Transgêneros e a mídia: o prazer clandestino na noite versus a inserção no mercado formal de trabalho



TRANSGÊNEROS E A MÍDIA: O PRAZER CLANDESTINO NA NOITE VERSUS A INSERÇÃO NO MERCADO FORMAL DE TRABALHO

 

Armando Januário dos Santos[1]

Marco Antonio Matos Martins[2]

 

Resumo: O presente estudo analisa três programas de televisão, veiculados em 2011, que enfocam o cotidiano dos/das transgêneros, em sua maioria profissionais do sexo, mas também suas inserções em outros campos de trabalho. O artigo confronta as abordagens feitas pela mídia acerca dos/das transgêneros e discute o seu papel social, que extrapola o uso de seus corpos como objetos de prazer. Os resultados apontaram para a produção e reforço de discursos de heteronormatividade na televisão brasileira, em especial pelos canais abertos ao público.

 

Palavras-chave: transexualidade, travestilidade, mídia, preconceito.

 

 

 

Algumas considerações iniciais

Entre os meses de agosto e outubro do ano passado, três reportagens foram ao ar em diferentes emissoras de TV com uma temática que chamou à atenção: o universo dos/das transgêneros. Colocou-se em evidência o desafio de ser um/uma transgênero numa sociedade marcada pelo preconceito. Entretanto, o leitor pode se questionar quem são os/as transgêneros e porque o fenômeno transgênero ocorre.

Pode-se afirmar que o termo transgênero abrange todas as pessoas que vivenciam a experiência de gênero de forma diversa, expressando identidades opostas ao sexo biológico, a exemplo de travestis e transexuais (JESUS, 2012). Por sua vez, o conceito de travestis aponta para “pessoas que vivenciam papéis de gênero feminino [ou masculino], mas não se reconhecem como homens ou como mulheres, mas como membros de um terceiro gênero ou de um não-gênero”. (JESUS, 2012, p. 9).

Já a definição para as transexuais remete a uma noção mais complexa. Para Bento, a transexualidade trata-se de uma

(...) dimensão identitária localizada no gênero, e se caracteriza pelos conflitos potenciais com as normas de gênero à medida que as pessoas que a vivem reivindicam o reconhecimento social e legal do gênero diferente ao informado pelo sexo, independente da cirurgia de transgenitalização[3]. (BENTO, 2008, p. 144-145),

 

            Para Bento, a transexualidade é um conjunto de ações praticadas pela pessoa transexual, a qual passa a vivenciar uma experiência. Em conformidade com este raciocínio, menciona que

(...) prefiro referir-me à “experiência transexual”, pois a transexualidade não é a pessoa. Quem vive esta experiência tem outras identidades que povoam suas subjetividades: trabalha, namora, pode ter religião, é membro de comunidades sociais múltiplas (família, grupos de interesse), como todo ser social. (BENTO, 2008, p. 145)

 

            Enfatizando: transgênero é um termo que abrange as categorias que subvertem as normas de gênero e o binarismo vigente na sociedade: homem-pênis, mulher-vagina. As referidas categorias são constituídas por drag queens, drag kings, crossdressers, transformistas, travestis e transexuais. Os objetos deste estudo são as duas últimas categorias, uma vez que as três reportagens em análise referem-se principalmente aos fenômenos socioculturais adstritos a essas duas identidades sexuais. Assim, quando se fizer referência a transgêneros aqui, apontar-se-á para travestis e transexuais.

            Nas experiências de travestis e transexuais femininas, é ímpar a questão da identidade, enquanto performance. As primeiras vestem-se e comportam-se como mulheres: o cabelo, a maquiagem, a forma de andar e falar, além da utilização de hormônios femininos e silicone no corpo demonstra isso; todavia, por motivos diversos, não desejam passar pela cirurgia de transgenitalização (JAIME, 2001). Já as transexuais, alegam ter nascido no corpo errado. Sendo mulheres, estão presas a um corpo masculino e vice-versa e sentem a necessidade de retirar o órgão sexual masculino, pois enxergam este como um “apêndice” (JAIME, 2001). Daí, o desejo de fazer a cirurgia de conversão de sexo.

