Minimalismo e garantismo penal e os crimes de mera conduta e de perigo abstrato




UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB CAMPUS III

DEPARTAMENTO DE TECNOLOGIA E CIÊNCIAS SOCIAIS – DTCS

COLEGIADO DO CURSO DE DIREITO

 

CLERISTON DA SILVA MARTINS

 

MINIMALISMO E GARANTISMO PENAL E OS CRIMES DE MERA CONDUTA E DE PERIGO ABSTRATO

 

 

JUAZEIRO

2012

CLERISTON DA SILVA MARTINS

 

 

MINIMALISMO E GARANTISMO PENAL E OS CRIMES DE MERA COMDUTA E PERIGO ABSTRATO

 

 

Monografia apresentada a Universidade do Estado da Bahia, Campus III, Juazeiro-BA, Colegiado do curso Direito, como requisito final para obtenção do grau de Bacharel em Direito.

Orientador: Prof. Júlio Cesar Lira

 

 

 

JUAZEIRO

2012

 

FOLHA DE APROVAÇÃO

 

O Trabalho de Conclusão de Curso, apresentado por Cleriston da Silva Martins, como requisito parcial para obtenção do grau de Bacharel em Direito, no Curso de Direito da Universidade do Estado da Bahia – UNEB, foi aprovado ao ser submetido nesta data à banca avaliadora abaixo firmada.

 

Juazeiro-Ba, ___ de julho de 2012.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Banca Examinadora

 

 

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Prof. Júlio Cesar Lira

 

 

 

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Prof.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Todas as vitórias ocultam uma abdicação.

(Simone de Beauvoir)

 

 

AGRADECIMENTOS

 

Toda minha gratidão a Deus, “porque Dele, por Ele e para Ele são todas as coisas”. Ao meu pai, pela grande torcida e pelo incentivo. À minha vó pelo amor incondicional e coração maternal, que me inspiram em todos os momentos. Ao meu filho Miguel, pela pureza de espirito e renovação da vida. À minha namorada/esposa, por fazer-me acreditar nos meus sonhos. Aos meus professores, especialmente ao meu orientador, Júlio César, pelas lições, atenção e presteza com que se dispôs a me orientar. Aos meus amigos do curso de Direito da Universidade do Estado da Bahia: Raoni Fernandes, Adonis, Leonardo Ivan “o Chegado”, José Venceslau “o Venças” e Alessandro, pela cumplicidade e apoio no Bar de Edir. Aos amigos e colegas que acompanharam todo o percurso, colaboraram e torceram pelo meu sucesso.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

“O Direito não é uma pura teoria, mas uma força viva. Por isso a justiça sustenta numa das mãos a balança em que pesa o direito, e na outra a espada de que se serve para o defender. A espada sem balança é a força brutal; a balança sem espada é a impotência do direito .”

 

Rudolf Von Ihering

 

 

RESUMO

 

O presente estudo debruça-se sobre a teoria do garantismo penal, analisando cada um dos seus axiomas de limitação do poder punitivo estatal e ampliação da liberdade dos cidadãos. Avaliaremos teleologicamente os crimes de mera conduta e perigo abstrato de acordo com os princípios da ofensividade e lesividade das condutas. A análise é conclusiva no sentido de que tais crimes não podem existir. Sendo apenas, uma ficção jurídica a tipificação formal desses delitos.

Palavras-chave: Garantismo penal. Minimalismo. Estado punitivo ou Estado antiliberal. Abolicionismo. Ofensividade.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

ABSTRACT

The present study focuses on the theory of criminal guaranteeism, analyzing each of its axioms limiting the punitive power of the state and expanding freedom of citizens. Teleologically assess the conduct and crimes of mere abstract danger in accordance with the principles of offensiveness and lesividade ducts. The analysis is inconclusive in that it can not exist such a crime. Being only a legal fiction formal typing these crimes.

Keywords: guaranteeism criminal. Minimalism. Punitive state or state anti-liberal. Abolitionism. Offensiveness.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

SUMÁRIO

 

Considerações Iniciais.....................................................................................................1

 

SUMÁRIO.. 8

Capítulo I. 8

Capítulo I

 

1.Introdução.......................................................................................................................2

2.Garantias.........................................................................................................................4

3.Liberdade do Homem x Poder do Estado.......................................................................5

3.1.Abordagem Hisótrica...................................................................................................5

3.2. Abolicionismo ou Liberdade Selvagem.....................................................................5

3.3. Autoritarismo ou Abuso do Direito de Punir..............................................................6

3.4. A Virtude do Garantismo está no Meio Termo .........................................................7

3.5. Técnicas de Minimização do Poder Institucionalizado e Maximização da Liberdade do Homem. Os dez Axiomas relativos à Pena, ao Delito e ao Processo...........................8

 

Capítulo II


1. Garantias relativas à Pena. Quando e Como Punir?......................................................9

1.1. Nulla Poena Sine Crimine. Princípio da Retributividade Penal.................................9

1.2.Nullum Crimen Sine Lege. Princípio da Legalidade Penal........................................10

1.2.1.Lei Anterior aos fatos ou Anterioridade.................................................................10

1.2.2.Lei Escrita- Costume não institui crime nem comina pena, apenas revoga...........10

1.2.3.Lei Estrita- Vedação à Analogia Incriminadora ....................................................11

1.2.4. Lei Certa e de fácil entendimento- Taxatividade ..................................................11

2. Nulla Lex Poenalis Sine Necessitate. Princípio da Intervenção Mínima....................11

 

Capítulo III


1. Garantias relativas ao Delito. Quando e Como Proibir?.............................................12

1.1.Nulla Necessitas Sine Injuria. Princípio da Lesividade ou da Ofensividade ...........12

1.1.1.Os Crimes de Mera Conduta ou de Perigo Abstrato..............................................12

1.1.2.Origem....................................................................................................................15

1.1.3. O Porte Ilegal de Arma de Fogo............................................................................18

1.1.4. O Uso de Drogas....................................................................................................20

1.1.5. Embriaguez ao Volante.........................................................................................25

2. Nulla Injuria Sine Actione. O Princípio da Exterioridade da Ação e o nexo causal entre ação e resultado......................................................................................................26

4.2.1. Exterioridade da ação e separação entre Direito e Moral......................................27

3. Nulla Actio Sine Culpa. O Princípio da Culpabilidade...............................................27

 

Capítulo IV


1. Garantias relativas ao Processo...................................................................................30

1.1. Nulla Culpa Sine Iudicio. Principio da Jurisdição...................................................30

1.2. Nullum Iudicium Sine Accusatione. “Quando e como julgar”? O Principio Acusatório.......................................................................................................................32

1.3. Nulla Accusatione Sine Probatio. Principio do Ônus da Prova...............................33

1.4. Nulla Probatio Sine Defensione. Principio do Contraditório...................................34

 

 

Considerações Finais.....................................................................................................35

 

Referências Bibliográficas............................................................................................38

 

 

 

 

Considerações Iniciais

Falar de Direito penal é falar, de alguma forma, de violência. No entanto, hodiernamente, sustenta-se que a criminalidade é um fenômeno social normal. Durkheim [1] afirma que o delito não ocorre somente na maioria das sociedades de uma ou outra espécie, mas sim em todas as sociedades constituídas pelo ser humano.

Assim, para Durkheim, o delito não só é um fenômeno social normal, como também cumpre outra função importante, qual seja, a de manter aberto o canal de transformações de que a sociedade precisa.

Sob outro prisma, pode-se concordar, pelo menos em parte, com Durkheim: as relações humanas são contaminadas pela violência, necessitando de normas que as regulem.

É o fato social que contrariar o ordenamento jurídico constitui ilícito penal que lesa os bens mais importantes dos membros da sociedade.

Quando as infrações aos delitos e interesses dos individuo assumem determinadas proporções, e os demais meios de controle social mostram-se insuficientes ou ineficazes para harmonizar o convívio social, surge o Direito Penal com sua natureza peculiar de meio de controle social formalizado, procurando resolver conflitos e suturando eventuais rupturas produzidas pela desinteligência dos homens.

A denominação Direito Penal é mais tradicional, no Direito contemporâneo, com larga utilização, especialmente nos países ocidentais. Direito Criminal também foi uma terminologia de grande aplicação, especialmente no século passado; hoje se encontra em desuso, com exceção dos anglo-saxões, que preferem a expressão criminal law.

Durante sua evolução foram sugeridas outras denominações que, contudo, não obtiveram a preferencia doutrinária nem foram adotadas pelos ordenamentos positivos das naçoes desenvolvidas. [2]

Capítulo I

1. Introdução

O estudo acadêmico, ora pretendido, debruça-se sobre a obra Direito e Razão de Luigi Ferrajoli, onde ele de forma clara, estabelece as bases conceituais e teleológicas do garantismo penal.

Como resposta ao exasperado poder punitivo conferido ao Estado, aparece no mundo jurídico uma doutrina criminológica de aplicação processual penal, difundida pelo douto citado jurisconsulto: o Garantismo Penal.

Em seu livro Direito Razão, Ferrajoli apresenta um modelo de aplicação da lei penal visando a ampliação da liberdade do homem em detrimento da restrição do poder estatal, minimizando o jus penales puniendi. É uma solução para a histórica antítese em meio a, liberdade do homem e poder estatal.

No nosso ordenamento jurídico já enxergamos algumas inovações que buscam um ideal criminológico-processual, como a Lei n.º 11.006/2006 que revogou o crime de adultério, afirmando, assim, o princípio da intervenção mínima ao deixar tal fato à análise do direito civil.

Há muito se fala da necessidade de adequação do direito penal ao atual modelo garantista, modelo de direito penal moderno, que somente incrimina condutas quando o bem jurídico estiver em risco.

Ocorre que, mesmo com a validade desse modelo, ainda tem se visto tipos penais inócuos como os de perigo abstrato e mera conduta.

