O Discurso Sobre A Homoafetividade No Filme Assunto De Meninas



 Introdução

A homoafetividade tem sido tema de discussões e debates na sociedade. Embora não haja respostas sobre o assunto por parte das ciências que estudam a sexualidade humana, a maioria heterossexual trata o homoafetivo como doente, anormal.

A homossexualidade, discursivamente produzida, transforma-se em questão social relevante. A disputa centra-se fundamentalmente em seu significado moral. Enquanto alguns assinalam o caráter desviante, a anormalidade ou a inferioridade do homossexual, outros proclamam sua normalidade e naturalidade. (LOURO, 2001,p.6).

Por isso, os homoafetivos sofrem preconceito, discriminação e até violência de indivíduos ditos homofóbicos. Não raro, os meios de comunicação relatam casos de pessoas vítimas de grupos anti-homoafetivos.

Hoje, a polêmica tem se intensificado devido à pressão de organismos de defesa dos direitos humanos e de organizações de homoafetivos, que lutam por respeito e direitos iguais, como cidadãos.

Por ser um tema que divide opiniões da sociedade, entre os que reconhecem, ou não, os direitos do homoafetivo e estar em evidência no mundo, vamos estudá-lo sob a perspectiva da Análise do Discurso. Que discursos encontramos sobre orientação sexual no filme Assunto de Meninas? Esse trabalho objetiva analisar aspectos do discurso sobre orientação sexual em Assunto de Meninas.

Sendo o tema objeto de controvérsias, esse trabalho constitui um instrumento para a compreensão dos aspectos ideológicos subjacentes a essa discussão. Assim, o leitor adquirirá uma visão crítica da sociedade e poderá fazer análise do discurso em outros filmes e textos.

Fundamentação teórica

A teoria da Análise do Discurso, de linha francesa, baseia-se na Lingüística, no Marxismo e na Psicanálise, e analisa a relação entre ideologia e linguagem, por meio do discurso. Seus conceitos-chave aplicados na análise do filme são: formação ideológica, formação discursiva e discurso.

A formação ideológica caracteriza, segundo Harochi (1971, p. 102):

um elemento (determinado aspecto da luta nos aparelhos) susceptível como uma força confrontada com outras forças na conjuntura ideológica característica de uma formação social em um momento dado: cada formação ideológica constitui assim um conjunto complexo de atitudes e de representações que não são nem "individuais" nem "universais" mas se relacionam mais ou menos diretamente a posições de classe em conflitoumas em relação às outras.

Em Assunto de Meninas, existe um confronto ideológico. Num colégio interno Paulie namora Tori. Essa relação homoafetiva é descoberta quando, com um grupo de amigas, a irmã de Tori vai ao quarto dela e flagra-a deitada com Paulie, nua. Temendo que Allison conte para seus pais e as colegas a chamem de homoafetiva, Tori passa a negar seu namoro com Paulie, que luta para reconquistar a ex-companheira. Há, pois, no filme, uma luta entre o discurso de respeito ao homoafetivo, de Paulie, e o discurso de não-respeito ao homoafetivo, do restante da escola. Essas posições distintas são as formações discursivas.

Para Pêcheux (1997, p. 160), formação discursiva é

aquilo que, numa formação ideológica dada, isto é, a partir de uma posição dada numa conjuntura dada (...), determina o que pode e deve ser dito (articulado sob a forma de uma arenga, de um sermão, de um panfleto, de uma exposição, de um programa, etc.).

O discurso é uma ação social, um ato de um locutor que possui uma intenção, efeito de sentidos entre locutores, como parte do funcionamento social geral (ORLANDI, 1996).

Quando a diretora do colégio, Vaughn, diz a Paulie que compreende o que ela sente, mas que ela precisa de ajuda, está tentando convencê-la de que está doente e precisa ser tratada, num discurso de não-respeito à homoafetividade.

Metodologia

O filme Assunto de Meninas foi tomado como corpus para esta análise. O tema da homoafetividade foi tomado como formação ideológica, enquanto o respeito e o não respeito a essa orientação sexual foram tomados aqui como duas formações discursivas.

Análise de dados do filme Assunto de Meninas

Formação ideológica

A ideologia é um conjuntos de idéias, atitudes, ações consideradas "naturais", sem justificativa prática que, numa época e lugar, são capazes de gerar posições divergentes e conflitantes.No filme Assunto de Meninas, o tema da homoafetividade constitui uma formação ideológica, como se percebe nas seguintes cenas:

Cena A:

Tori [a Paulie]: - Não sei o que faria sem você. (E se beijam)

Cena B:

Tori: - Em primeiro lugar, seja lá o que estejam dizendo, é mentira. Idiotice.

Colega de classe: - Mesmo que fosse verdade, seria tipo: "E daí? Não se metam".

Tori: - Mas não é verdade.

Colega de classe: - Minha tia é gay. E daí?

Tori: - Mas eu não sou.

Cena C:

Tori [a Mary]: - Sei que pode ser estranho pra você (...) você não conhece meus pais. São muito corretos e religiosos (...). Eu amo a Paulie. Você sabe como eu a amo.

Tori [a Mary]: - Existe uma vida que tenho que viver. O sonho que meu pai e minha mãe têm pra mim. E, mesmo que esteja me matando, nunca mais serei a mesma pessoa com ela. Nunca mais ficarei com ela. Jamais.