            As experiências transexual e travesti vão para além do corpo, apesar deste ser o principal ponto de referência para a quebra do paradigma heteronormativo. No corpo começa a contínua transformação do gênero, o qual longe de estar pronto, finalizado, imerge em um processo complexo de construção e reconstrução: “this production of sex as the rediscursive ought to be understood as the effect of the apparatus of cultural construction designated by gender.” [4] (BUTLER, 1990, p. 11)

É no corpo onde se dá a montagem[5]. Tem-se assim, a noção da constante mudança do corpo enquanto condição básica para a experiência dos/das transgêneros. Quando se montam, adquirem uma nova identidade, a qual estava como que adormecida antes da montagem. E quando se desmontam, voltam ao adormecimento, podendo transitar entre os gêneros (Jaime, 2001). Além da montagem, a troca de nome representa um meio para transgredir as normas de gênero. Este novo nome é o elo, o encaixe entre o corpo modificado e a identidade que se almeja atingir. Seja de um artista famoso, seja escolhido pelos amigos, entre outras múltiplas possibilidades, o nome é um marco da identidade do/da transgênero. Ele pode ser trocado diversas vezes, afinal acompanha o corpo, que está em processo constante de transformação (JAIME, 2001).

            Feitas estas primeiras considerações, daqui por diante se processa a análise das três programações exibidas em 2011, confrontando-as com a exposição dos/das transgêneros enquanto corpos destinados à prostituição ou ao mundo do trabalho formal.

 

Programa I – Conheça os segredos do mundo dos profissionais do sexo

Exibido em 14 de agosto de 2011, na TV Bahia, no Rede Bahia Revista, este programa, com duração de aproximadamente quinze minutos, foi dedicado aos profissionais do sexo em geral, entre eles, as travestis foram destacadas, se prostituindo no bairro da Pituba, região nobre da cidade de Salvador. Nessa emissão, a atual presidente da Associação de Travestis e Transexuais de Salvador (ATRAS), Millena Passos, abordou seu trabalho junto às travestis, que consiste em ajudá-las na prevenção das Doenças Sexualmente Transmissíveis (DSTs), e também em servir de “psiquiatra e psicóloga”, no sentido de orientá-las e ouvi-las acerca das suas demandas no cotidiano da prostituição. Ao lado de Kelmanny Koutty, que se encontrava trabalhando no local, Millena descreveu de forma genérica a trajetória da maior parte das travestis e transexuais: “sofre preconceito em casa, foi escorraçada de casa, então vai pra prostituição. Aí o sonho ou de ficar aqui, se der sorte vai pra Europa, se voltar bem daqui a dois, três anos, a família abraça, beija tudo é jogo de interesses”. A seguir foi feito o perfil de Kelmanny: de acordo com o repórter, ela, então com “dezenove anos, é um exemplo de quem encontrou na prostituição um meio de vida”. Segundo Kelmanny, a prostituição “é o único caminho que tem, pra seguir”. Inquirida pelo repórter acerca da possibilidade de atuar em outro segmento profissional, respondeu: “não... na entrega de currículos, quando via que era travesti não aceitavam. E outras coisas mais”.

Além dos preconceitos, familiar e social, a violência contra as travestis e transexuais foi colocada em evidência. Rannela Márcia, travesti e profissional do sexo, informou: “a partir do momento que você está aqui à noite, no meio da rua, você está exposta a qualquer tipo de risco(...)”. Enquanto ela ainda falava, a transfobia[6] se fez presente: um homem, trafegando com uma moto, passou próximo à travesti e ao repórter gritando contra a primeira e se referindo a ela com agressividade. O repórter registrou o fato como “gratuita agressão verbal, sem nenhum tipo de motivo”.

            Referente ao público das travestis e transexuais, Adriana Piazza, empresária que atua na divulgação pela internet de vídeos e ensaios fotográficos dos profissionais do sexo, afirma: “eu acho que 90% do público das travestis é o mesmo público das meninas. São homens heteros, homens casados ou não, mas que se dizem heteros. Eles não se chocam, eles não se ofendem, eles não se acham homossexuais por sair com uma travesti”.

Finalizando a participação das travestis e transexuais no programa, o trabalho de Alice D’Castro foi posto em evidência. Através de cirurgias plásticas e terapia hormonal[7], ela, de acordo com a reportagem, é “requisitada por muitos homens em Salvador”. Alice reforça o discurso de Adriana, mencionando que os homens que saem com ela “tem que frisar que é homem (...) eles fazem questão de frisar que é homem e tem vontade de sair com uma transex[8] (..). Ele quer sair, mas com a consciência que vai deixar ele menos homem, entendeu? Não é isso. Acho que tudo [é válido] em nome do prazer”. Em concordância com a frase anterior, o sexólogo Ricardo Cavalcanti, procurado pela equipe de reportagem, comentou: “olhe, sexo tem uma chave (...). Se os dois estão dentro de um determinado local reservado e tem relações sexuais, tenha como quiser. Tenha como quiser do jeito que quiser. A gente não pode concordar com o crime, nem com a doença. Salvo isso, viva a sexualidade.”