Estes tipos penais não encontram amparo nos princípios axiológicos do modelo garantista, mas, apenas, ampliam a intervenção penal estatal, com tendências muitas vezes abusivas.

Este trabalho busca demonstrar a incongruência desses crimes de mera conduta e de perigo abstrato, tais como, porte de arma desmuniciada e uso de entorpecentes e embriaguez ao volante, frente ao garantismo penal.

O professor Ferrajoli com grande sabedoria traz nesses ensinamentos algumas técnicas para serem utilizadas no processo de minimalização do poder institucional. Onde, o operador do direito deve valer-se da consagração de dez axiomas, princípios norteadores do direito penal, que trazem em suas normas garantias relativas à pena, ao delito e ao processo.

Como garantias em relação à pena: 1) nulla poena sine crimine - emprego do princípio da retributividade - o Estado somente pode punir se houver prática da infração penal; 2) nullum crimen sine lege - é o princípio da legalidade, que preconiza quatro sub preceitos: a) o princípio da anterioridade penal; b) a lei penal deve ser escrita, vedando desta forma o costume incriminador; c) a lei penal deve também ser estrita, evitando a analogia incriminadora; d) a lei penal deve ser certa, ou seja, de fácil entendimento; decorre daí o princípio da taxatividade ou da certeza ou da determinação; 3) nulla lex penales sine necessitate ou princípio da necessidade, ou como modernamente é denominado, princípio da intervenção mínima, não havendo lei penal sem necessidade.

Vê-se como garantias relativas ao delito: 1) nulla necessitas sine injuria ou princípio da lesividade ou ofensividade - não há necessidade se não há também uma relevante e concreta lesão ou perigo de lesão a um bem jurídico tutelado. Aqui, está o objetivo desse trabalho, mormente, no que se refere aos crimes de mera conduta e perigo abstrato; 2) nulla injuria sine actione ou princípio da exterioridade da ação, que proíbe a criação de tipos penais que punam o modo de pensar, o estilo de vida. 3) nulla actio sine culpa ou princípio da culpabilidade - deve-se apurar o grau de culpa (dolo ou culpa stricto senso) para então dosimetrar a punição pela prática humana.

E finalmente determinam-se como garantias relacionadas ao processo: 1) nulla culpa sine judicio ou princípio da jurisdicionariedade - não há reconhecimento de culpa sem que o órgão jurisdicional a reconheça; 2) nullum judicium sine acusationes ou princípio acusatório - o poder judiciário não afirma o direito de ofício, devendo ser provocado; referido poder é inerte (princípio da inércia). Frederico Marques dizia que "o juiz é um expectador de pedra", ou seja, por ser inerte não pode agir; 3) nulla acusation sine probatione ou princípio do ônus da prova - não há acusação sem a existência de prova ou suficiente indício de autoria; 4) nulla probation sine defensione ou princípio da ampla defesa e do contraditório.

A partir desses paradígmas, ficará claro que o garantismo penal não é uma doutrina difícil de ser efetivamente concretizada no mundo jurídico atual, pois existem modernamente movimentos penais e criminológicos que ostentam a essência desses três alicerces, sendo a escola do direito penal mínimo seu maior representante entre seus defensores.

2. Garantias

Garantias são direitos, privilégios e isenções que a Constituição de um país confere ao cidadão.

Toda pena, que não derive da absoluta necessidade, diz o grande Montesquieu, é tirânica, proposição esta que pode ser assim generalizada: todo ato de autoridade de homem para homem que não derive da absoluta necessidade é tirânico. Eis, então, sobre o que se funda o direito do soberano de punir os delitos: sobre a necessidade de defender o depósito da salvação pública das usurpações particulares.[3]

Num estado democrático, as garantias são necessárias para impedir o arbítrio na criação de condutas e tipos penais supérfluos que levariam demasiadamente ao populismo penal.

Os princípios sobre os quais se funda o modelo garantista clássico (a legalidade estrita, a materialidade e a lesividade dos delitos, a responsabilidade pessoal, o contraditório entre as partes, a presunção de inocência), são, em grande parte, como se sabe, fruto da tradição jurídica do iluminismo e do liberalismo.

Foi no positivismo jurídico que estabeleceu a base do principio da legalidade estrita, mas, por outro lado também se desenvolveu modelos penais absolutistas, caracterizados pela ausência de limites ao poder normativo do soberano, ao mesmo tempo em que se mostra, em todo caso, completamente neutro a respeito de todas as demais garantias penais e processuais.

Assim, está claro que o direito penal mínimo, quer dizer, condicionado e limitado ao máximo, corresponde não apenas ao grau máximo de tutela das liberdades dos cidadãos frente ao arbítrio punitivo, mas também a um ideal de racionalidade e de certeza.

3. Liberdade do Homem x Poder do Estado

3.1. Abordagem Histórica

A antítese entre a liberdade do homem e o poder estatal é milenar. O garantismo se destacou com a Revolução Francesa nos três lemas dos revolucionários - liberdade, igualdade e fraternidade.

Em sua obra prima, o filósofo suíço Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), afirma que, ao renunciar à liberdade, o homem, abre mão da própria qualidade que o define como humano. Ele não está apenas impedido de agir, mas privado do instrumento essencial para a realização do espírito.

A Revolução é considerada como o acontecimento que deu início à Idade Contemporânea. Aboliu a servidão e os direitos feudais e proclamou os princípios universais de "Liberdade, Igualdade e Fraternidade" (Liberté, Egalité, Fraternité), frase de autoria do filósofo. Para a França, abriu-se em 1789 o longo período de convulsões políticas do século XIX, fazendo-a passar por várias repúblicas, uma ditadura, uma monarquia constitucional e dois impérios.

A Revolução Francesa foi um importante marco na História Moderna da nossa civilização. Significou o fim do sistema absolutista e dos privilégios da nobreza. O povo ganhou mais autonomia e seus direitos sociais passaram a ser respeitados.

A vida dos trabalhadores urbanos e rurais melhorou significativamente. Por outro lado, a burguesia conduziu o processo de forma a garantir seu domínio social. As bases de uma sociedade burguesa e capitalista foram estabelecidas durante a revolução. A Revolução Francesa também influenciou com seus ideais iluministas, o fim do estado soberano, autoritário e punitivo.

3.2. Abolicionismo ou Liberdade Selvagem

São abolicionistas aquelas doutrinas axiológicas que acusam o direito penal de ilegítimo, ou porque moralmente não admitem nenhum tipo de objetivo como capaz de justificar as aflições que o mesmo impõe, ou porque consideram vantajosa a abolição da forma jurídico penal da sanção punitiva e a sua substituição por meios pedagógicos ou instrumentos de controle de tipo informal e imediatamente social.

As doutrinas abolicionistas mais radicais são, seguramente, aquelas que não apenas não justificam as penas, como também as proibições em si e os julgamentos penais, ou seja, que deslegitimam incondicionalmente qualquer tipo de constrição ou correção, penal ou social.

Mais difundidas são as doutrinas abolicionistas que se limitam a reivindicar a supressão da pena enquanto medida jurídica aflitiva e coercitiva, e, quem sabe, a abolição do direito penal, sem, contudo, sustentar a abolição de toda e qualquer forma de controle social.

Escritores liberais e anárquicos como Godwin, Bakunin, Kropotkin, Molinari e Malatesta não valorizam, como Striner, a transgressão enquanto expressão normal e fisiológica do homem, justificando-a, quando muito, como um momento de rebelião e como sinal e efeito de causa sociais patológicas, razão pela qual contestam a pena, vez que inutilmente constritiva ou puramente funcional à defesa dos contingentes interesses dominantes, vislumbrando lhe, como substitutivos, formas de controle não jurídicas, mas sim morais e/ou sociais, tais como, “olho público”, “força invisível da educação moral”, a solidariedade terapêutica, a difusão da vigilância e do controle, a pressão da opinião pública[4].

3.3. Autoritarismo ou Abuso do Direito de Punir

Contrapondo ao abolicionismo, passar a existir um tipo de doutrina que prega a tolerância zero, a qual teve adeptos, por exemplo, nos Estados Unidos, nos anos 70 (Teoria das Janelas Quebradas), é baseado no Direito penal do inimigo, cuja teoria foi enunciada por Günther Jakobs, um doutrinador alemão que sustenta tal teoria (Feindstrafrecht) desde 1985, com base nas políticas públicas de combate à criminalidade nacional e/ou internacional.

A tese de Jakobs está fundada sob três pilares, a saber: a) antecipação da punição do inimigo; b) desproporcionalidade das penas e relativização e/ou supressão de certas garantias processuais; c) criação de leis severas direcionadas à clientela (terroristas, delinqüentes organizados, traficantes, criminosos econômicos, dentre outros) dessa específica engenharia de controle social.

Jakobs refere-se ao inimigo como alguém que não admite ingressar no Estado e assim não pode ter o tratamento destinado ao cidadão, não podendo beneficiar-se dos conceitos de pessoa [5].

A distinção, portanto, entre o cidadão, o qual, quando infringe a Lei Penal, torna-se alvo do Direito Penal, e o inimigo, nessa acepção, como inimigo do Estado e da sociedade é fundamental para entender as idéias de Jakobs.

Günter Jakobs, tido como um dos mais brilhantes discípulos de Welzel, foi o criador do funcionalismo sistêmico radical, que sustenta que o Direito penal tem a função primordial de proteger a norma e só indiretamente tutelaria os bens jurídicos mais fundamentais.

Numa análise sucinta, dos seus escritos podemos extrair o seguinte: Quem são os inimigos? Criminosos econômicos, terroristas, delinquentes organizados, autores de delitos sexuais e outras infrações penais perigosas. Em poucas palavras, é inimigo quem se afasta de modo permanente do Direito e não oferece garantias cognitivas de que vai continuar fiel à norma. Como devem ser tratados os inimigos? O indivíduo que não admite ingressar no estado de cidadania, não pode participar dos benefícios do conceito de pessoa.

