz. Feliz porque comentava que o mundo a conhecia e conhecia sua obra, e isso a fazia se sentir  uma pessoa realizada dentro dessa nova postura de narrar.

            O fluxo de consciência busca o que de real existe em seus personagens, a narrativa clariceana não se importa com o enredo (a história em si), mas com a consciência de seus personagens.

            A ficção é tão real, tão abrupta que os leitores acabam por “flutuar” em suas metáforas insólitas e em suas epifanias.

            Essa nova maneira de narrar conseguiu que uma escritora desconhecida alterasse a maneira d se conceber narrativas sem os ares romanescos que faziam, até então, parte do cenário da literatura brasileira em todos os seus aspectos.

            Quando rompe com a linguagem dos escritores da época foi muito criticada até mesmo por críticos e escritores que mais tarde vieram-na reconhecer como um potencial muito forte na ruptura do que existia e do que passa a existir dentro da literatura brasileira.

            O romance “Perto do coração selvagem” retrata, em muitos pontos, características da menina Clarice em relação à protagonista Joana - sua infância, as humilhações sofridas (por isso o roubo do livro – Monteiro Lobato), a presença do mar (banho matinal com o pai), a perda da mãe; mais tarde a perda do pai.

            As personagens fazem parte de um enredo sem nenhuma ligação com o “nada”, mas as suas consciências, o que pensam na hora, são colocados no papel numa estrutura totalmente diferenciada do que jamais havia existido nas narrativas brasileiras; com autores ingleses esse tipo de narrar fazia parte da literatura inglesa atual na época de Clarice que desconhecia por completo Virgínia Woolf, James Joyce e Katherine Mansfield.

 

REFERÊNCIAS

BACHELARD, Gaston. A água e os sonhos: ensaio sobre a imaginação da matéria. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1997.

CÂNDIDO, Antônio. No começo de fato era o verbo. In: LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo GH/ Clarice Lispector. Brasília: Editora Crítica, 1988.

CÂNDIDO, Antônio. No raiar de Clarice Lispector. In: Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1970.

LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo GH. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.

LISPECTOR, Clarice. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Rocco, 2005.

LISPECTOR, Clarice. Perto do Coração Selvagem. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

MILLIET, Sérgio. Diário crítico. São Paulo: Martins Edusp, 1981.

NUNES, Benedito. O drama da linguagem: uma leitura de Clarice Lispector. São Paulo: Ática, 1989.

PONTIERI, Regina. Clarice Lispector: uma poética de olhar. São Paulo: Ateliê Editorial, 1999.

QUEIROZ, Rachel. Clarice Lispector. Folha de São Paulo, 2010.

RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. Campinas: Papirus, 1995.

SÁ, Olga de. A escritura de Clarice Lispector. Petrópolis: Vozes, 1979.

WISNIK, José Miguel. O som e o sentido. São Paulo: Companhia das letras, 1989.

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