Programa II – Do Outro Lado da Noite

            Três dias após a exibição do programa antes referido, a Rede SBT enviou para o ar um documentário, com cerca de quarenta minutos, focando essas mesmas identidades sexuais. Para uma melhor apreensão do seu conteúdo, apresentamo-lo a seguir, dividido em quatro partes.

Na primeira ficou evidenciado qual seria o foco do noticiário: a ênfase das travestis e transexuais enquanto profissionais do sexo, mesmo sendo apresentadas algumas experiências nas quais atuavam em outros segmentos profissionais. Inicialmente, as transgêneros foram descritas pelo repórter como “personagens exóticos. Para determinados olhares, indivíduos que fascinam. Objetos de desejo para brasileiros insuspeitáveis”, apresentando como dado que “82% dos homens que procuram os[9] travestis são casados e com filhos”. Com uma música de fundo, que sugeria um momento de suspense, os corpos das transgêneros eram exibidos, ao passo que relatavam o cotidiano do seu trabalho: “casado com certeza. E ainda fala bem assim: ‘não vai deixar cair o fio de cabelo no meu carro, porque eu sou casado, daqui a pouco vou encontrar minha mulher’”. Um cliente assíduo explicou a razão de procurar as transgêneros com frequência: “fazem o que mulher não costuma fazer, entendeu? O sexo oral dos travestis, não conheci uma mulher que faça melhor”. Em seguida, a sexóloga e fundadora do Projeto Sexualidade do Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo (USP), Carmita Abdo, explicou o motivo do desejo sexual de homens por transgêneros: “esses homens necessitam da penetração feita por alguém que tenha uma aparência feminina e um comportamento feminino, apesar de ser do sexo, do gênero masculino. Ele [o cliente] pode ser considerado um bissexual, na acepção da palavra, já que se relaciona com homens e mulheres”. Estes primeiros dez minutos foram finalizados com outro dado: “110 travestis são mortos todos os anos no Brasil”, ilustrado por cenas de assassinatos de transgêneros e de agressões que as últimas cometem contra um homem em Salvador.

            O segundo bloco é aberto com o depoimento da psicóloga social Valéria Melki Busin, descrevendo como a sociedade se comporta frente às transgêneros:

A gente, como sociedade, empurra essas pessoas pra rua (...) uma boa parte vai pra prostituição, mas não são todas, muitas conseguem com um esforço sobre-humano viver de outras profissões. Com todo o preconceito que tem, ainda conseguem, mas a gente empurra essas pessoas pra rua, pra prostituição, pra um submundo e depois a gente exige que elas tenham valores, ética. E elas têm, só que a gente nunca reconhece.

 

            Em seguida, foi exibida uma reportagem de 1987, realizada por Goulart de Andrade, mostrando a abordagem policial de uma transgênero. Perguntado se na época o preconceito contra as transgêneros era maior, respondeu da seguinte forma: “muito mais. Eles eram apedrejados (...)”. A entrevista termina e em mais um giro pela noite paulista, as travestis são mostradas exercendo a prostituição, enquanto o repórter comenta: “os documentos registram nomes masculinos, mas os travestis se apresentam com formas femininas. Defendem, inclusive, que não devem ser chamados de os travestis, mas as travestis”. Ainda assim, logo a seguir, quando narra a história da professora de Estudos Sociais Gabriela, da Prefeitura de Cajamar, na Grande São Paulo, o repórter afirma: “Foi o primeiro travesti a mudar de nome na carteira de identidade”. Na transição do cotidiano de Gabriela para a situação vivida pela transgênero Penélope Jolie, mais um dado foi evidenciado: “metade dos travestis brasileiros não tem o ensino fundamental”. Referindo-se a Penélope, o repórter informou: “(...) mas desde os 15 anos já assumiu sua condição de homossexual”. A reportagem mostrou a vida de Penélope: ela não tem emprego fixo e deseja conseguir um; enquanto isso não acontece, trabalha como maquiadora e dançarina de boate. A seguinte experiência foi realizada então: com uma câmera escondida, Penélope saiu em busca de um emprego formal. Foi recebida com aparente naturalidade nos locais onde deixou seu currículo, mas descreveu a impressão que teve após a experiência vivida: “os lugares e os olhos das pessoas não vêem travesti como boas pessoas na sociedade”. Ela entregou 30 currículos e a informação que recebia era quase sempre a mesma: “deixe-me o currículo que, breve, entraremos em contato, se for aprovada”. A psicóloga social Valéria Melki Busin opinou acerca da busca de Penélope Jolie por uma oportunidade formal de trabalho: “é uma excelente surpresa saber que uma travesti sai à rua e vai procurar emprego e não é humilhada”. Esse bloco é finalizado apresentando mais um índice: “71 por cento dos travestis não tem parceiro fixo”.