O inimigo, por conseguinte, não é um sujeito processual, logo, não pode contar com direitos processuais, como por exemplo, o de se comunicar com seu advogado constituído. Cabe ao Estado não reconhecer seus direitos.

3.4. A Virtude do Garantismo está no Meio Termo

Tornou-se comum os operadores do direito confundirem o garantismo com o abolicionismo penal, sendo este, como vimos, a defesa da liberdade selvagem do homem enquanto que aquele rechaça tal doutrina afirmando que o Estado tem o dever de regrar tal independência.

Apenas por amor ao debate, salienta-se que esta ideia não foi criada por Ferrajoli, mas sim encontramos origem nas obras de Aristóteles, onde o filósofo grego ao pensar sobre a Virtude Humana, parte da premissa de que esta apenas pode existir sob o manto de um homem ponderado, justo, não pecando pelos excessos e não deixando a desejar.

Aristóteles, bem ensina a questão do meio termo e da deficiência moral, em uma de suas obras, a arte retórica e arte poética, descrevendo o caráter antagônico dos jovens e dos velhos, assevera com propriedade que a virtude deve estar no meio termo.

De forma análoga, podemos compreender em apertada síntese, que o garantismo rechaça os dois extremos, tanto o estado antiliberal, onde o abuso de punir e a tolerância zero são derradeiros, como também, a liberdade selvagem onde a carência de normas penais é absoluta.

Assim desta maneira, o garantismo é um modelo de direito consistente numa liberdade regrada que afasta os dois extremos, portanto, um modelo de direito meio-termo entre o Abolicionismo Penal e o Estado antiliberal. O garantismo repele tanto o Estado antiliberal que age com excesso no direito de punir, como também, a liberdade selvagem.

Não é tarefa das mais fáceis, elevar a liberdade do homem ao ponto mais alto e diminuir ao máximo o poder punitivo estatal. Como então fazer isso, sem ultrapassar a linha tênue do meio termo?

3.5. Técnicas de Minimização do Poder Institucionalizado e Maximização da Liberdade do Homem. Os dez Axiomas relativos à Pena, ao Delito e ao Processo.

 

O ilustre professor Ferrajoli, acredita que os princípios que compõem todo modelo de direito penal, enunciam, portanto, uma condição sine qua non, isto é, uma garantia jurídica para a afirmação da responsabilidade penal e para aplicação da pena.

Tenha-se em conta de que aqui não se trata de uma condição suficiente, na presença da qual esteja permitido ou obrigatório punir, mas sim de uma condição necessária, na ausência da qual não está permitido ou está proibido punir. A função especifica das garantias no direito penal, como mostrarei, na realidade não é tanto permitir ou legitimar, senão muito mais condicionar ou vincular e, portanto, deslegitimar o exercício absoluto da potestade punitiva. Precisamente porque “delito”, “lei”, “necessidade”, “ofensa”, “ação” e “culpabilidade” designam requisitos ou condições processuais, os princípios que se exigem aos primeiros chamar-se-ão garantias penais, e os exigidos para os segundos, garantias processuais.[6]

Os axiomas do exemplar do mestre, tratam-se de um modelo-limite, apenas tendencialmente e jamais perfeitamente satisfazível. Sua axiomatização resulta da adoção de dez princípios ou princípios axiológicos fundamentais, não deriváveis entre si:

1. Nulla poena sine crimine

2. Nullum crimen sine lege

3. Nulla lex poenalis sine necessitate

4 .Nulla necessitas sine injuria

5. Nulla injuria sine actione

6. Nulla actio sine culpa

7. Nulla culpa sine Iudicio

8. Nullum judicium sine accusatione

9. Nulla accusatio sine probatione

10. Nulla probattio sine defensione.[7]

 

Aqui, esses axiomas representam nada mais do que garantias relativas à pena, ao delito e ao processo penal. Quando e como punir, quando e como proibir e quando e como julgar.

Capítulo II

1. Garantias relativas à Pena. Quando e Como Punir?

1.1. Nulla Poena Sine Crimine. Princípio da Retributividade Penal

 

O problema do quando ou do que punir é aparentemente o mais simples de todos os problemas de legitimação do direito penal. A resposta que geralmente é dada a esta pergunta por parte do pensamento jurídico-filosófico está expressa na máxima nulla poena sine crimene, que constitui o primeiro axioma de Ferrajoli.

A pena, segundo este principio é aplicável quando se tenha cometido um delito, que constitui sua causa ou condição necessária e do qual se configura como efeito ou consequência jurídica. Trata-se, portanto do principio da retribuição ou do caráter de consequência do delito que a pena tem, que é a primeira garantia do direito penal. Graças a ele, a pena não é uma medida preventiva, senão uma sanção retributiva ou post delictum.

Hans Kelsen simbolizou este nexo consequencial entre ilícito e sanção com a conhecida fórmula: “se A, então (deve ser “B”, onde “A” representa o “ilícito” (ou mais especificamente o “delito”), “B” a sanção( ou mais especificamente a “pena”) e “se...então”, a relação de imputação ou causalidade jurídica entre o ato e seu efeito jurídico. [8]

Para expressar o valor garantista desta relação, a fórmula kelseniana há de transformar-se, no entanto, na implicação inversa: “se B, então ( deve ser) “A, ou na equivalente “se não A, então não (deve ser) B”, que é precisamente o principio da retributividade, expressado pelo axioma 1 nulla pena sine crimine.

1.2. Nullum Crimen Sine Lege. Princípio da Legalidade Penal

 

Segundo Ferrajoli, o principio da legalidade é a viga mestre do garantismo. Ele não se limita que os pressupostos das penas estejam estabelecidos de antemão por um ato legislativo, constitui o pressuposto elementar da retribuição, que não se completa na falta daquele.

Ademais, exige, uma lei dotada de referencias empíricas para que seja possível a sua aplicação em proposições verificáveis. Pressupõe todas as demais garantias, materiais ou processuais.

Podemos distinguir entre mera legalidade e estrita legalidade, colocando a primeira em relação com a legitimação jurídica formal subsequente à vigência das normas produzidas e a segunda em relação com a legitimação jurídica material que deriva dos vínculos que condicionam a validade das normas vigentes à tutela dos demais direitos fundamentais incorporados também à Constituição.

1.2.1. Lei Anterior aos fatos ou Anterioridade

Não basta existir a lei, esta, deve ser anterior aos fatos. A anterioridade é um corolário da legalidade, supõe um fato considerado pela lei como sendo uma transgressão, o dano infligido por um fato cometido antes de existir uma lei que o proíba. É um fato punível, um ato de hostilidade, pois antes da lei não existe transgressão da lei, por isso nenhuma lei elaborada depois de realizar-se uma ação pode fazer dela um delito.

1.2.2. Lei Escrita- Costume não institui crime nem comina pena, apenas revoga.

Não basta ser anterior é necessário ser escrita, pois o costume não pode criar tipos penais, nem cominar penas.

O costume como modalidade imediata, consiste na regra de conduta criada espontaneamente pela consciência comum do povo, que a observa por modo constante e uniforme e sob a convicção de corresponder a uma necessidade jurídica. [9]

Assim, o costume não tem o condão de criar uma infração penal, nem tampouco impor qualquer sanção. Ele só pode revogá-las.

Somente o costume interpretativo, ou seja, aquele que busca o real significado das normas, pode ser aplicado às leis penais.

1.2.3. Lei Estrita- Vedação à Analogia Incriminadora

 

Não basta existir lei anterior, nem tampouco escrita, esta, deve ser também estrita e exata, proibindo-se a analogia incriminadora.

A proibição da analogia é um corolário do principio da estrita legalidade. Na medida em que seja possível afirmar que as figuras típicas penais definidas pelas leis, graças a sua adequação daquele principio basilar do direito penal, são verdadeiras ou falsas em relação aos fatos que se examinam, é obvio que não há lugar para o raciocínio analógico in malam partem.

Todavia, nos casos de fórmulas elásticas ou carentes de denotação determinada, permite a chamada analogia in bonam partem. Disso segue-se em termos mais gerais o dever de interpretação restritiva e a proibição de interpretação extensiva das leis penais. Assim desta maneira, não está permitido estender as leis penais.

1.2.4. Lei Certa e de fácil entendimento- Taxatividade

 

Este princípio se encontra ligado à técnica redacional legislativa. Não basta existir uma lei que defina uma conduta como crime. A norma incriminadora legal deve ser clara, compreensível, permitindo ao cidadão a real consciência acerca da conduta punível pelo Estado.

O princípio da taxatividade, ou da determinação, não está expresso em nenhuma norma legal. Trata-se de uma construção doutrinária garantista, fundamentada no princípio da legalidade e nas bases do Estado Democrático de Direito.

2. Nulla Lex Poenalis Sine Necessitate. Princípio da Intervenção Mínima

 

Em linhas gerais, corresponde a um principio penal garantista e de uma conseguinte limitação do arbítrio punitivo. Este axioma constitui a principal resposta, elementar, dada pelo pensamento iluminista à pergunta “como punir”?

A pena, segundo a tese de Montesquieu, deve ser “necessária” e “a mínima” dentre as possíveis em relação ao objetivo da prevenção de novos delitos.

A lei não deve estabelecer mais do que penas estritamente e evidentemente necessárias. Pois se a intervenção do sistema penal é, efetivamente, violenta, e sua intervenção pouco apresenta de racional e resulta ainda mais violenta, o sistema penal nada mais faria que acrescentar violência àquele que, perigosamente já produz o injusto a que continuamente somos submetidos. [10]

Capítulo III

1. Garantias relativas ao Delito. Quando e Como Proibir?

1.1. Nulla Necessitas Sine Injuria. Princípio da Lesividade ou da Ofensividade.

 

A liberdade do cidadão depende principalmente- escreveu Montesquieu- “de que as leis criminais sejam boas”. A pretensão intrínseca à tese de que os delitos têm de ser selecionados dentre as condutas, em algum sentido reprováveis, comporta, ademais, a exigência de uma justificação externa ao conteúdo da proibição penal.

