Cenas inesquecíveis de filmes esquecidos (2ª parte)



Cenas Inesquecíveis de Filmes Esquecidos (2ª Parte)

Sodine Üe

 

2) Para um Soldado Perdido (Voor een Verloren Soldaat – Roeland Kerbosch, 1992)

 

Depois de 1h:04m de filme, eis a cena:

Jeroen tem doze anos. Está nu, deitado de bruços, apreensivo, tenso, bastante nervoso, mas decidido — desde o início da história espera este momento. Aparece deitando-se sobre ele o soldado Walt, também nu, aparentemente tem trinta anos. Eles vão fazer amor. O soldado diz “Eu te amo”, chama o menino de “meu príncipe”...

Ao contrário do que se vai imaginar, trata-se de uma cena de sexo consensual. Uma cena de amor.

***

A análise da cena descrita neste segundo ensaio coincide com a leitura de um livro extraordinário com o qual tenho um indesculpável contato tardio: Boys on their contact with Men (Garotos em seus contatos com Homens), de Theo Sandfort, lançado na década de oitenta. Tive acesso à tradução em inglês, mas o trabalho foi feito na Holanda, terra do autor. Trata-se, na verdade, de um estudo científico envolvendo vinte e cinco meninos entre 10 e 15 anos de idade que mantinham relacionamentos amorosos consentidos com homens entre 30 e 50 anos. O trabalho consistia em entrevistas de áudio (todas gravadas) com os meninos e seus parceiros.

Ler um livro como o de Theo, sem a conveniência da atmosfera ficcional literária ou, melhor ainda, cinematográfica, nos coloca frente a frente com a advertência de Michel Foucault em seu estudo sobre a sexualidade: “existem momentos [...] em que [...] pensar diferentemente do habitual é indispensável para continuar a olhar ou a refletir”. Isso porque a correspondência que se faz do relacionamento entre um adulto e um menino é sempre a de “um homem de pênis enorme tentando enfiá-lo no finíssimo orifício de uma criança mortalmente apavorada*”. (* Vern L. Bullough em sua introdução ao livro Loving Boys [Amando Garotos] do Dr. Edward Brongersma, pioneiro em estudos dessa natureza. O grifo é propositalmente meu.)

Quando ressalto a importância ficcional, na verdade, retiro boa parte do contexto em que se desenvolveu o filme cuja cena protagoniza este texto. “Para um Soldado Perdido” é adaptado do livro homônimo (e até onde se sabe autobiográfico) do bailarino Rudi van Dantzig. Essa característica especial de origem possibilita ao filme uma dupla percepção moral e estética: primeiro, é inadequado julgar a memória, especialmente a memória alheia* (* Num ensaio chamado “Reconhecendo a Dor dos Outros, Susan Sontag postula “Lembrar é uma ação ética”); assim, quando um indivíduo se lembra, por exemplo, de ter mantido em sua infância um relacionamento pedossexual de maneira consensual e inclusive romântica, seria antiético, mesmo dentro de um ambiente social já estigmatizado, desqualificar o consenso da relação, alegando, por exemplo, que, na verdade, esse indivíduo foi abusado sexualmente em sua infância e agora, adulto, estaria tendo uma lembrança equivocada (Freud passa bem longe dessa perspectiva quando aborda os traumas).  

Segundo, a tensão experimentada numa narrativa real — mesmo não vinculada à memória do narrador, podendo inclusive ser apenas testemunhal ou intuitiva — é calculada, de modo que o filme pode adquirir certa autonomia, e o melhor: seu conteúdo escapa a qualquer tipo de recálculo; cabe aplicar esse mesmo pensamento aos “finais infelizes”. Na maioria das vezes, a maneira mais feliz de executar um trabalho artístico é apelando para um desfecho inesperado, insólito, desajustado, e é justamente assim que toda a obra será melhor apreciada, porque a possibilidade de recálculo está excluída do processo — quero dizer com isso que sempre que o ser humano imagina algo diferente daquilo que faz parte de sua realidade ele, sem perceber, mantém a sua realidade inalterada (um estudo sobre as fantasias sexuais esclareceria melhor essa questão).