Cena D:

Tori e Paulie (em uma noite de amor)

Cena E:

Tori [a sua irmã Allison]: - Ally, adoro meninos, sou louca por garotos.

Nas cenas A, C e D o discurso é o de respeito ao homoafetivo. A personagem Tori diz amar sua parceira e a beija, transa com ela. Nos enunciados seguintes, seu discurso será de negação à homoafetividade, conforme transcrito nas cenas B e E. Na cena C, porém, o conflito ideológico aparece mais evidente. Tori afirma que seus pais são religiosos e teme confrontá-los, pois eles não aceitariam sua orientação sexual. Por isso, embora ame Paulie, nega esse amor e sofre para viver a vida sonhada pelos pais.

Formação discursiva

Todo discurso está ligado a um grupo, a uma instituição, pois pertence a ao coletivo. Segundo Pêcheux (1975), são as formações discursivas que, em uma formação ideológica dada, determinam "o que pode e deve ser dito" a partir de uma posição dada em uma sociedade.

Em Assunto de Meninas, na formação ideológica da orientação sexual, há duas formações discursivas distintas: uma que sustenta o discurso de não-respeito ao homoafetivo e outra que assume o discurso de respeito ao homoafetivo. Nesse trabalho, será enfocada a formação discursiva de não-respeito ao homoafetivo e os princípios subjacentes a essa formação, conforme as seguintes cenas:

·Tori confessa a Mary que ama Paulie e revela por que não pode manter sua relação homoafetiva.

1)Tori [a Mary]: - Sei que pode ser estranho pra você (...) você não conhece meus pais. São muito corretos e religiosos (...). Eu amo a Paulie. Você sabe como eu a amo.

Princípios:

A homoafetividade é estranha.

Pessoas corretas são contra a homoafetividade.

Pessoas religiosas são contra a homoafetividade.

·Paulie pergunta o que Mary acha de Vaughn, insinuando que ela teria um caso com Barnnet.

2) Paulie: - O que você acha da senhorita Vaughn?

Mary: - Ela é legal.

Tori: - Algumas meninas falam mal dela.

Paulie: - Ela e Bannet, com certeza, têm um caso.

Mary: Ela me pareceu legal. Quero dizer...normal.

Princípios:

Os homoafetivos são discriminados.

A homoafetividade é ilegal.

A homoafetividade é anormal.

·Grupo de meninas, após surpreender o casal de lésbicas na cama.

3) Allison [irmã de Tori]: - Que nojento!

Princípio:

A homoafetividade é nojenta.

Vendo sua irmã na cama com outra menina, Allison qualifica o ato de nojento. No uso comum, a palavra nojento significa repulsivo, imundo, repugnante. No discurso de não-respeito ao homoafetivo, a palavra nojento possui o sentido de ato homoafetivo, aquilo que causa náusea, desagradável e que naturalmente deve ser expelido.

Como podemos perceber, pela análise do funcionamento discursivo, as palavras não possuem um sentido literal, mas adquirem sentido apenas no seu uso concreto conforme as posições ideológicas em que são (re)produzidas. No filme Assunto de Meninas, as palavras destacadas nos enunciados possuem sentidos distintos daqueles do uso mais comum em que são empregadas. Conhecendo a situação concreta de seu uso, foi possível compreender seu sentido material, seu caráter ideológico e sua formação discursiva de não-respeito ao homoafetivo.

Considerações finais

Conforme vimos, o tema orientação sexual no filme Assunto de Meninas constitui uma formação ideológica, pois existem nele dois discursos conflitantes, ou seja, duas formações discursivas. O discurso de respeito ao homoafetivo, sustentado até a morte por Paulie, e o discurso de não-respeito ao homoafetivo, que é o predominante. Este discurso baseia-se nos princípios de que a homoafetividade é estranha, proibida, incorreta, feia, anormal, ilegal e nojenta. Além disso, o discurso desrrespeitoso considera a homoafetividade uma doença e um problema, acreditando que as pessoas que se interessam por indivíduos do mesmo  gênero precisam ser tratadas.

Vimos ainda que as palavras não possuem sentido em si mesmas, mas só o adquirem dentro de determinada formação discursiva. No caso do discurso de não-respeito ao homoafetivo, do qual nos ocupamos, mostramos que palavras corriqueiras como normal e legal, por exemplo, assumem o sentido de fora da norma, fora da lei, algo considerado ilegal e, portanto, crime, passível de punição, pela maioria que reprodutora do discurso dominante.

Referências

BRANDÃO, Helena H. N. Introdução à análise do discurso. 4 ed. Campinas:UNICAMP, 1995.

CARDOSO, Sílvia Helena Barbi. Análise do discurso no ensino do português. Mimeografado

LOURO, GUACIRA LOPES. Teoria queer: uma política pós-identitária para a educação. Rev. Estud. Fem.,  Florianópolis,  v. 9,  n. 2,  2001.  Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-026X2001000200012&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 16  Fev  2007. 

ORLANDI, Eni Puccinelli. A linguagem e seu funcionamento. As formas do discurso.4a ed. Campinas, SP: Pontes, 1996.

PÊCHEUX, Michel.Semântica e discurso. Uma crítica à afirmação do óbvio. 3ª ed.Trad. Eni Pulcinelli Orlandi, Lourenço Chacon Jurado Filho, Manoel Luiz. Gonçalves Corrêa e Silvana Mabel Serrani. Campinas (SP): UNICAMP, 1997.


Autor: Nayla Rodrighero Lima


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