Direito e literatura: existe crime em matar de rir? em "o engraçado arrependido", conto de monteiro lobato



                                                       Direito e Literatura: Existe crime em matar de rir?  em “O engraçado arrependido”, conto de Monteiro Lobato

                                               Apesar da notória e precoce inclinação para as Artes, sabe-se que, ainda na juventude,  Monteiro Lobato cursou, primeiramente, a faculdade de Direito do Largo São Francisco, em São Paulo, por imposição do avô, o Visconde de Tremembé. Mas seguiu carreira jurídica por um breve tempo e, somente após esse período, voltou-se  ao encantador mundo das letras.

                                               Entretanto, a despeito de ter abandonado definitivamente o exercício profissional do Direito, podemos afirmar que Lobato, em sua produção literária, deixou-nos  precioso legado para análise e para consulta, em termos de direito material.

                                               Figura de entendimentos polêmicos e de questionamentos políticos e sociais afiados, seus contos nos levam a inúmeras indagações existenciais, sociais e até mesmo jurídicas,  tais como a de nos perguntarmos se a cada fato, perfeitamente enquadrado em uma previsão legal penal, corresponde, necessariamente, um crime ? Essas e outras dúvidas são sorrateiramente inculcadas pelo escritor em nossas mentes, a cada vez que lemos alguns  de seus textos, como é o caso de “O engraçado arrependido”, conto que passaremos a examinar.

                                              Mas, antes de conhecermos e de examinarmos a matéria factual do conto, que se constitui em uma excepcional e, por que não dizer,  divertida narrativa,  convém-nos revisar, brevemente, o instituto jurídico do arrependimento eficaz e da desistência voluntária, já que nossa proposta temática é a da abordagem “Direito e Literatura”.

                                               Assim, temos:                                                   

                   Desistência voluntária e  Arrependimento eficaz (art 15, CP)

Art. 15 Código Penal – O agente que, voluntariamente, desiste de prosseguir na execução ou impede que o resultado se produza, só responde pelos atos já praticados.

Ou seja, no art. 15 do Código Penal encontramos dois institutos: a desistência voluntária e o arrependimento eficaz. Ambos são espécies da chamada tentativa qualificada ou tentativa abandonada. Devemos lembrar, ainda, que, em relação à tentativa, o art. 14, inciso II do Código Penal, traz a tentativa simples, enquanto o art. 15, por sua vez, tipifica a tentativa qualificada.

Podemos conceituar a desistência voluntária, dizendo que ela acontece se

 “O sujeito ativo abandona a execução do crime quando ainda lhe sobra, do ponto de vista objetivo, uma margem de ação.”

O arrependimento eficaz, por sua vez,   “Ocorre quando o agente, desejando retroceder na atividade delituosa percorrida, desenvolve nova conduta, após terminada a execução criminosa.”

 

                                             O conto “O engraçado arrependido” foi publicado, pela primeira vez,  em 1917, então com o nome de “A gargalhada do coletor” e, pelo seu conteúdo, muito se presta para análise e reflexão desses dois institutos.

                                       A narrativa conta a história do personagem Francisco Teixeira de Souza Pontes, homem que resolveu  levar a vida a sério somente aos trinta e dois anos de idade.

                                      Até aquele momento, Francisco Teixeira de Souza Pontes  havia ganhado o sustento de casa, comida e vestuário utilizando tão somente sua veia cômica. Sabia contar piadas, fazer imitações como ninguém. Não havia pessoa  que resistisse aos seus trejeitos engraçados, sem quase ter um desmaio, de tanto rir. 

                                       Enfim, o Pontes, como era chamado, vivia de pilhérias, que eram apreciadas por todos. Seu talento para fazer rir era reconhecido por  quem com ele tivesse contato, indistintamente. E, assim, Pontes viveu, até os trinta e dois anos.

                                       Mas como quase tudo na vida cansa, um dia Pontes cansou de viver do riso alheio e teve vontade de ser levado a sério.  Pontes tentou, então, mudar de atitude. Tentou a seriedade, a sisudez. Mas de nada adiantou. Os amigos e conhecidos não o levavam a sério, não acreditavam em sua mudança. Para eles, a nova atitude assumida era mais uma  das piadas de Pontes.

                                      Firme em seu propósito de novo estilo de vida, Pontes passou a procurar um emprego, que lhe desse a credibilidade necessária de homem sério. Procurou emprego no comércio, na lavoura, e nada. Começou a compreender, então, que seria difícil desfazer a imagem cristalizada por uma vida toda.

                                      Sentindo que deveria mudar de foco, Pontes “ volveu as vistas para o Estado, patrão cômodo e único possível nas circunstâncias(...)  e  (…) fixou a escolha na coletoria federal, cujo ocupante, major Bantes, por avelhantado e cardíaco, era de crer que não durasse muito. Seu aneurisma andava na berra pública, com rebentamento esperado para qualquer hora.”

                                       Foi aí que resolveu pedir auxílio a um parente que vivia envolvido com política e que prometeu-lhe que, tão logo morresse  o ocupante da vaga pretendida por ele, o emprego lhe pertenceria, era só enviar o aviso da morte do tal major.

                                        Pontes voltou alegre para casa, ciente de que, pelo que tudo indicava, seu tão esperado emprego logo chegaria. Mas sua esperança em breve arrefeceu. Infelizmente, para Pontes, “a saúde do major encruara, sem sinais patentes de declínio rápido”, muito embora seu aneurisma fosse, segundo os médicos, coisa muito grave, de estourar ao menor esforço. Acontecia que o major Bentes, muito precavido, passou a fazer um regime rigoroso e a evitar qualquer esforço violento que viesse a prejudicar sua saúde.