            Flávia de Araújo abriu o terceiro momento do documentário, trazendo outra vivência. Segundo a reportagem, “ela mora com Daniel Mendes há oito anos”. Ela trabalha de segunda a sábado como recepcionista da Escola de Teatro da Prefeitura de São Paulo. Foi aprovada via processo seletivo e tem uma vida bastante comum: sai pela manhã com o marido para o trabalho e só retorna à noite. Perguntado se se considera homossexual, Daniel respondeu negativamente, tendo sua resposta reforçada pela parceira: “o nosso relacionamento é hetero”, e prossegue, “porque na verdade eu vejo na Flávia uma pessoa feminina. E eu não sinto atração em olhar o perfil de um homem (...) se você olhar observar bem, você vai ver que ela tem o perfil de mulher. O que uma mulher faz, ela faz”.   Em seguida, Sérgio Luiz de Souza, descrito no documentário como “ex-travesti”, narrou sua história de vida: aos 12 anos, segundo ele, passou a ter

(...) comportamento homossexual, usar roupas de mulher (...) e aí coloquei na minha cabeça que eu era uma garota, uma menina. Com 15 anos, comecei a colocar silicone. Com 17 anos, fui pra Europa (...) caí na droga, em heroína, onde voltei para o Brasil, me revoltei, acabei com todo o meu dinheiro. Comecei a roubar..

 

Perguntado sobre quem é hoje, a resposta veio na terceira pessoa:

O Sérgio é uma nova criatura. Hoje, o Sérgio tem uma vida plena com Jesus. Hoje o Sérgio é um novo homem. Deus me projetou pra ser um homem, não ser uma mulher (...). Hoje eu fico feliz, que Deus me deu uma oportunidade, pelas orações da minha mãe, pois estou vivo. Hoje eu falo grosso, estou parecendo um homem, eu não estou parecendo, eu sou um homem[10]”.

 

            O último trecho do documentário se inicia com a fala de uma travesti não identificada: “acho que sou um Pokemon. Quando era novinha me chamavam de viado. Depois virei uma bichinha. Depois travesti. Agora para chegar ao topo da evolução tenho que virar Pikachu[11]. A reportagem “continua mostrando o drama e vida dos travestis brasileiros” e traz a opinião do bispo de uma igreja evangélica:

Nós, como cristãos, amamos os travestis, temos um carinho todo especial, oramos pela vida deles, a gente não concorda com algumas posturas que criam problemas pra gente. Eu acredito que o travesti, ele não nasceu travesti. O travesti, ele talvez tenha passado por alguma dificuldade, algum meio que interferiu na escolha dele.

 

O programa chegou a sua última entrevista com a fala de Sérgio, a “ex-travesti” mencionada no início. O repórter mostrou uma foto, na qual Sérgio era Evelin, nome utilizado quando era travesti, e perguntou qual a diferença entre aquela foto e o momento atual. A resposta foi: “a diferença que esse tava morto e eu to vivo agora. Com Jesus.” Finalizando, o repórter afirmou: “a orientação sexual não pode jamais ser usada para se medir a dignidade e o caráter de cada cidadão. Como qualquer brasileiro, esses seres humanos também tem seus direitos e seus deveres (...)”.

 

Programa III – Transexualidade

Em 18 de outubro, o programa A Liga, da TV Bandeirantes, expôs em torno de 1 hora e 10 minutos as transgêneros. Para isso, utilizou basicamente três ferramentas: suas histórias de vida, as explicações do deputado federal e professor de Cultura Brasileira, Jean Wyllys e o cotidiano de uma transgênero que trabalha em um salão de beleza.

“Transexualidade” começa com uma afirmação real em paralelo a um questionamento: “o senso comum diz que existe apenas dois gêneros sem variações – um masculino e um feminino. Mas, o que acontece quando você nasce de um jeito, mas se enxerga de outro?” Logo depois, as seguintes estatísticas foram apresentadas: 1 a cada 30 mil homens e 1 a cada 100 mil mulheres não se sentem confortáveis com o corpo que vieram ao mundo, há cada 15 dias uma pessoa troca de sexo no Brasil, e entre 2008 e 2010 foram realizadas 300 cirurgias de transgenitalização.

            Na Lapa, município do Paraná, a história de Brenda, mulher transexual[12]e professora do Ensino Médio, foi exibida. Ela afirmou se sentir diferente dos outros garotos desde pequena:

Eu não conseguia ser menino, não conseguia ser, né, por mais que eu tentasse. Que eu queria ser igual a eles, mas eu não conseguia (...). O meu medo era de magoar os meus pais, de fazer com que eles sofressem, então eu tentei com todas as minhas forças (...) tanto que com 11 anos eu tentei ir para o seminário”.