Adaptar um livro autobiográfico com esse conteúdo para o cinema — e especialmente em se tratando da cena aqui destacada — libera o diretor do filme de um estigma baixo muito comum: é bastante improvável que alguém acredite que Roeland Kerbosch, só por ter realizado um filme dessa natureza, seja, ou deseje ser, pederasta. Da mesma forma, Theo Sandfort, ao fazer um estudo científico como o descrito no livro Boys on their contact with Men, justamente pelo teor de seu trabalho e de sua aplicação, pode esquivar-se tranquilamente do estigma alto de ser confundido com um pederasta em sua vida cotidiana. O mesmo se aplica aos cinéfilos que assistiram ao filme “Para um Soldado Perdido” e a mim, que escrevo um ensaio sobre este tema* (* Eu, inclusive, já tive um romance premiado numa das edições dos concursos promovidos pela União Brasileira dos Escritores do Rio de Janeiro (UBE-RJ), cuja comissão de julgadores, segundo o edital, constituir-se-ia “por três escritores indicados pela diretoria UBE-RJ”. O texto em questão [Sinfonia Para Um Esquecimento] apresentava como tema a admiração declaradamente homoerótica de um velho por um menino de nove anos de idade chamado Abelardo. Infelizmente o nome dos três jurados não foi revelado, o que sem dúvida obscureceu a decisão, mas ao mesmo tempo não diminui a minha surpresa diante de um parecer tão favorável a uma obra cujo tema naquele momento era, como ainda é, estigmatizado. A publicação desse romance foi recusada pela editora Objetiva sob o argumento de que seu teor não condizia com a “linha editorial do grupo”, parecer, este sim, já esperado).

Com esses pontos destacados, apreende-se sem muita dificuldade que uma pessoa não tem contato apenas com aquilo que expressa sua personalidade ou com aquilo que representa um de seus ideais inalcançáveis, um sonho ou um desejo secreto; disso certamente não sabem os censores das ditaduras modernas, que acreditam não só que a arte seja a “expressão do ser do artista” como também que a arte seja um perigo em potencial para o comportamento alheio. Ambas as interpretações são inadequadas e inverídicas.

Em entrevista, Roeland Kerbosch já adianta que fez o filme porque na infância, assim como Rudi, foi vítima do “inverno da fome” entre 1944 e 1945 (mostrado no filme como pano de fundo), consequência da II Guerra Mundial, ou seja, o que equilibra as experiências de ambos os artistas (diretor e bailarino) é algo diverso do que o estigma (em qualquer nível aqui imaginável) indica. Deduz-se por aí que filmar uma história de amor entre um menino de 12 anos de idade e um soldado de 30 tenha sido a segunda, ou mais possivelmente a terceira ou quarta intenção do diretor. Já no caso do estudo de Theo, pode-se dizer que sua intenção original tenha sido a pesquisa.  

É claro que sempre haverá nesse ponto uma controvérsia importante: por que filmar em segundo plano algo que veio em primeiro lugar à mente no processo criativo? Por que pesquisar relacionamentos pedossexuais positivos e rejeitar, ainda que de maneira responsável, todos os demais relacionamentos fracassados em outros gêneros e idades?

Theo se coloca diante dessas perguntas, e diante da pedossexualidade, evidenciando o estigma fundamental que envolve esse tipo de relação — o Sexo —, reforçando que na realidade é o sexo, e não a relação em si, que recebe o maior peso na avaliação do assunto. Por isso mesmo ele argumenta desde as primeiras páginas que “sexo não é a razão mais importante para que meninos mantenham relacionamentos com homens, mas é o motivo principal de problemas”. Isso deve ser usado como justificativa, sem dúvida, e aqueles que assistem ao filme de Roeland talvez cheguem à mesma conclusão; numa crítica ao filme na época de seu lançamento, Stephen Holden escreveu para o New York Times que “Walt (o soldado, 30 anos) parece quase tão inocente quanto Jeroen (o menino, 12 anos)”. Por um ângulo assim tão favorável, parece bem fácil restabelecer mais o estigma que a aceitação social, mas só parece.