Aqui em ensinamento peculiar Luigi Ferrajoli, responde a pergunta do “quando” proibir. Definindo o requisito dos crimes, qual seja, a necessidade de lesão ao bem juridicamente protegido. Deste modo, chegamos ao cerne da questão, objeto de nosso trabalho que é os crimes de perigo abstrato e de mera conduta.

1.1.1. Os Crimes de Mera Conduta ou de Perigo Abstrato.

 

Os tipos de perigo têm levantado sérios problemas de interpretação. Um dos mais difíceis é a forma de determinar o perigo, concluindo-se atualmente que somente pode ser valorado do ponto de vista de um observador situado no momento da realização da conduta, e não no momento de julgá-la.

O perigo surge sempre de uma incerteza, e, posteriormente à conduta, geralmente, já não há incerteza. Destarte, a incerteza é elemento caracterizador de tal espécie, não havendo precisão quanto à ocorrência do perigo. Punir-se-ia por uma presunção desprovida de especificidade ou de efetiva lesão.

É imperioso fazermos uma breve distinção, entre crimes de perigo concreto e de perigo abstrato. Enquanto no primeiro a possibilidade de lesão deve ser concreta, no crime de perigo abstrato há apenas o “perigo do perigo”, é suficiente para sustentar a tipicidade formal.

A insustentabilidade de tal espécie é verificada por Ferrajoli, o qual, determina ainda que o perigo presumido orbita sobre uma inversão de ônus e cabe prova da ausência de possibilidade do perigo. Assim, temos que a ofensividade inexiste no perigo abstrato, sendo então, certo a determinação do axioma nullum crimen sine injuria.

São de perigo abstrato o uso de drogas, o porte de armas, a embriaguez ao volante e tantos outros tipos penais cuja redação indica apenas a conduta, sem qualquer menção ao resultado.

Há quem diga que os tipos de perigo abstrato são inconstitucionais, no entanto, não parece adequado analisarmos aqui a constitucionalidade dos crimes de perigo abstrato, vez que a própria Constituição descreve um deles - o crime de tráfico de drogas - e prevê sua equiparação a crime hediondo. Por mais que a Carta Magna não descreva claramente no que consiste o tráfico de drogas, resta claro a sua tipicidade formal.

Todavia, o que vamos fazer, ainda que os crimes de perigo abstrato sejam constitucionais, é uma interpretação sistemática, levando-se em consideração a orientação teleológica do Direito Penal garantista.

Ainda que o tipo penal descreva uma possível mera conduta, cabe ao intérprete - em especial ao juiz- a constatação de que o comportamento é inócuo para afetar o bem jurídico tutelado pela norma penal. Em outras palavras, não basta a mera ação descrita na lei, faz-se necessária a verificação da lesividade da conduta, sua capacidade de colocar em perigo bens jurídicos.

Essa parece ser a única interpretação coerente com o axioma garantista da ofensividade, descrito na obra de Ferrajoli, que não admite os crimes de perigo abstrato, tendo em vista, a consagração da ideia de que o Direito Penal tem como norte a exclusiva proteção de bens jurídicos sujeitos a ofensividade.

Do contrário, teremos o Direito Penal de autor, que pune comportamentos sem qualquer potencialidade de causar resultados lesivos com a justificativa única de que revelam a periculosidade do agente.

É necessário compreender que comportamentos inócuos são penalmente irrelevantes, pois, descritos como tipos de perigo abstrato conflitam com o próprio Código Penal, que determina a impunidade do crime impossível, condutas sem possibilidade de afetar o bem jurídico, por ineficácia absoluta do meio ou por absoluta impropriedade do objeto.

Em outras palavras, os crimes de perigo abstrato podem até serem constitucionais, todavia, quando analisamos à luz da política garantista, nos certificamos de que, no caso concreto, aquele comportamento específico, considerado como perigo abstrato, não tinha potencialidade para lesionar ou colocar em risco o bem jurídico protegido pela norma penal, por ser absolutamente inócuo.

É o que sustenta parte da doutrina. Ângelo Roberto, também rechaça a caracterização dos delitos de perigo abstrato como delitos de perigo presumido.[11] Esse autor exige a verificação da periculosidade de conduta para a caracterização dos tiposem análise. Da mesma forma entendem inúmeros outros autores.

Na prática, essa postura se traduz em afastar a tipicidade em diversas situações, como nos casos de rádios comunitárias sem potência capaz de afetar a segurança dos transportes (bem jurídico protegido pela norma), e de porte de arma sem capacidade de funcionamento ou sem munição adequada, o qual será também objeto de nosso trabalho, dentre muitos outros, vez que, não afrontam o principio da lesividade, pelo qual todo comportamento criminoso deve ofender um bem jurídico, seja pela lesão, seja pelo perigo concreto. A mera conduta não teria relevância penal.

Temos que ressaltar ainda, que a missão do Direito Penal é proteger os valores fundamentais para a subsistência do corpo social, tais como a vida, a saúde, a liberdade, a propriedade entre outros, denominados bens jurídicos.

Francisco de Assis Toledo[12] diz que bens jurídicos são somente aqueles que o direito seleciona com o objetivo de assegurar a paz social, e coloca sob sua proteção para que não sejam expostos a ataque ou a lesões efetivas.

Na mesma senda está a indispensável lição de Claus Roxin[13], segundo a qual os pressupostos imprescindíveis para uma existência em comum se concretizam numa série de condições valiosas como, por exemplo, a vida, a integridade física, a liberdade de atuação ou a propriedade, as quais todo o mundo conhece; numa palavra, os chamados bens jurídicos.

O bem jurídico objetiva embasar o trabalho de seleção dos tipos penais incriminadores, que somente se justificam na medida em que tutelam valores essenciais de uma comunidade, afastando, desta forma, incriminações de mero dever.

Para Fernando Capez [14], a natureza do Direito Penal de uma sociedade pode ser aferida no momento da apreciação da conduta. Toda ação humana está sujeita a ser apreciada em face da lesividade do resultado que provocou.

O Crime de perigo é aquele em que há o fenômeno da subsunção legal sem a produção de um dano efetivo. Vale dizer, a tipicidade se completa sem que seja necessária a ocorrência de lesão ao bem jurídico tutelado pelo legislador, neste caso, o delito em questão se consuma com o simples perigo criado para o indivíduo, não há um resultado danoso para o bem jurídico, sendo que esse permanece incólume.

1.1.2. Origem.

 

Como visto, de todas as pendências acadêmicas da atualidade, a de maior repercussão concreta seja aquela a respeito da legitimidade, natureza e limites dos crimes de perigo abstrato. Esses tipos penais são distintos dos demais porque neles o legislador deixa de indicar qualquer resultado naturalístico, descrevendo apenas o comportamento penalmente relevante. Por isso, são chamados por alguns como crimes de mera conduta.

A origem do termo “risco” não é precisa. Para Anthony Giddens[15], a palavra provém, provavelmente, de um termo árabe, aproveitado e utilizado pelos espanhóis quando das grandes navegações, que significaria: “correr para o perigo ou ir contra uma rocha”, enquanto que outros autores afirmam que o termo deriva do baixo-latim risicu, que significa, ousar, ou seja, atuar perante a possibilidade de perigo.

É evidente a relação entre risco e perigo, seja qual for a definição adotada. Risco é o adjetivo que se coloca ao agir humano diante do perigo, ou da possibilidade de perigo. Não há risco sem potência de perigo, sem iminência de perigo.

O risco refere-se à tomada de consciência do perigo futuro, e às opções que o ser humano faz ou tem diante dele.

O perigo e o risco sempre estiveram presentes na atividade humana. O atuar em vida, o relacionamento com o outro e com as forças naturais sempre envolveram expectativas de perigo. No entanto, este perigo sempre foi considerado um elemento alheio à ordem social, uma ameaça alienígena que ocupava as atenções de maneira periférica e acessória.

A sociedade de risco é fruto do desenvolvimento do modelo econômico que surge na revolução industrial, que organiza produção de bens através de um sistema de livre concorrência mercadológica.

Neste sentido, a sociedade pós-industrial é caracterizada por ser uma sociedade de risco, isso significa que, em contraposição à sociedade industrial, em que vivíamos numa sociedade segura, o avanço tecnológico e industrial da contemporaneidade e a produção de riquezas acarretaram crescente exposição do ser humano a riscos, que são inerentes ao processo de evolução.

Para Marta Rodriguez de Assis[16] é uma sociedade surgida surpreendentemente, uma vez que derivada do superdesenvolvimento da modernidade industrial, que acabou gerando efeitos e ameaças que não puderam ser assimiladas pela racionalidade da época industrial.

Ainda segundo a autora, a sociedade mundial do risco parece nascer com a percepção social dos riscos tecnológicos globais e de seu processo de surgimento até então despercebido. É uma teoria política sobre as mudanças estruturais da sociedade industrial e, ao mesmo tempo, sobre o conhecimento da modernidade, que faz com que a sociedade se torne crítica de seu próprio desenvolvimento.

Para alguns doutrinadores, o risco contemporâneo, por apresentar características inéditas, como um alto potencial lesivo, como a dificuldade de conhecer sua real extensão e suas possíveis consequências, envolve a sociedade em uma sensação de insegurança coletiva, intensificada pela ação de meios de comunicação de massa e pela desintegração de pautas de confiança e de expectativa no agir.

Denise Nóbrega Ferraz[17] esclarece que como consequência deste risco, há uma supervalorização da vítima. Tem-se o fenômeno da identificação social com a vítima, o sujeito passivo, mais do que com o autor, o sujeito ativo. Esse fenômeno fundamenta-se na caracterização da sociedade de risco como uma sociedade de classes passivas.

Essas características se aliam a outros fatores a fim de explicar a expansão do direito penal, apesar de outras instâncias de proteção, como a ética, o direito civil e o direito administrativo.