                                         Diante de tantos cuidados com a saúde, Pontes impacientou-se com o estado do major, passando a se informar, de todas as maneiras que podia, sobre tudo o que dissesse respeito a aneurisma, caindo na tentação de “matar o homem, forçando-o a estourar”.

                                          “Um esforço o mataria?”, perguntou-se Pontes. E ele mesmo se respondeu “A gargalhada é um esforço e, pontanto, mata. Ora, eu sei fazer rir...” Então, ele mesmo levaria o major a fazer esse esforço, combinou ele, de si para si. E, com o esforço, por conseguinte morreria, com a aorta provavelmente arrebentada.

                                            Nos dias que se seguiram, Pontes passou a se perguntar: “Crime? Não! Em que código fazer rir é crime ? Se disso morresse o homem, culpa era da sua má aorta”.

                                            E a vontade de matar o major venceu qualquer argumento contrário que Pontes ainda tivesse consigo mesmo. Passou, então, à execução de seu plano. E o primeiro passo seria conhecer bem o major Bentes e descobrir-lhe o ponto fraco.

                                                    Notamos que, nesse ponto da história, pelo menos no ângulo da premeditação de algo, já existe a flagrante intenção de Pontes de matar a sua possível vítima.

                                              Seguindo obstinadamente seu plano, Pontes começou a frequentar, com assiduidade, a coletoria. E, tanto fez, que caiu nas graças do major, a ponto de vir a se tornar seu amigo e frequentar sua casa, onde não poupava esforços em fazer  rir a todos, execeto ao major, a quem Pontes não conseguia atingir, pois o amigo não era pessoa de muitos risos.

                                                 Pontes passou, desta forma, a estudar o ponto fraco do major Bentes, pois de alguma coisa, pensava ele, o major havia de achar graça. Descobriu, depois de algum tempo, que o major deleitava-se com piadas que citassem frades e ingleses. E Pontes não poupou esforços em se especializar nessa área, de frades e de ingleses.

                                                 Até que um dia, surgiu a famigerada oportunidade e “Pontes pressentiu o momento oportuno do golpe”. Durante um jantar oferecido pelo major Bentes, Pontes deu à vida do major um desfecho fatal. Chamado a fazer pilhérias, após o jantar, o agressor já vinha com a piada pronta,  “já de dias a tinha de tocaia, só aguardando o momento em que tudo concorresse para levá-la a produzir o efeito máximo”. Ou seja, um repertório engatilhado, como se arma de fogo fosse, pronto para acabar com o major.

                                                  Contando, então, a anedota com os assuntos e personagens preferidos do major, “Pontes vacilou. Pressentiu o estouro da artéria. Por um instante a consciência brecou-lhe a língua, mas Pontes deu-lhe um pontapé e com voz firme puxou o gatilho”, provocando e presenciando a morte fulminante do amigo, a partir do esforço realizado com a estrondosa gargalhada provocada no mesmo. No meio da gargalhada, “os convivas, atônitos, viram-no cair de bordo sobre o prato, ao tempo que uma onda de sangue avermelhava a toalha.” Pontes, fugiu, então, aproveitando-se da confusão.

                                                  Semanas depois, a saúde de Pontes passou a declinar, evidenciando problemas de ordem mental e espiritual. Trazia sempre nos olhos e nos ouvidos a imagem do major a dar a gargalhada fatal, imerso em uma poça de sangue.

                                                   Como se não bastasse, Pontes recebeu uma carta do parente que havia lhe prometido o emprego, comunicando que a vaga do major havia sido preenchida, tendo em vista que Pontes deixou de lhe comunicar a tempo a morte do major, a qual o parente político ficou sabendo apenas pelos jornais.

                                                    Assim, Pontes, sem o emprego tão almejado, motivo do crime premeditado e consumado, acabou por se suicidar, enforcando-se.

                                                     Quando a notícia do suicídio de Pontes correu pela cidade, todos acharam graça. Pontes havia sido encontrado enforcado na perna de uma cueca.

                                                     “ - Vejam só que criatura! Até morrendo faz chalaça. Enforcar-se na ceroula! Esta só mesmo do Pontes”.

                                                    

                                                      Após a leitura  do conto,  constatamos, mais uma vez, o quão o material literário é rico para nos propiciar as mais diversas análises sobre condutas jurídicas.

                                                       Cada vez mais, é mister que todo o profissional do direito se alie à literatura, não só como fonte de cultura e de lazer, mas como busca de  subsídios argumentativos de complemento material para suas teses.

 

Sugestões de questionamentos:

Antes da reflexão sobre as questões, sugerimos a leitura, na íntegra, do referido conto.

  1. 1.      Quais os fatos que comprovam a premeditação de Pontes em realizar o delito de morte do major Bentes ?
  2. 2.      Que atitudes evidenciam que ele mesmo, Pontes, julgava-se um potencial assassino e tinha noção consciente da situação que poderia provocar ?
  3. 3.      Será que apenas a negativa de emprego foi suficiente para Pontes buscar a execução de um plano de morte ?
  4. 4.      A sociedade, ao negar oportunidades, colabora, de alguma forma, com o crescimento geométrico da violência em geral ?
  5. 5.      No caso ora examinado, poderia ter ocorrido a desistência voluntária ou o arrependimento eficaz por parte de Pontes ? De que forma ?
  6. 6.      Como o próprio Pontes se questionou: existe crime em “matar de rir” ? Examinando esse caso concreto, existiu crime? Justifique sua resposta.

Consultas em:

LOBATO, Monteiro. O engraçado arrependido. In: Urupês. São Paulo: Editora Globo S.A, 2008.

SANCHES, Rogério. Direito Penal por Rogério Sanches, IN: Resumos Jurídicos – www.wordpress.com

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Autor: Márcia Belzareno Dos Santos


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