Pode-se, aliás, afirmar que a opção social de supervalorizar a presença do sexo numa relação pedossexual, para o bem (proteger, inclusive de maneira violenta, a criança de algo inevitável chamado puberdade) e para o mal (quanto mais evidenciada a relação sexual, mais é suprimido o desejo e mais é divulgado o abuso e a violência, ainda que o sexo tenha sido consensual), é ao mesmo tempo um sintoma do estigma moderno e uma manutenção histórica da pederastia ancestral grega. Como negar a presença de certo constrangimento nas inúmeras e variadas representações do mito de Ganimedes*? (* Zeus se enamora do adolescente Ganimedes, transforma-se em águia e o rapta, levando-o para morar com ele no Olimpo. Para anular a afiliação sexual de ambos, Xenofonte justifica em seu Banquete que Zeus o raptou “não por causa do seu corpo, mas da sua alma, como o próprio nome testemunha” [ganytai, ‘exulta’, e medea, ‘pensamentos’, o nome Ganimedes significará não ‘aquele que exulta o corpo’ e, sim, ‘aquele que exulta o espírito’]; já Clemente de Alexandria, em sua Exortação aos Gregos, critica desta maneira incrível e inexplicavelmente descortês — em se tratando da figura ilustre a quem se referia — a relação pederasta entre o Imperador Adriano e o jovem “de rara beleza” Antínoo: “o rei dos romanos o amou como Zeus amou Ganimedes [...] e agora [que Antínoo está morto e foi deificado por Adriano] os homens observam as sagradas noites de Antínoo, personagem desavergonhado conhecido tão bem pelo amante, com quem passava essas noites”. É interessante como ainda não encontrei em estudos da mitologia grega uma conexão mais enfática entre Zeus e sua atração pela juventude masculina; é bom lembrar que foi também ele quem deu sono eterno a Endimião, para que ele assim, dormindo, não envelhecesse. Mesmo na Biblioteca de Apolodoro, que narra a história com a tão habitual reapresentação mitológica, Zeus é novamente o agente de ações “suspeitas”: ele “permite que Endimião escolha o que quiser”, ao que o menino “escolhe dormir para sempre, tornado-se jovem eternamente e imortal”. Ora, por que oferecer seja lá a quem for a oportunidade de “escolher o que quiser”? De que modo nomear tal atitude, a não ser como Preferência? Entretanto, sempre que são abordados, esses dois personagens-chave da exótica personalidade divina mais poderosa do Olimpo aparecem distanciados, como se os acontecimentos cruciais de suas vidas não fossem, no fundo, peripécias de um único e mesmo indivíduo).

 Se por um lado a presença do desejo também sexual de Zeus pelo menino Ganimedes aproxima o Mito da vida cotidiana grega ou, melhor, valida um certo hábito grego (discordo da ideia de que a pederastia grega era tão distinta dos outros hábitos, a ponto de dispensar meios de validação; por que a pederastia, para eles, não seria vista como comer ou exercitar-se, ou seja, uma atividade média, dependente de critérios razoáveis de manutenção, diferente da pederastia atrelada a ritos de passagem, que, aí sim, passam por cima e distante dos hábitos e existem apenas e severamente em si? Em rituais de passagem de tribos afastadas do Zâmbia, todo menino tem uma espécie de tutor que, durante o período em que é responsável pelo menor, ejacula em sua boca para que ele se torne homem, adquira força e bravura e cresça saudável; os meninos, inclusive, discutem abertamente a diversidade de gosto dos semens que já experimentaram “como quem discute variedades de vinho”, segundo uma interessante analogia de Herdt. Definitivamente, o princípio de um costume com essas características nada tem a ver com a pederastia grega, do mesmo modo que nada tem a ver com a pedofilia moderna.), por outro lado, a completa ausência da atração sexual de Zeus por Ganimedes reforça a mais básica de todas as atividades ocidentais: a de seguir por outro lado indo sempre no caminho Inverso (o que se tornaria “modernamente”, e em nível mais extremo, um mal irreparável chamado maniqueísmo). Com isso, não fazer sexo com o menino se torna um ideal supremo, seria o mesmo que tornar-se Zeus que, mesmo fascinado pela beleza do efebo — e podendo fazer com ele tudo o que quisesse, haja vista sua posição de deus olímpico máximo —, renega a carne em nome de uma Beleza. É o exercício de aproximar-se sem tocar, máxima cristã pedagógica que já se pré-formava naquela época e que depois seria aperfeiçoada burocraticamente, alcançando seu ápice com a unificação de dois princípios: o castigo e o Fim* (* Friso aqui a palavra “fim” por se tratar de uma espécie de evolução, um aprimoramento, da ideia de castigo. Somente com o legado cristão o castigo alcançou uma condição tão calamitosa. Os exemplos gregos demonstram muito bem tal diferenciação, pois evocam castigos insuportáveis, mas, ainda assim, positivamente infinitos — desde o mito de Prometeu que, por roubar o fogo de Zeus e o entregar aos homens, teve como punição uma águia lhe comendo o fígado, que crescia para ser novamente comido no dia seguinte, até as Danaides que por assassinarem seus maridos foram condenadas a encher cada uma um vaso, mas como os vasos não tinham fundo, ficaram nesse trabalho inútil eternamente. Esse panorama se extingue com a vitória do cristianismo: o Fim chega ao ocidente).