Assim, travestido de insegurança, dessa denominada sociedade de risco, o legislador tem feito uma adaptação do direito, primordialmente do direito penal, como visto, essa adaptação viola algumas garantias, como o principio da lesividade.

Deve-se ter em mente que condenar com o perigo abstrato é condenar sob a égide da incerteza da lesão ou do potencial de lesão na conduta do cidadão. Esse aspecto é sustentado por Streck.

O autor leciona afirmando que há estrita ligação entre os princípios e os bens jurídicos. Portanto, não há viabilidade em punir alguém quando os direitos constitucionais não são, ao menos, expostos a risco. Nesse ínterim, reside até mesmo uma obrigação implícita de criminalização, ao lado dos deveres explícitos de criminalizar somente condutas lesivas aos bens jurídicos[18].

1.1.3. O Porte Ilegal de Arma de Fogo.

 

O direito penal, mormente, por tutelar os bens jurídicos de maior valor, deve ser verificado sob a égide dos axiomas fundamentais que regulam o mundo jurídico. Tal necessidade decorre de evitar que haja tipificação de condutas que sejam, como visto, desprovidas de lesividade material, além de evitar que ocorra um ataque aos princípios de dignidade e sociedade expostos na Constituição.

A lei 10.826/03, conhecida como Estatuto do Desarmamento, em seu artigo 14, tipificou a conduta de portar arma de fogo de uso permitido em desacordo com a legislação ou sem autorização:

Art. 14. Portar, deter, adquirir, fornecer, receber, ter em depósito, transportar, ceder, ainda que gratuitamente, emprestar, remeter, empregar, manter sob sua guarda ou ocultar arma de fogo, acessório ou munição, de uso permitido, sem autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar:

Pena- reclusão, de 02 (dois) a 04 (quatro) anos, e multa. [19]

Essa conduta descrita acima, consoante a materialidade, é de perigo abstrato, ou seja, não há necessidade de efetiva ocorrência de lesão ao bem jurídico, bastando o potencial de lesão, por ser tal potencialidade inerente à conduta praticada pelo sujeito.

Nesse tipo criminal, os axiomas bastam, de logo, para suprimir a incriminação do porte da arma de fogo inidônea para a produção de disparos. Aqui, falta à incriminação da conduta o objeto material do tipo.

Não importa que arma seja verídica, mas incapaz de disparar, ou a arma de brinquedo possam servir de instrumento de intimidação para a prática de outros crimes, particularmente, os comissivos mediante ameaça, pois é certo que, como tal, também se podem utilizar outros objetos, da faca à pedra e ao caco de vidro, cujo porte não constitui crime autônomo e cuja utilização não se edificou em causa especial de aumento de pena.

Os Tribunais perfilhavam o entendimento no sentido de que a posse de arma, mesmo desmuniciada, constituía crime. Embasavam suas decisões na existência de perigo abstrato, ou seja, mesmo na ausência de perigo concreto, o crime restava tipificado diante da mera desobediência à norma.

Todavia, depois do julgamento do HC 81.057SP, cujo relator fora o Ministro Sepúlveda Pertence, o Supremo Tribunal Federal passou a reconhecer a atipicidade da conduta de portar arma de fogo desmuniciada, ao argumento de que não tem, ao seu alcance, algum projetil, o bem jurídico tutelado pela norma não fica exposto a perigo concreto.

A doutrina, aos poucos vem caminhando na mesma direção, ou seja, repudiando os delitos de perigo abstrato, sustentando que infração penal exige, além da conduta, resultado no sentido normativo do termo, ou seja, dano ou perigo de dano ao bem juridicamente tutelado.

Assim sendo, não faz o menor sentido punir pela simples ação, havendo necessidade dela trazer, pelo menos, probabilidade de ofensa ao bem jurídico pela norma penal incriminadora.

Na lição do mestre Zaffaroni, para uma conduta seja penalmente típica é necessário tenha afetado o bem jurídico. Deste modo, na hipótese da conduta de portar ilegalmente arma de fogo desmuniciada e sem possibilidade de ser prontamente municiada, não há que se falar em ofensividade.

Para o professor Luiz Flávio Gomes, o fato cometido, para transformar-se em fato punível, deve afetar concretamente o bem jurídico protegido pela norma; não há crime sem lesão ou perigo concreto de lesão ao bem. Por força do principio que estamos analisando, se o fato não for ofensivo materialmente, não haverá crime.

Os Tribunais tem se alinhado no sentido de realizar as funções do direito penal, evitando condenações em que há evidente carência de lesividade. O Supremo em decisão não muito distante, enuncia que a arma sem munição e a ausência de laudo que comprove a lesividade da arma não pode tipificar a conduta:

EMENTA: HABEAS CORPUS. PENAL E PROCESSO PENAL. PORTE ILEGAL DE ARMA DE FOGO. ARMA DESMUNICIADA. AUSÊNCIA DE LAUDO PERICIAL. ATIPICIDADE. Inexistindo laudo pericial atestando a potencialidade lesiva da arma de fogo resulta atípica a conduta consistente em possuir, portar e conduzir espingarda sem munição. Ordem concedida. HC 97811, Relator (a): Min. ELLEN GRACIE, Relator (a): Min. EROS GRAU, Segunda Turma, julgado em 09/06/2009, Dje- 157. Divulgação: 20/08/2009. EMENT 0237005 PP-00923.[20]

Não se pode esquecer, - apesar de nosso entendimento-, que esse assunto, não se trata de matéria pacificada na doutrina e na Jurisprudência pátria, na medida em que o Superior Tribunal de Justiça vem decidindo diferentemente do Supremo Tribunal Federal, reconhecendo a tipicidade dessa conduta.

1.1.4. O Uso de Drogas.

 

A lei 11.343/06, conhecida como Lei de Drogas, em seu artigo 28, tipificou a conduta de quem trazer para consumo pessoal, drogas sem autorização:

Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas:

I - advertência sobre os efeitos das drogas;

II - prestação de serviços à comunidade;

III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo. [21]

O uso de drogas é um dos temas mais polêmicos da atualidade, tanto é que tramita um projeto de Lei no Senado, para descriminalizar o uso de drogas no Brasil. A polemica envolve varias feições. Como o objeto do nosso trabalho é uma análise sob a ótica do principio da ofensividade, só nos interessa esse aspecto.

Do ponto de vista teleológico-jurídico, a criminalização do uso de drogas jamais poderia se sustentar por força da inobediência da legislação aos axiomas garantistas vistos até aqui, vez que esses princípios, como vimos são os paradigmas do direito penal minimalista.

Ao discutir o principio da lesividade não se poderia deixar de abordar o principio da intervenção mínima do direito penal. Ora, se dentro do Estado Democrático, partindo de uma premissa garantista que eleva a tutela penal a intervir subsidiariamente, nada mais elementar do que garantir a liberdade individual dos seus sujeitos.

Deste modo, os princípios da intervenção mínima e da lesividade são como duas faces da mesma moeda, assim define o professor Rogério Greco[22], “se, de um lado, a intervenção mínima somente permite a interferência do Direito penal quando estivermos diante de ataques e bem jurídicos relevantes, o principio da lesividade nos dirá que condutas merecerão ser incriminadas”.

O que o professor Rogério Greco levanta é a impossibilidade de atuação do Estado Punitivo caso um bem jurídico relevante de terceira pessoa não esteja sendo efetivamente lesado. Aquilo que for da própria esfera do sujeito deverá, à luz da lesividade, ser respeitado pela sociedade e principalmente pelo Estado. Sobre isso, já comentamos o pensamento de Ferrajoli, que com pontual precisão, afirma que “o direito penal não possui a tarefa de impor ou reforçar a moral, mas sim, somente de impedir o cometimento de ações danosas a terceiros”.

E continua: “o principio da lesividade se assume como critério de minimização das proibições penais, equivalente a um principio de tolerância tendencial da desviação, idôneo para reduzir a intervenção penal ao mínimo necessário” .[23]

Para a Teoria Jurídica da Infração Penal, existiriam dois conceitos de infração penal: o conceito formal, que seria a conduta que o Estado descreve literalmente na lei como tal. E o conceito material, que seria a proteção dos bens jurídicos pelo Direito Penal, violados por uma conduta lesiva, daí porque a necessidade de intervenção do estado Penal.

Para a doutrina clássica, dominante, corroborada por grandes mestres da ciência Criminal, a exemplo de Welzel, Roxim, Zaffaroni, Greco, a infração penal seria tripartida, ou seja, levando-se em consideração o fato típico, antijurídico e culpável.

No caso desta Lei, mais especificamente no artigo 28, retro mencionado, a descrição da conduta não preenche se quer o fato típico (materialmente arrazoando), não havendo necessidade de se discutir os demais requisitos, pois, inobservado o primeiro, a conduta, a conduta formalmente expressa na lei não deveria sequer receber tutela penal.

No ordenamento jurídico brasileiro é impossível falar em tipicidade sem antes discorrer acerca da configuração do fato típico. Para configurar fato típico é necessário, primeiramente, a adequação da conduta ao fato descrito em norma penal. Esta é a tipicidade formal, que segundo disciplina Greco, é a adequação perfeita da conduta do agente ao modelo abstrato revisto em lei penal.

Neste sentido, por imposição (como vimos) do axioma nullum crimen sine lege, o legislador, quando quer impor ou proibir condutas sob a ameaça de sanção, deve, obrigatoriamente, valer-se de uma lei.

Para muitos operadores do direito penal, como Delegados, membros do Ministério Publico, Juízes, etc., o clamor público (fortemente influenciado pela mídia), infelizmente, cria o ambiente propicio par o fortalecimento de uma visão formal da tipicidade penal e do próprio conceito de infração, levando com isso ao que chamamos de populismo penal.