 

Brenda não se assumiu de imediato; quando viu que era impossível se identificar com o sexo masculino, foi gradativamente modificando o seu corpo, pois não se sentia bem com ele. Ela tenta explicar acerca da sua identificação com o gênero oposto ao do nascimento: “Até pra quem é, é difícil de entender, porque você não consegue entender o porquê. Simplesmente, você é uma mulher, você é menina (...). Aí você se depara com um corpo que não é teu né (...). É um corpo estranho, né...”. Sobre identidade de gênero, Jean Wyllys informou: “pra a gente entender a identidade de gênero, é preciso a gente falar antes de sexo biológico”. A seguir, explica que o sexo do nascimento pode ser um, mas a forma como a pessoa se perceba pode ser outra, utilizando como exemplo um homem que nasceu com o sexo masculino, mas se percebe como feminino. Neste caso, pode-se dizer que a identidade de gênero é feminina. Ainda de acordo com Wyllys, a identidade de gênero não é determinada biologicamente, mas sim através de uma relação entre natureza e cultura. Neste caso, para Wyllys, o sexo de nascimento, as relações familiares e os valores aprendidos com o mundo circundante constituiriam exemplos de natureza e cultura.

            A travesti Renata saiu de Manaus e foi em busca de emprego na capital paulista. Vítima do preconceito conseguiu oportunidades apenas como profissional do sexo e cabeleireira. Discriminação não foi algo que Renata sofreu apenas em São Paulo: a sua mãe expulsou-a de casa, quando tinha 15 anos, um de seus irmãos a agrediu fisicamente. Acerca disso, Jean mencionou que “as famílias tem de estar conscientes de que a identidade de gênero pode se manifestar em desacordo com o sexo que a natureza deu, ela tem que estar preparada para isso, porque em geral a família maltrata por demais o garoto ou a garota”.

A hormonoterapia também foi evidenciada ao longo do programa. Para transformar seu corpo, Renata toma hormônios, como anti-andrógeno, progesterona e estradiol, todos os dias. São estes que lhe proporcionam a forma feminina. Tanto ela como Brenda tomam hormônios e isso faz com que os seus corpos continuem com uma silhueta feminina. Além disso, ambas colocaram silicone nos seios e nos quadris. Aí outro problema: o silicone utilizado em Brenda foi industrial, que não é apropriado para implantes em seres humanos e pode trazer sérios riscos a saúde, levando inclusive a morte.

Destacou-se também a afirmação e a identificação das transgêneros. Brenda disse que quando chega o início do ano letivo, conta para os alunos sobre a sua condição sexual: “olha, vocês vão trabalhar com uma professora diferente. Com uma professora transexual.” Já Juliana, no dia em que se submeteu a cirurgia de troca de sexo, mencionou assinar “com raiva” seu nome de batismo, pois para ela, esse nome não a identifica. Acerca da cirurgia, um detalhe importante informado durante a exibição do documentário é que a operação de transgenitalização do sexo masculino para o feminino é amparada por lei, entretanto, o contrário não.

Caminhando para o fim do programa, o exercício da prostituição foi questionado mais uma vez pela equipe de reportagem. Perguntada sobre o aspecto positivo da prostituição, Renata respondeu: “a quantidade de dinheiro que a gente ganha”, e sobre o lado negativo, a resposta foi: “você é vaiada, é xingada (...) você é alvo de deboche do povo”. Sobre a não aceitação por parte da família, alegou que, caso sua mãe não a tivesse expulsado de casa, ela não estaria se prostituindo: “eu seria sim travesti, porque eu sempre senti que eu era transex/travesti. Mas, não estaria me prostituindo, vendendo meu corpo. Jamais”. Jean Wyllys menciona que as histórias das transgêneros com relação à família quase sempre são as mesmas: os pais percebem a não-identificação do garoto com seu sexo biológico e o reprimem, chegando a espancá-lo. O garoto por sua vez, continua se comportando na ausência dos familiares conforme sua identificação de gênero e, por fim, os pais o expulsam de casa. Daí em diante, ele não consegue estudar, pois na escola sofre bullying. A grande maioria dos empregos não o aceita. “Ele não tem colocação no mercado de trabalho. Então, o que resta pra ele é se prostituir”. Acerca desta dificuldade de conseguir inserção no mercado formal de trabalho, a travesti Adriana afirma: “todas são burras, todas são vulgares, todas são baixas. É o que eles [a sociedade] acham. Mas, no submundo, eles vêm procurar a gente”.