***

Em sua pesquisa, Theo Sandfort trata o sexo entre os meninos e seus parceiros como mais um item a ser catalogado. Justam-se a essa atividade os passeios, quando e como ambos se conheceram, o que fazem habitualmente, o que mais admiram e detestam um no outro etc. É claro que ele não é ingênuo e sabe que falar de sexo (principalmente consensual) entre crianças e adultos é mexer com algo que as pessoas aprenderam a tolerar, de certa maneira, apenas equivocadamente. Aqui cabe uma repetição: a opção social de supervalorizar o equívoco imuniza as pessoas e também as mantém alerta, na medida em que aquele que, ao julgar, falha positivamente diante de um estigma, ao mesmo tempo acerta negativamente a verdade alheia.

Nota-se que enquanto outros comportamentos evoluem para um quadro quase insuportável de supressão e discriminação, o relacionamento entre um homem adulto e um menino se mantém nivelado e sistematizado, o que grosso modo é chamado de Estigma. Citarei rapidamente dois exemplos que seguem caminhos bem distintos: são eles o aborto e a agressão contra mulheres. Pelo menos no Brasil, quem opta pelo aborto como meio contraceptivo — mesmo quando a decisão é da própria mulher, e não apenas do parceiro, da família, de amigos ou motivada por questões sociais, como a pobreza e o medo da maternidade — tem sempre à sua disposição uma vida futura praticamente normal, podendo inclusive engravidar mais uma vez e chegar a dar à luz. Assim é também com os agressores de mulheres, que vêm encontrando uma “sobrevida” muito menos assustadora do que aquela anunciada pela lei Maria da Penha: apesar da exposição contínua na mídia de casos gerais e particulares, esses indivíduos seguem gozando de uma vida até bastante agradável, saindo da prisão, casando-se novamente, dando testemunho de seus erros passados, cometendo esses erros mais algumas vezes e reiniciando o ciclo.

Porém, quando o protagonista do tema abordado é um homem que manteve um relacionamento com um menino (ainda que consensual), fica acertado que ele representa um grande perigo para a sociedade e que, consequentemente, deve manter-se afastado, recluso, sob o risco de repetir seu delito; pode-se até dizer que, na verdade, o apagamento desse cidadão representa uma medida de saúde pública, assim como é a limpeza de ruas, o saneamento básico, a erradicação da caxumba etc. Desse modo, o cidadão apagado, não mais disponível à visão pública, (diferente do que ocorre nos outros dois casos não estigmatizados) perde o direito a “uma certa” cura — que seria, em realidade, não mais que uma renúncia. E caso esse homem tenha filhos menores, é bem provável, quando não regra, que se passe a investigar e monitorar a qualidade desse relacionamento, pois, nesse ponto, é normal confundir pedosexualidade com incesto, do mesmo modo como é normal ainda hoje confundir homossexualidade com pedofilia.

Assim — como também repete Theo, seguindo as palavras de Vern L. Bullough em sua introdução ao livro de Brongersma — “se você menciona a palavra ‘pedofilia’, muitas pessoas imediatamente imaginam velhos nojentos abusando de crianças para satisfazer sua luxúria”. Evocar um estigma é um exercício de alívio de tensão, isenta a pessoa de responsabilidades éticas extremas que ela rejeita duplamente, tanto como observador incapaz, uma vez que ninguém, mesmo que queira muito, nunca poderá acabar com a pedofilia no mundo, quanto como agente incapaz, já que mesmo agindo diretamente contra a pedofilia, tem-se sempre a (falsa) impressão de que o abuso ocorre mais frequentemente e em maior quantidade do que se imagina.