Diante disso, haveria tipicidade formal para o delito de porte e uso de drogas, uma vez que o legislador fez a previsão expressa para o delito em seu artigo 28 da mencionada lei.

Entretanto, criticas são tecidas a respeito do aspecto material do tipo penal em análise, pois, não poderia, simplesmente, o Estado criar um tipo tão genérico que interfere diretamente na liberdade das pessoas, sem perigo concreto de lesão.

Por isso, no âmbito do direito penal, cada conduta considerada como contrária a sociedade ou em termos garantistas contrariamente à harmonia social e a segurança jurídica deve ser especificada e individualizada nos seus menores detalhes.

Por mais que os conceitos de tipo e tipicidade se confundam, pois seus elementos de configuração são os mesmos- conduta, nexo causal e resultado- não se pode afirmar que os institutos são os mesmos. Zaffaroni entende que o tipo pertence à lei, enquanto tipicidade pertence à conduta. A tipicidade é a caraterística que tem a conduta em razão de estar adequada a um tipo penal, ou seja, individualizada como proibida por um tipo penal. [24]

O estudo da tipicidade possui grande relevância porque analisa além da adequação da conduta à literalidade expressa da Lei, como subsunção do fato praticado, pelo agente às normas penais. A tipicidade relaciona-se com a análise de bens jurídicos mais importantes, que demandam a especialidade da tutela penal.

Deste modo, a tipicidade, à luz do axioma garantista nulla necessitas sine injuria, rompe com os conceitos de concebê-la como uma simples subsunção da conduta à letra da lei, já que tendo como basilar os princípios até aqui expostos, estabelecendo um conjunto de valores, é necessário que a ideia de tipicidade se adeque á nova ordem garantista, afastando cada vez mais a concepção legalista do direito penal. Eugenio Zaffaroni, mais uma vez nos dá a ideia de tipicidade penal, afirmando que “a tipicidade penal implica a tipicidade legal corrigida pela tipicidade conglobante”. [25]

Ora, a Teoria do eminente catedrático argentino, pressupõe duas questões para a existência do fato típico: a) a conduta do agente deve ser antinormativa, ou seja, deve-se avaliar a conduta à luz do universo normativo e b) a conduta deve, de forma efetiva e relevante, ofender o bem jurídico previsto pelo tipo penal, incorrendo no que a doutrina penal costuma chamar de tipicidade material.

Para configurar ato antinormativo, é necessário que o fato esteja atingindo as normas proibitivas do ordenamento jurídico e essa norma esteja resguardando bens jurídicos relevantes ao direito penal.

O legislador, a partir da valoração de bens jurídicos mais importantes busca, então, traduzi-la em uma norma marcada por um comando proibitivo de conduta. Este bem ao ser valorado, por sua vez, se torna um bem juridicamente tutelado quando a norma formula o tipo penal respectivo.

A tipicidade implica antinormatividade e não podemos admitir que na ordem normativa, uma norma ordene o que outra proíbe. Como podemos entender então, a venda de álcool e anfetaminas legalmente autorizadas pelo Estado, cujo potencial toxicológico, as vezes é até maior do que certas substancias proibidas pela referida lei?

Uma ordem normativa, na qual, uma norma possa ordenar o que a outra pode proibir, deixa de ser ordem e de ser normativa e torna-se uma “desordem” arbitrária. As normas jurídicas não vivem isoladas, mas num entrelaçamento em que umas se limitam a s outras, e não podem ignorar-se mutuamente.

Uma ordem normativa não é um caos de normas proibitivas amontoadas em grandes quantidades, não é um depósito de proibições, uma ordem de normas é um conjunto de normas que guardam entre si certa ordem.

Conforme o exposto, após a análise do tipo penal descrito no artigo 28 da Lei 11.343/06, vê que o bem jurídico a que se pretende tutelar não mais comporta proteção penal. Veja-se que os outros mecanismos do direito podem e devem controlar o uso de substancias toxicas.

A descriminalização não impede a imposição de restrições de natureza não penal, que certamente são necessárias. Deve sim haver limitações de caráter administrativo e civil, por exemplo, como a proibição de consumo em lugar público ou por pessoa menor de idade. Mas, no ambiente privado, particular, não há sentido em fazer essa restrição. Se eu posso oferecer uma cerveja, por que não posso oferecer maconha?

Na construção de um tipo penal é de pontual importância a delimitação do bem jurídico a ser tutelado. No caso da Lei de Drogas, uma forte razão para o rompimento com a irracional politica legislativa, é que, explicitando a intenção de proteger a saúde pública, contrariamente cria com a proibição maiores riscos à integridade física e mental dos possíveis consumidores daquela substancia proibida, impondo à clandestinidade a distribuição e ao consumo.

Contentar-se, no âmbito penal, com o simples perigo abstrato significa dar curso ao abominável Direito penal do inimigo, que pune o agente sem o devido respeito às garantias mínimas do Direito penal (estando, dentre elas, o princípio a ofensividade).

O Direito penal nazista fez muito uso dessa técnica legislativa consistente na infração de perigo abstrato (ou seja: mera desobediência à norma, sem nenhuma preocupação com a ofensa ao bem jurídico). Não podemos repetir o que historicamente se tem como abominável. Não podemos conceber como válida uma interpretação nazista do Direito penal.

Deste modo, como vimos, para que a conduta tenha implicações na seara penal não basta somente a compatibilidade formal com o tipo, mas também é necessário que a infração cometida pelo agente venha a atingir bens jurídicos que demandem a tutela penal. É o que se chama de adequação típica material, ou seja, é necessário que se ofenda efetivamente ao bem jurídico elevado à tutela penal.

1.1.5. Embriaguez ao Volante.

 

Assim como o porte de arma inidônea e o uso de drogas, a Lei 9.503/97, conhecida como Código de Trânsito Brasileiro, em seu art. 306, ao cuidar do delito de embriaguez ao volante, não faz referência ao elemento subjetivo do tipo e numa afronta ao garantismo, violou a liberdade do individuo:

Art. 306. Conduzir veículo automotor, na via pública, estando com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 06 (seis) decigramas, ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência:

Penas - detenção, de seis meses a três anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor. [26]

A criminalização da direção embriagada é uma medida de política criminal que apresenta certa incongruência. Como visto nos demais casos de incidência dos crimes de perigo abstrato, não se pode punir o individuo, somente porque ingeriu álcool e foi dirigir. Não podemos confundir os fatos.

Há uma diferença astronômica entre beber e dirigir e beber, sem condições pegar o veículo, sair em zig zag e provocar um acidente.

Assim, não se pode de forma antecipada e inválida, punir penalmente o sujeito, que apenas ingeriu álcool, sem colocar nenhum bem jurídico em risco, nem tampouco, a segurança viária.

Ademais, esse tipo penal descrito no Art. 306 da mencionada lei, fez ressuscitar no ordenamento jurídico o sistema da responsabilidade penal objetiva, sendo, portanto, uma afronta às garantias da lesividade e ofensividade, pois o legislador de forma extremada e absolutista, se valendo de um perigo abstrato, limitou a liberdade do cidadão.

Vejamos que para a incidência do fato típico em comento é suficiente apenas que o motorista tenha ingerido bebida alcoólica ou outra substância de efeitos análogos. Desta maneira, o fato típico se perfaz somente com a direção do motorista embriagado. Não havendo o elemento subjetivo, indispensável à luz da culpabilidade.

Neste interim, indiscutível importância toma a análise dos elementos da relevância e efetividade do principio da lesividade para que se possa falar em crimes dessa natureza. A presença desses elementos nos dá a seguinte conclusão: garantir a ofensa é assegurara aplicação do axioma do mestre Ferrajoli.

2. Nulla Injuria Sine Actione. O Princípio da Exterioridade da Ação e o nexo causal entre ação e resultado.

 

O segundo requisito substancial, não mais importante do que a lesividade, exigido pelo “quando” e do “que” proibir, encontra sua expressão no axioma acima mencionado.

De acordo com esse principio nenhum dano, por mais grave que seja, pode se estimar penalmente relevante, senão como efeito de uma ação. Em consequência, os delitos, como pressupostos da pena, não podem consistir em atitudes ou estado de ânimo interiores, nem sequer, genericamente, em fatos, senão que devem se concretizar em ações humanas. Ou seja, é proibido o direito penal do autor.

O direito penal só deve se preocupar com o fato praticado pelo autor. Jamais pode ser considerado crime seu modo de vida ou que você pensa, ou o que você é.

É importante mencionarmos que, tem doutrinadores levando o minimalismo ao extremo, afirmando, por exemplo, que a reincidência deve ser uma atenuante e não uma agravante, porque o estado chamou a responsabilidade, através da ressocialização e não conseguiu restaurar o sujeito.

O fundamento do principio da exteriorização da ação, também é fruto da elaboração iluminista, são os mesmos que encontramos como fundamento da garantia de lesividade. O primeiro deles é o critério de utilidade: somente as ações externas, e não os “atos internos”, podem produzir danos a terceiros, os atos internos, isto é, os pensamentos e as intenções, da mesma forma que os “vícios” e a “maldade de ânimo”, não são prejudiciais a ninguém, e ninguém está interessado em sua punição.[27]

A materialidade, ou exterioridade da ação criminal, é, assim, um pressuposto necessário da lesividade ou danosidade do resultado.

4.2.1. Exterioridade da ação e separação entre Direito e Moral

 

O outro fundamento, bem mais importante no plano ético-politico, trazido pelo iluminismo penal ao requisito da materialidade da ação criminal é o principio axiológico de separação entre direito e moral, já que não é tarefa do direito sancionar ou impor a moral. Essa tese encontra, nos princípios de exteriorização dos atos suscetíveis de proibição penal e de reserva dos atos internos ao domínio específico e exclusivo da moral.