            Concluindo o documentário, Flávia de Araújo, que também participou do segundo programa antes descrito, contou rapidamente sua história de vida. Apesar de ter tido a oportunidade de estudar, se prostituiu por cinco anos na Europa, pois conforme ela: “por mais que eu tinha conhecimento, alguns estudos, eu não tinha oportunidade de trabalho. As pessoas sempre fechavam as portas pra mim”. Vladimir, professor na faculdade onde Flávia cursa Letras, afirma:

Eu falei pra Flávia, olha Flávia eu não digo que, por exemplo, vai 10% daquelas que fazem [prostituição] fazem por que gostam, mas 90% fazem por falta de oportunidade na vida e a gente percebe isso. (...). Eu acho que tem que dar uma oportunidade, sim. Certo, conheço várias empresas que dão essa oportunidade também, mas eu acho que é muito importante uma política que pense nisso[13].

 

Análise de dados

            O Programa I centrou-se exclusivamente nas transgêneros enquanto profissionais do sexo e na discriminação que sofrem. Percebeu-se que a matéria do documentário em questão estava bastante voltada para mostrar o universo da prostituição e as particularidades de travestis e transexuais ficaram ofuscadas por isso. Na verdade, o título já era indicativo de qual seria a área de concentração da reportagem.

            O Programa II foi além da “profissão noturna” exercida pelas transgêneros. A primeira vista, seu tema apontava para um foco parecido ao do Programa I. Entretanto, ao mostrar o depoimento de uma psicóloga social, bem como a vida de uma transgênero que não atuava como profissional do sexo, além de outra que buscava uma oportunidade no mercado formal de trabalho, tentou alargar a visão do telespectador para o fato de que as transgêneros são indivíduos que merecem respeito. Trouxe também para a sociedade brasileira, números concernentes a transfobia e aos baixos índices de educação atingida pela população transgênero, dados concretos e importantes para que se estabeleçam mecanismos de redução da desigualdade e da vulnerabilidade que travestis e transexuais enfrentam, seja através de políticas públicas, seja através da parceria entre governo e todas as organizações da sociedade civil.

Por outro lado, a perspectiva heteronormativa se fez presente ao longo de todo o documentário. Mesmo informando ao telespectador que as travestis defendem ser chamadas de “as”, em vez de “os”, o programa se referiu as transgêneros quase que durante toda a sua duração utilizando a declinação no masculino, frisando a dimensão masculina do corpo, como se este ofuscasse a identidade de gênero, algo que no caso das transgêneros é exatamente o contrário. Além disso, mostrou um homem, que se diz “ex-travesti”, afirmando ser uma “nova criatura” por ter retornado ao ideal linear heteronormativo, que prega um alinhamento entre sexo, gênero, desejo e prática, difundindo o sofisma da religião como meio para que as transgêneros abandonem sua condição e voltem a exercer a sua sexualidade de acordo com os padrões naturalizados e impostos pela sociedade.

            Algo que chama a atenção de modo ímpar no Programa II foi a fala do repórter quando menciona a transgênero Penélope Jolie tendo afirmado sua homossexualidade desde a adolescência: “(...) mas desde os 15 anos já assumiu sua condição de homossexual”. Ocorre que homossexualidade e transgeneralidade são termos que apontam para comportamentos sexuais distintos. Se as pessoas abarcadas sob a primeira categoria não reivindicam uma identidade de gênero em oposição ao sexo biológico, as da segunda podem buscar tal reconhecimento, algo que é a essência da experiência transexual.

            Em outro trecho do Programa II, na fala de Sérgio, “ex-travesti”, reforçou-se a ideologia heteronormativa, bem como o patriarcado, presentes na sociedade atual: “hoje eu falo grosso, estou parecendo um homem, eu não estou parecendo, eu sou um homem”. Falar com um tom de voz grave para Sérgio é ser homem, demonstrar liderança, ser o macho-alfa. Fica claro que apesar do referido programa ter se esforçado em registrar as transgêneros como estando para além da prostituição e marginalidade, a reportagem finda por exibi-las numa posição desprivilegiada: são tratadas com o artigo definido na forma plural e masculina, “os”. Desta forma, reforça a generalização pertencente ao senso comum: os travestis são homens de orientação homossexual, que se travestem como mulheres. Assim, refletir acerca do papel da mídia brasileira faz-se necessário: ela reforça a heteronormatividade, restringindo os papéis sociais aos sexos biológicos – masculino ou feminino. Ou se pertence ao primeiro, ou ao segundo. Qualquer tentativa de transgredir essa norma é encarada como aberração, algo a ser destinado ao submundo. Com isso, volta-se a um passado recente do ponto de vista histórico: a Era Vitoriana, iniciada no século XIX, onde, após a subida da Rainha Vitória ao trono inglês, diversas mudanças no campo da sexualidade foram instituídas, a exemplo da sexualidade vista como legítima apenas no “quarto dos pais”. Sendo as outras formas de sexualidade não-reprodutivas, condenadas à clandestinidade e à anormalidade:

E se o estéril insiste e se mostra demasiadamente, vira anormal (...) se for mesmo preciso dar lugar às sexualidades ilegítimas, que vão incomodar noutro lugar: que incomodem lá onde possam ser reinscritas, senão nos circuitos da [re]produção, pelo menos nos do lucro [prostituição]. (FOUCAULT, 1988, p. 10).