Mas o problema é que assim como na cena do filme de Roeland Kerbosch quanto na pesquisa de Theo o sexo não está vinculado ao abuso, ao estupro, à chantagem ou a qualquer outro chavão em voga nesses dias modernos de internet sem lei, jornais e telejornais sensacionalistas e democracia centrada no controle da liberdade individual, tanto um quanto o outro trazem à nossa vida repleta de estigmas o sexo consensual entre meninos e homens, cada um com suas características, experiências e inexperiências, qualidades e defeitos, vantagens e desvantagens etc. Theo para prudentemente nesse ponto do trabalho, trazendo ao debate um fato evidente e importante: sempre há desigualdade nos relacionamentos, sejam quais forem, principalmente desigualdade e vantagem de poder, e se há vantagem de poder, haverá, obviamente, o uso dessa vantagem; “crucial é saber, escreve ele, como essa vantagem de poder é usada” [grifo meu]. Nesse aspecto, é justamente a palavra “consensual”, aparentemente insignificante, mas deliberadamente ausente nos códigos penais referentes ao assunto, que reside toda a potencialidade de uma rejeição coletiva. Como equivaler, sem conflitos, sexo consensual e vantagem de poder? Theo não responde diretamente a essa questão, mas sugere uma explicação: “criança sempre foi considerada incrivelmente inocente e pura, um ser que não foi feito para ter contato com sexo”. Ou seja, a “inocência e a pureza”, assim atribuídas às crianças, vão naturalmente em sentido contrário à malícia e à impureza do sexo (ou à malícia e à impureza do adulto) — o que nos leva a pensar que a simples atribuição desta ou daquela característica a qualquer ente da sociedade é capaz de causar danos gigantescos no sentido de fazer algo parecer intrínseco, quando está claro que, na maioria dos casos, não é. A esse respeito, aproveito para reproduzir uma observação muito interessante contida no estudo Mitologia Clássica, de Mark P. O. Morford e Robert J. Lenardon, citada por Michael M. Kaylor em seu livro Secreted Desires:

“O Banquete de Platão [...] afirma que a Afrodite Urânia, a mais velha, é mais forte, mais inteligente e espiritual, enquanto que a Afrodite Pandêmia, nascida de um casal convencional, é [...] devotada primariamente à satisfação física. É fundamental entender que a Afrodite gerada por Urano* (* Na Teogonia de Hesíodo, Urano tem o pênis cortado por Zeus, seu filho; o esperma dele cai no mar e da espuma formada nasce Afrodite Urânia) se torna, para a filosofia e para a religião, a deusa celestial do amor puro e espiritual e, consequentemente, passa a ser a antítese de Afrodite Pandêmia, filha de Zeus e Dione, que se torna deusa da atração física e da procriação. Esta distinção entre amor sagrado e profano é um dos mais profundos arquétipos na história da civilização”.

Fica evidente que a aversão ao contato sexual consentido entre menores de idade e adultos é proporcional à aversão que os indivíduos em geral sentem pelo ato sexual em si. O que muda é apenas o nível de decréscimo de tensão do observador ou do agente incapaz, como referido acima. A perspectiva de Theo é bastante limitada, dadas as circunstâncias. “Simplesmente não sabemos, escreve ele, quais as consequências das experiências sexuais de uma criança em sua vida futura, pelo menos aquelas experiências que são consensuais*” (* Antes que se apressem em concluir irresponsavelmente que Theo somente repete o que por conta própria já sabe, ou seja, que não é preciso nenhum estudo científico para atestar o quão nocivo é o contato sexual entre crianças e adultos, é preciso avaliar, primeiro, que o dano inegável — quando há — decorre do abuso, não sendo, portanto, correto nem prático ou útil para a ciência estender aos relacionamentos consentidos entre crianças e adultos, em nome de um clamor público repreensível, suspeito e sem nenhuma base, as mesmas consequências daqueles unicamente possibilitados por intermédio de qualquer forma de violência. Segundo — e mais importante —, essa declaração de Theo é feita na década de oitenta, quando a escassez de estudos na área era tanto assustadora quanto natural, uma vez observada a máxima Vox Populi, Vox Dei, na qual, estranhamente, por Dei se entende Veritate. O cenário hoje, apesar de ainda obscuro para a maioria da população ignorante, é inteiramente diferente: de acordo com o relatório Rind de 1998 (o estudo mais importante e completo envolvendo a pedossexualidade e que reavaliou a fase adulta de indivíduos que, na infância, mantinham relacionamentos consensuais com adultos), é possível afirmar que não foram encontrados danos tardios, da mesma maneira — assim como demonstra o estudo de Theo — como não foram encontrados danos à época inicial das pesquisas: tanto os meninos entrevistados no livro “Boys on their contact with Men” quanto os adultos reavaliados pelo relatório Rind não apresentavam antes nem apresentam hoje problemas específicos ou gerais relacionados à experiência vivida. Assim, uma vez analisadas as consequências do relacionamento consensual daquelas crianças e não tendo mais como sustentar a teoria de trauma, ou seja, com o círculo do estudo já fechado, é sem dúvida mais do que fundamental diferenciar drasticamente Sexo Consensual e Abuso).