Para Ferrajoli, nenhuma outra doutrina filosófica, realizou uma tarefa histórica de liberalização do direito e sua separação da moral. Se o valor político do principio de materialidade da ação reside na tolerância para com o diferente e na tutela da liberdade de consciência, seu valor jurídico radica em sua insubstituível função garantista, isto é, no fato de que somente graças a ele pode-se configurar o principio de legalidade como principio de estrita legalidade.

3. Nulla Actio Sine Culpa. O Princípio da Culpabilidade.

 

A terceira condição material requerida pelo modelo garantista, como justificação “quando” e do “que” proibir, é a da culpabilidade. É o chamado elemento subjetivo ou psicológico do delito, nenhum fato ou comportamento humano é valorado como ação se não é fruto de uma decisão; consequentemente, não pode ser castigado, nem sequer proibido, se não é intencional, isto é, realizado como consciência e vontade por uma pessoa capaz de compreendes e de querer, por isso, o direito penal veda a responsabilidade objetiva.

O sistema da responsabilidade penal objetiva, que chegou a vigorar nos primórdios do direito penal, foi há muito tempo superada. Atualmente, vigora o sistema da responsabilidade subjetiva, para o qual os pensamentos, os sentimentos e a vontade do indivíduo importam.

Só há crime, de acordo com o sistema da responsabilidade penal subjetiva, quando o sujeito apresenta um determinado suporte anímico (imprevisão do previsível, no mínimo).

Assim, o direito penal dá importância ao aspecto subjetivo (submete-se, portanto, ao sistema da responsabilidade penal subjetiva), mas apenas quando este se exterioriza por meio de uma ação ou de uma omissão. Pode-se dizer que o que não tem importância num primeiro momento – pensamentos, sentimentos, vontades – passa a ser importância num segundo momento.

Bitencourt, sobre o princípio da culpabilidade, preleciona que:

“Nullum crimen sine culpa, quer dizer que a pena só pode ser imposta a quem, agindo com dolo ou culpa, e merecendo juízo de reprovação, cometeu um fato típico e antijurídico. É um fenômeno individual: o juízo de reprovabilidade (culpabilidade), elaborado pelo juiz, recai sobre o sujeito imputável que, podendo agir de maneira diversa, tinha condições de alcançar o conhecimento da ilicitude do fato (potencial consciência da antijuridicidade). O juízo de culpabilidade, que serve de fundamento e medida da pena, repudia a responsabilidade penal objetiva (aplicação de pena sem dolo, culpa e culpabilidade)”. [28]

Noronha, igualmente, assevera:

“A designação “culpa” está indissociavelmente ligada a uma idéia negativa, reprovável, ou melhor, à referibilidade a alguém como causador de um resultado nocivo. Assim, não se atribui o sucesso de um empreendimento, por exemplo, a um culpado. A bancarrota de uma empresa poderá ter ocorrido por culpa de seu diretor, jamais o sucesso. Este advém de mérito. O culpado e a culpa estão relacionados invariavelmente a resultados maléficos. Daí estar correta a afirmação de Assis Toledo, segundo a qual a “culpa adquire, pois, na linguagem usual, um sentido de atribuição censurável, a alguém, de um fato ou acontecimento”. [29]

Ainda segundo o tema, Fernando Capez ensina que:

“O direito penal não se presta a punir pensamentos, idéias, ideologias, nem o modo de ser das pessoas, mas, ao contrário, fatos devidamente exteriorizados no mundo concreto e objetivamente descritos e identificados em tipos legais. A função do estado consiste em proteger bens jurídicos contra comportamentos externos, efetivas agressões previamente descritas em lei como delitos, bem como estabelecer um compromisso ético com o cidadão para o melhor desenvolvimento das relações intersociais. Não pode castigar meros pensamentos, idéias, ideologias, manifestações políticas ou culturais discordantes, tampouco incriminar categorias de pessoas. Os tipos devem definir fatos, associando-lhes penas, e não estereotipar autores. Na Alemanha nazista, por exemplo, não havia propriamente crimes, mas criminosos. Incriminavam-se os “traidores” da nação ariana e não os fatos eventualmente cometidos. Eram tipos de pessoas, não de condutas, castigavam-se a deslealdade com o Estado, as manifestações ideológicas contrárias à doutrina nacional-socialista, os subversivos e assim por diante. Não pode existir, portanto, um direito penal do autor, mas sim do fato”.[30]

Fato é que o modelo subjetivo, apoiado pela Teoria garantista, se faz sentir em diversos segmentos do sistema penal. No direito penal brasileiro, essa perspectiva se apresenta de maneira muito clara em diversos canais do ordenamento jurídico. Um a um, estes canais mostram que o sistema penal pátrio, a exemplo do que se verifica no restante do mundo, encontra seu alicerce não apenas no campo da manifestação do pensamento, mas também, e, sobretudo, no campo do pensamento em si.

Um dos aspectos que demonstra a subjetividade é o erro jurídico-penal, mais especificamente na seara do erro de tipo na formação da vontade e do erro de proibição. No erro de tipo essencial na formação da vontade, o sujeito pratica a conduta criminosa sem saber que está a preencher os elementos de determinado tipo penal; no erro de proibição direto, o sujeito pratica um crime sem saber que sua conduta é considerada criminosa; no erro de proibição indireto, o sujeito pratica um crime pensando estar agindo sob o agasalho de alguma descriminante.

Nessas três situações, portanto, o elemento subjetivo da conduta mais uma vez se expõe à luz, e o Direito Penal o considera, com especial atenção, para efeito de fixar a adequada responsabilização criminal.

Esses aspectos de subjetividade apontados servem, portanto, para mostrar que o Direito Penal brasileiro, cujo sistema se assemelha à da maioria dos países, tem uma estrutura que não se sustenta apenas na conduta objetiva, tampouco na lesão ou ameaça de lesão, mas se apoia, de maneira proeminente, no aspecto subjetivo da conduta, levando em consideração não apenas a manifestação do pensamento, mas o próprio pensamento em si.[31]

Diante do exposto, verificamos que o princípio da culpabilidade estabelece a possibilidade de se considerar alguém culpado pela prática de uma infração penal, não se tratando de elemento do crime, mas sim, pressuposto para a imposição da pena somente no caso de dolo ou culpa tendo embutido na conduta um juízo de reprovação.

 

Capítulo IV

1. Garantias relativas ao Processo

1.1. Nulla Culpa Sine Iudicio. Principio da Jurisdição

 

A principal garantia processual que forma o pressuposto de todas as outras é a da submissão à jurisdição, expressa pelo axioma Nulla Culpa sine Iudicio.

A jurisdição surgiu da necessidade jurídica de se impedir que a prática temerária da autodefesa, por parte de indivíduos que se vissem envolvidos em um conflito, levasse a sociedade à desordem oriunda da inevitável parcialidade da justiça feita com as próprias mãos.

O Estado chamou para si o dever de manter estável o equilíbrio da sociedade e, para tanto, em substituição às partes, incumbiu-se da tarefa de administrar a justiça, isto é, de dar a cada um o que é seu, garantindo, por meio do devido processo legal, uma solução imparcial e ponderada, de caráter imperativo, aos conflitos interindividuais.

Reconhecendo a necessidade de um provimento desinteressado e imparcial, o Estado, mesmo sendo o titular do direito de punir - detentor da pretensão punitiva - autolimitou seu poder repressivo atribuindo aos chamados órgãos jurisdicionais a função de buscar a pacificação de contendas, impondo, soberanamente, a norma que, por força do ordenamento jurídico vigente, deverá regular o caso concreto.

O Estado, então, por intermédio do Poder Judiciário, busca, utilizando-se do processo, investiga qual dos litigantes tem razão, aplicando, ao final, a lei ao caso litigioso em comento.

Cintra, Grinover e Dinamarco[32] a definem como sendo “uma das funções do Estado, mediante a qual este se substitui aos titulares dos interesses em conflito para, imparcialmente, buscar a pacificação do conflito que os envolve, com justiça”.

Em outras palavras, apregoam os autores que “através do exercício da função jurisdicional, o que busca o Estado é fazer com que se atinjam, em cada caso concreto, os objetivos das normas de direito substancial”.

Nesse mesmo sentido, Tourinho Filho[33] conceitua jurisdição como “aquela função do Estado consistente em fazer atuar, pelos órgãos jurisdicionais, que são os juízes e Tribunais, o direito objetivo a um caso concreto, obtendo-se a justa composição da lide”.

Reforça ainda que “esse poder de aplicar o direito objetivo aos casos concretos, por meio do processo, e por um órgão desinteressado, imparcial e independente, surgiu, inegavelmente, como impostergável necessidade jurídica à própria sobrevivência do Estado”.

Importa frisar que o fato de ser a jurisdição uma emanação da própria soberania estatal originou o art. 345 do Código Penal pátrio, onde está estabelecido como crime o fazer justiça com as próprias mãos, mesmo se tratando de pretensão legítima.

Cintra, Grinover e Dinamarco lembram que a jurisdição é, ao mesmo tempo, poder, função e atividade. Como poder, é uma emanação da soberania nacional. Como função, é a incumbência afeta ao órgão jurisdicional de, por meio do processo, aplicar a lei aos casos concretos. Como atividade, é o complexo de atos do juiz no processo, tendentes a dar a cada um o que é seu.

Mirabete[34], ao dissertar sobre as características da jurisdição, apresenta algumas outras que chamou de formais indeclináveis, necessárias à realização eficiente do objetivo jurisdicional de aplicar a lei ao caso concreto. São elas: um órgão adequado – o juiz – colocado em posição de independência para exercer imparcialmente a atividade jurisdicional; o contraditório regular, que permitirá às partes duelar com paridade de armas; e um procedimento preestabelecido segundo regras de garantam o livre desenvolvimento do direito e das faculdades das partes, visando a assegurar a justa solução do conflito.

1.2. Nullum Iudicium Sine Accusatione. “Quando e como julgar”? O Principio Acusatório.

 

Segundo Ferrajoli, de todos os elementos constitutivos do modelo teórico acusatório, o mais importante, por ser estrutural e logicamente pressuposto de todos os outros, indubitavelmente é a separação entre juiz e acusação.