 

Esta pesquisa verificou no Programa III uma maior harmonia na exibição das transgêneros para além dos seus corpos utilizados como instrumentos do prazer e de lucro pela prostituição e poucos momentos nos quais o discurso heteronormativo foi reforçado. A exemplo do Programa II, também houve, apesar de menos frequente, momentos nos quais o artigo definido plural e masculino foi utilizado no tratamento das transgêneros. Entretanto, a discussão feita ao longo da exibição foi enriquecedora, em que pese ter discutido durante o seu curso, a inserção das transgêneros no mercado formal de trabalho. Além disso, foram abordados aspectos da saúde das populações travesti e transexual: a necessidade do tratamento diário a base de hormônios para manter o corpo feminino, os riscos que muitas correm ao se submeter a aplicações de silicone industrial, enfim, a necessidade de manter o corpo em processo dinâmico de transformação não por mera vaidade, mas antes pela certeza de ter nascido em um corpo incompatível com a identidade de gênero, e que por isso mesmo precisa ser modelado e remodelado.

            Finalizando a análise do Programa III, este voltou a frisar no término a questão central deste estudo: a inserção das transgêneros no mundo formal do trabalho. Criticou o preconceito existente na ocupação de posto no mercado privado de trabalho, contudo, diferente do Programa II, não as mostrou como vítimas indefesas deste processo de exclusão. Pelo contrário, abordou situações de transgêneros vivenciando outras profissões, que não a do sexo e aquelas associadas ao corpo e a arte – esteticista, maquiadora, cantora, dançarina, entre outras – a exemplo da transgênero Flávia, que cursava a universidade e trabalhava como recepcionista à época em que o documentário foi realizado. Infelizmente, porém, trouxe uma realidade ainda bastante desfavorável para a população transgênero: a grande maioria é encarada pela sociedade como anormais e indignas de exercer um papel diferente do que o senso comum acredita ser o adequado aos seus corpos, ou seja, o de prostitutas.

 

A guisa de conclusão

            No campo da sexualidade, há um longo caminho a ser percorrido pela sociedade brasileira na desconstrução de conceitos e estereótipos ainda vigentes na contemporaneidade. Infelizmente, o Brasil ostenta a liderança mundial de assassinatos das transgêneros: segundo o Grupo Gay da Bahia (GGB), dos 266 assassinatos ocorridos contra a comunidade de lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros (LGBT) em 2010, 37% foram de transgêneros, ou seja, 98 assassinatos. Isso comprova a falta de ações afirmativas que contemplem essa população, a exemplo da ausência de leis específicas que criminalizem a transfobia.

            Os três programas analisados nesta pesquisa confirmam o discurso de heteronormatividade atuantes no âmbito social brasileiro. Entre eles, apenas o último demonstrou maior discussão com a sociedade para além da utilização dos corpos das transgêneros enquanto objetos de satisfação sexual. Os dois primeiros, mesmo tentando denunciar o ódio da sociedade contra travestis e transexuais, acabaram por reforçar através de um discurso sutil, o preconceito e a imposição da norma heterossexual como comportamentos naturais. Disto percebe-se que a maior parte da mídia no Brasil é utilizada como instrumento de poder e aparato ideológico para justificar práticas de exclusão.

            Ao final deste estudo verifica-se a necessidade de maiores discussões acerca do papel da imprensa, em especial dos documentários exibidos em canais abertos no Brasil, ao abordar questões envolvendo a diversidade de gênero. As transgêneros mesmo tendo conseguido cargos na administração pública – a transexual Leocrete do Brasil é vereadora do município de Salvador e a travesti Paulette Furacão é Coordenadora LGBT da Secretaria Estadual de Direitos Humanos – são alvo de intensa discriminação. Neste sentido, a frase final de Jean Wyllys no Programa III é emblemática:

Existem grupos organizados e muito bem organizados e com bastante dinheiro que querem conservar a sociedade como ela está, porque dilatar os direitos, assegurar os direitos ao conjunto da população, contemplar populações vulneráveis implica em perdas de privilégios desses grupos e esses grupos são muito bem organizados e eles querem se fazer passar por maioria. Se a pessoa tem informação de qualidade, educação de qualidade, ela vai compreender que é uma questão de direito.