***

O relacionamento romântico entre o menino e o soldado no filme de Roeland Kerbosch alcança uma potência positiva e isso já um mérito considerável. O que mais se repete nas críticas é a “estranha torcida pela continuidade do relacionamento, e não pelo seu fim”. Em entrevista o diretor tenta explicar a reação do público deslocando a pedossexualidade para a homossexualidade: “Para um Soldado Perdido, diz ele, é uma história romântica de amor, uma história homossexual de amor”. Com isso, ele acaba, certamente sem querer, potencializando ainda mais a relação pedossexual recobrindo-a com uma imagem ainda mais poderosa e eficaz: quando vemos no filme o menino e o soldado se conhecendo, rindo, dançando, namorando e transando, é como se víssemos qualquer outro casal nessas mesmas atividades. Ora, essa perspectiva especial não é gerada à toa, ao contrário, ela é esquematizada por intermédio da prévia intenção do diretor e de sua habilidade para levar todo esse plano artístico a cabo. O mesmo acontece com o filme “As Amizades Particulares”, do francês Jean Delannoy, adaptado do romance de Roger Peyrefitte, ainda que os meios a que recorre Delannoy para encontrar e aplicar essa potência sejam mais elaborados, graças, é claro, à sua insuperável qualidade na direção. Mas ao mesmo tempo a positividade tanto num filme quanto no outro é motivo de crítica, uma vez que abordar um relacionamento pedossexual com potencialidade contraditoriamente inversa* (* O menino só sofre no filme de Roeland quando o romance com o soldado acaba e no filme de Delannoy o menino se suicida porque acredita ter sido abandonado pelo adulto; da mesma forma, no estudo de Theo alguns meninos dizem que sofreriam se o relacionamento acabasse ou se algo ruim [prisão, humilhações, linchamento etc.] acontecesse a seus parceiros) representa a tentativa de desfazer uma linearidade de tensão que as pessoas lutaram muito para obter, seria o mesmo que burlar a ordem naturalizada das coisas. Isso quando o crítico não opta pela via mais fácil e evoca uma suposta e perniciosa preferência do artista que traz à nossa vida um filme que deságua numa cena como a descrita aqui.

Já no caso de “Boys on their contact with Man”, por se tratar de um texto científico, a crítica tem a oportunidade de uma contestação mais aprimorada, mas ainda assim igualmente refutável. No trabalho de Theo o que é continuamente atacado é a amostragem: entrevistar apenas 25 meninos restringiria, segundo parece, a pesquisa a um resultado insignificante, uma vez que o número de meninos reunidos era igualmente insignificante (e restrito). Seguindo uma linha de raciocínio assim, temos que nos perguntar — não sem o cinismo habitual: estariam os críticos desejosos de haver um número maior de meninos entre 10 e 15 anos de idade mantendo relacionamento com homens adultos? Esse desejo contraditório não deixa de ser revelador: acreditar que determinado acontecimento seja maior do que ele de fato é sempre foi uma espécie de hábito crítico (por exemplo: sempre tememos não sermos capazes de analisar a literatura como um todo, já que ainda não lemos todos os livros do mundo. A esse respeito Todorov aconselha: “procede-se melhor por dedução”. O mesmo se aplica ao cinema, ao teatro e às outras artes). Por outro lado, ao mesmo tempo em que tememos a proporção (sempre para mais, nunca para menos), quando a realidade nos prova que, em alguns casos, a proporção é sempre para menos e nunca para mais, sentimos certo desapontamento. Com relação ao livro, seria antes preciso perguntar: o autor do trabalho teria tido mais ou menos dificuldade para encontrar esses 25 meninos? Eu creio que a segunda possibilidade é a correta. Assim, chegar a esse número de entrevistados já significaria, pelo contrário, uma amostragem fantástica.