Essa separação exigida por nosso axioma nullum iudicium sine accusatione, ela comporta não só a diferenciação entre os sujeitos que desenvolvem funções judicantes e os que desenvolvem funções de postulação.

Modernamente, o sistema acusatório é, ao menos em tese, ideal almejado não só por Ferrajoli, mas também, por todos os Estados Democráticos de Direito, haja vista que a eleição ideológica de tal estrutura processual é uma natural consequência das influências do iluminismo e dos princípios democráticos em relação ao direito.

Do esboço traçado, depreende-se que o processo de cunho acusatório, nascido no Direito grego e consolidado na República romana, desenvolveu-se à luz de uma série de caracteres peculiares.

De acordo com Luigi Ferrajoli, entre todos os elementos constitutivos do modelo teórico acusatório, “o mais importante, por ser estrutural e logicamente pressuposto de todos os outros, indubitavelmente é a separação entre juiz e acusação”. [35]

Tal repartição de funções supõe a configuração do processo como uma relação triangular entre três sujeitos, sendo dois deles partes em causa e um terceiro super partes, a quem se reserva o papel de espectador passivo e desinteressado. Por isso a proibição do juiz produzir provas.

Vemos aqui que o juiz não pode agir de oficio. Ele não reconhece culpa se não for provocado. Quem produz provas é a parte, o que se permite é um juiz subsidiário.

Como corolário da exigência de separação de funções, impõe-se a observância do princípio da imparcialidade, haja vista que a acusatoriedade real depende da imparcialidade do julgador.

No sistema acusatório, o réu é considerado sujeito de direitos, fazendo jus à possibilidade de resistir à acusação, razão pela qual impera aqui o princípio do contraditório, o qual “atende à estrutura dialética do processo penal acusatório e decorre da concepção liberal de que as partes são sujeitos da relação processual, titulares de direitos, deveres, poderes, sujeições e ônus”.[36]

Como garantia do acusado, vigora, no sistema em análise, o princípio da presunção de inocência, motivo por que o estado de liberdade do acusado no curso do processo é a regra geral. Na valoração das provas, domina o sistema do livre convencimento, não havendo hierarquia entre aquelas.

1.3. Nulla Accusatione Sine Probatio. Principio do Ônus da Prova.

 

Se a história das penas é uma história dos horrores, a história dos julgamentos é uma história de erros; e não só de erros, mas também de sofrimentos e abusos, todas as vezes em que no processo se fez uso de medidas instrutórias diretamente aflitivas, da tortura até o moderno abuso da prisão preventiva.

Todavia, desde que o Estado apropriou-se da prestação da justiça, tomando para si o encargo de aplicar a justiça, que a teoria garantista vem se desenvolvendo. É através do processo que se verifica a autenticidade dos fatos. Assim, o processo é indispensável a prestação da justiça e a prova é fundamental ao processo, visto que é através dela que se atinge a finalidade processual, a verdade real.

A instrução probatória busca a declaração da existência ou inexistência da responsabilidade criminal do réu e sua consequente punição, caso fique demonstrado para o julgador à responsabilidade penal daquele sujeito que se vê processado. Para isso, deve o juiz convencer-se acerca da verdade ou falsidade das afirmações feitas pelas partes ao longo do processo, o que é feito por meio da prova.

Com o axioma nulla accusatione sine probatio, fica notório, que nas ações penais públicas o órgão acusador tem a obrigação de provar o alegado e não o acusado demonstrar sua inocência, constituindo uma característica inafastável do sistema processual penal acusatório, como visto até aqui.

Assim sendo, cabe ao acusado apenas negar os fatos a ele atribuídos, ou melhor, apenas tem a faculdade de negá-los, pois a não impugnação destes ou mesmo a confissão não leva a presumi-los como verdadeiros, continuando eles como objeto de prova de acusação, visto que a dúvida sobre os chamados fatos da acusação leva à incoerência da pretensão punitiva, independentemente da conduta processual do réu, em virtude do instituto jurídico do “in dubio pro reo”, ou presunção de inocência.

1.4. Nulla Probatio Sine Defensione. Principio do Contraditório.

 

Inicialmente é mister destacar que, tem vários doutrinadores equivocados, ou melhor, deturpando a obra de Ferrajoli, argumentando que deve existir contraditório no Inquérito Policial, porque segundo eles, o Ministério Publico oferece a denúncia com base em provas produzidas no referido Inquérito, e, como o garantismo penal exige contraditório na produção de provas, nada mais justo do que a defesa participar dessas provas produzidas durante o inquérito.

É necessário fazermos algumas observações, pois, não se pode em seara inquisitorial, interpretar o princípio do contraditório de forma estrita e unilateral, não havendo o maior sentido o juiz deferir um pedido de interceptação telefônica mediante contraditório. O que se fará com uma interceptação telefônica em que o advogado da parte contrária esta participando? Isso não é garantismo.

O ônus da prova a cargo da acusação comporta logicamente, por parte do imputado, o direito de defesa, expresso aqui com esse axioma nulla probatio sine defensione. Esta última garantia é importante para a defesa, que por tendência não tem espaço no processo inquisitório, forma, portanto, o mais importante instrumento de controle do método de prova acusatório.

Essa concepção do processo como disputa ou controvérsia exprime os valores democráticos garantistas, do respeito da pessoa do imputado e da igualdade entre as partes contendoras.

Mirabete[37] conceitua o contraditório como, "o princípio do contraditório, além de fundamentalmente constituir-se em manifestação do princípio do Estado de Direito, tem íntima ligação com o da igualdade das partes e o do direito de ação, pois o texto constitucional, ao garantir aos litigantes o contraditório e a ampla defesa, quer significar que tanto o direito de ação, quanto o direito de defesa são manifestação do princípio do contraditório."

Tourinho Filho[38], a seu turno, tece a lição de que o contraditório, "consubstancia-se no velho adágio - audiatur et altera pars - a parte contrária deve ser ouvida”.

Traduz a ideia de que a defesa tem o direito de se pronunciar sobre tudo quanto for produzido em juízo pela parte contrária. Assim, se o acusador requer a juntada de um documento, a parte contrária tem o direito de se manifestar a respeito. E vice-versa. Se o defensor tem o direito de produzir provas, a acusação também o tem. “O texto constitucional quis apenas deixar claro que a defesa não pode sofrer restrições que não sejam extensivas à acusação"

Considerações Finais

 

Considerando-se o modelo garantista, desde já, vale certificar que, não é aceitável adequar a conduta punitiva à forma, mas asseverar a relevância penal dos comportamentos que se mostrem realmente, ao menos em termos potenciais, lesivos ao bem-jurídico. Deste modo, impende levar em consideração o princípio da necessária ofensividade no direito penal.

Como vimos, para Ferrajoli a necessária lesividade do resultado, qualquer que seja a concepção que dela tenhamos, condiciona toda justificação utilitarista do direito penal como instrumento de tutela e constitui seu principal limite axiológico.

Apesar da tipificação de condutas de tipos penais de perigo abstrato, a intervenção penal só é cabível, quando houver, pelo menos, o risco concreto ao bem jurídico.

Há inobservância ao Princípio da Ofensividade na incriminação de condutas que não trazem a possibilidade concreta de dano, porque não basta uma constatação meramente formalista do delito, mas uma relevância quando o bem jurídico passa a ser concretamente afetado.

Ao compreender-se a fundamentação dos princípios constitucionais penais e seu modelo garantista, analisando a excessiva criação dos crimes de perigo abstrato, buscamos comprovar que a validade de uma medida punitiva não depende apenas de requisitos formais.

O modelo jurídico-penal não pode, unicamente, fazer frente às realidades da sociedade de perigo ou dos modernos riscos da vida, em razão da intervenção efetiva do Direito Penal, pois, significa o sacrifício de garantias essenciais.

A punição por perigo abstrato significa uma sanção fundamentada apenas no desvalor da ação, independentemente da presunção de qualquer resultado, pois é a mera presunção do perigo.

A intervenção penal em tela deve ser evitada, porque fundamentada em mera desobediência à norma, o que, além de contrariar a própria razão de ser da norma penal é cruel e proibido pelo nosso Código penal que não admite crimes sem resultado.

Com o fundamento constitucional do direito penal mínimo, em concordância com o princípio da ofensividade e lesividade dos bens jurídicos, o perigo concreto constitui pressuposto à tipificação penal e a sanção penal só se justifica quando a conduta do agente tenha submetido o bem jurídico tutelado penalmente pelo menos a um perigo real, concreto.

Ademais, como Zaffaroni assevera o juízo da tipicidade penal não é mero juízo de tipicidade legal, podendo-se excluir condutas que apenas aparentemente estão proibidas, mas que a ordem normativa não quer proibir.

Os crimes de perigo abstrato não tem legitimidade assegurada pelo direito penal mínimo, pois, a tipificação desses delitos é inócua, tendo em vista, que não há nenhuma possibilidade concreta de dano, mas somente uma violação formal de lei por parte de uma ação vazia em si mesmo.

A bússola constitucional do Direito Penal, o modelo garantista, confirma a imprescindibilidade de observância aos Princípios Constitucionais Penais, sobretudo, o princípio da ofensividade, para evitar a proliferação desses tipos desnecessários e lesivos à liberdade do cidadão.

O modelo garantista, ao ser tratado como baliza, é garantia do individuo contra o arbítrio do Estado e, ao contrário de modelos imperiosos, abrangidos com a ausência de limites à intervenção estatal, a excessiva severidade na punição e a incerteza nas condenações, exige não só a conduta proibitiva da norma, mas também seus efeitos lesivos para terceiros, o caráter exterior ou material da ação criminosa.

Assim, analisando o modelo garantista penal, não há espaço para esses crimes de perigo abstrato ou mera conduta, sem nenhuma lesividade ou dano aos bens jurídicos.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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