 

Referências

 

BENTO, Berenice. O que é transexualidade? São Paulo: Brasiliense, 2008.

BUTLER, Judith. Gender trouble: feminism and the subversion of identity. New York: Routledge, 1990.

Conheça os segredos do mundo dos profissionais do sexo. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=_H4hqJULB1A. Acesso em 12 abr 2012.

Do outro lado da noite: parte 1/4. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=wEmEiAPvDzQ. Acesso em 12 abr 2012.

Do outro lado da noite: parte 2/4. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=xzXmLpCH47o&feature=relmfu. Acesso em 12 abr 2012.

Do outro lado da noite: parte 3/4. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=-zmBV9mb2fQ&feature=relmfu. Acesso em 12 abr 2012.

Do outro lado da noite: parte 4/4. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=ig_jG8A1LNI&feature=relmfu. Acesso em 12 abr 2012.

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1988.

JAYME, Gonzaga Juliana. Travestis, transformistas, drag-queens, transexuais: identidade, corpo e gênero. Belo Horizonte: PUC, 2001 (Comunicação apresentada no VIII Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais).

JESUS, Jaqueline Gomes de. Orientações sobre a população transgênero: conceitos e termos. Brasília: Autor, 2012.

Travesti e transexual. Disponível em:http://www.youtube.com/watch?v=ndeZKES7hec. Acesso em: 15 abr 2012.


[1] Pesquisador do Núcleo de Estudos de Gênero e Sexualidade / Nugsex Diadorim da Universidade do Estado da Bahia – UNEB. Graduando em Psicologia e graduado em Letras com Inglês pela mesma instituição. Pós-graduado em Língua, Linguística e Literatura pela PADMA Consultoria, Pós-graduação e Projetos Educacionais. Professor de Inglês e Redação do Colégio Estadual Manoel de Jesus, Simões Filho Professor / monitor de Inglês e Literatura Brasileira no Projeto Social Universidade para Todos, Salvador. E-mail: [email protected].

[2] Vice-Coordenador do Núcleo de Estudos de Gênero e Sexualidade / Nugsex Diadorim da Universidade do Estado da Bahia – UNEB. Professor Assistente de Antropologia do DCH – Campus V pela mesma instituição. E-mail: [email protected].

[3] Cirurgia de transgenitalização consiste na intervenção operatória visando alterar o sexo anatômico. Conhecida também como cirurgia de troca de sexo ou cirurgia de conversão de sexo.

[4] “Esta construção do sexo como algo contra-discursivo deveria ser entendida como o efeito do aparato da construção cultural designado por gênero” (tradução nossa).

[5] Expressão utilizada para definir a ação de reconstruir o corpo nos moldes das performances de gênero desejadas, para que, daí se possa exibi-lo, e com isso, afirmar sua própria identidade (JAIME, 2001).

[6] Conforme Jesus (2012, p. 7), “tem sido utilizado o termo ‘transfobia’ para se referir a preconceitos e discriminações sofridos pelas pessoas transgênero, de forma geral”.

[7] Conforme Bento (2008), terapia hormonal ou hormonoterapia são termos referentes ao tratamento com base em hormônios que visa o desenvolvimento do corpo para a aquisição do perfil do gênero desejado, Exemplo: uso de hormônios por parte de alguém do sexo masculino que deseja adquirir características físicas de uma mulher e se tornar assim uma mulher transexual.

[8] Abreviação de transexual.

[9] Doravante iremos grifar nas falas todos os denotativos que utilizam a variação gramatical no masculino para designar as travestis e transexuais, posto que essa forma de tratamento será analisada ao final do artigo.

[10] O grifo é nosso. Observe a incerteza de Sérgio quanto a sua identidade de gênero.

[11] A travesti comparou o trânsito de gênero que percorreu com a marca japonesa Pokémon, difundida no Brasil através do desenho animado homônimo. Neste, jovens cuidam de criaturas em processo de evolução, os pokemons. A trama ocorre em torno de Ash, um garoto que deseja se tornar um mestre dos pokemons e para isso conta com a ajuda de Pikachu, seu mais evoluído e poderoso Pokemon..

[12] Mulher transexual, transexual feminino ou Male to Female (MtF) são termos referentes a toda pessoa que tendo nascido com o sexo masculino, lança mão de diversos meios, a exemplo do tratamento com hormônios, buscando ser reconhecida tanto social quanto legalmente como pertencente ao sexo feminino, por se sentir identificada com o último (BENTO, 2008, 146-148).

[13] O grifo é nosso.


Autor: Armando Januario Dos Santos


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