Outra crítica ainda não contestada evidencia o método. Segundo se interpretou (de maneira mais ou menos tendenciosa), os meninos foram entrevistados nas casas de seus parceiros adultos e isso representaria uma ameaça ao resultado do trabalho, já que eles bem poderiam ter sido ameaçados pelos maiores, ou forçados a não dizer algo mais comprometedor ou poderiam mesmo se sentir constrangidos por causa do ambiente em si.  E mesmo depois do alerta dado pelo próprio Theo, de que as entrevistas não haviam acontecido na presença do adulto, e sim num cômodo separado da casa, os críticos fizeram questão de ignorar esse dado e insistiram em desqualificar as respostas dos meninos por terem sido formuladas “com o adulto sentado logo ao lado”. Em meio a tudo isso, passou quase despercebido o fato de que, de uma forma ou de outra, os menores estavam espontaneamente na casa de seus parceiros. Assim, o que Theo Sandfort acabou por demonstrar involuntariamente é que há, sem dúvida, a possibilidade de um menor entre 10 e 15 anos de idade manter um relacionamento (sexual, inclusive) com um homem adulto, sem que haja o emprego de força, ameaça, coação, chantagem etc. E por mais que se tente estabelecer um critério negativo para essa questão — na maioria das vezes apelando mais para a moral do que para a lei —, tanto o livro (autobiográfico) do bailarino Rudi van Dantzig, que serve de base para o filme de Roeland, quanto o estudo de Theo já desqualificam significativamente um estigma. “Esta investigação, comenta Theo, nos permite dizer que há crianças que, sem nenhum problema, usufruem tanto da amizade com adultos como também do sexo que toma lugar na relação”. E em outra parte, de certa maneira trazendo uma informação ainda mais surpreendente: “Alguns dos parceiros adultos desta investigação disseram que para eles o sexo não era o elemento mais importante nos seus relacionamentos. Eles apontaram para a importância de simplesmente estar com os meninos”.

***

Gostaria de terminar este ensaio — na verdade, tenho de terminar, já me estendi mais do que pretendia — com dois pontos bem opostos, mas que no fundo reforçam minha perspectiva pessoal com relação a qualquer assunto. Primeiro, transcrevo uma pequena parte do estudo de Theo. Trata-se de um trecho da entrevista gravada em áudio com Thijs, de 10 anos de idade, que mantém um relacionamento com Joop (26 anos).

Entrevista:

“Theo Sandfort: Do que você mais gosta?

Thjis: Bem, geralmente eu vou na casa do Joop. Eu jogo e me divirto.

Theo Sandfort: Do que você não gosta?

Thjis: De ir pra escola.

Theo Sandfort: Como você se sente fazendo sexo com Joop?

Thjis: É muito legal.

Theo Sandfort: Não é problema pra você?

Thjis: É igual um homem indo pra cama com uma mulher — Acho que é a mesma coisa: legal. E os sentimentos e tudo mais, eu também tenho.”

Segundo, cito uma frase de Longino em seu estudo sobre o sublime: “Grande é aquilo que suporta um reexame frequente”. Mas se segue a essa frase de efeito uma observação interessante: o reexame ao mesmo tempo se contradiz e confirma, uma vez que se um tema é potente o bastante para tornar-se inesquecível (no caso dele a Arte e neste caso a cena do filme), então por que reexaminá-la? Por que reavaliar o que permanece fixo na memória? Claro está que estas perguntas devem ser colocadas critica e negativamente: por que repensar um assunto por um ponto de vista inteiramente novo, quando já formamos durante milênios uma convicção de que, para resolvê-lo, apelaremos sempre ao estigma, em vez de recorrer à Verdade? É muito mais fácil recusar a possibilidade de uma terceira opção, ou de uma quarta ou quinta... Theo expõe um exemplo curioso a esse respeito: em 5 de novembro de 1985, foi proposta na Holanda uma redução na idade da lei do consentimento, de 16 anos para 12 anos, o que, no final das contas, não chegou a acontecer. O jornal Telegraaf* (* O maior jornal diário da Holanda, escrito num estilo mais popular, de linha editorial bastante conservadora, especialmente em se tratando de sexo) perguntou a opinião de seus leitores. Entre as cartas recebidas lia-se: “liberar legalmente crianças de 12 anos da restrição sexual é ir longe demais”, “deixem as crianças serem crianças” e “se a própria criança quer fazer esse tipo de coisa [sexo], então ela deve ser protegida de si mesma”. 

Que cada leitor reflita por si mesmo sobre esses comentários...

***

 


Autor: Sodine Üe


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