TEREZA BATISTA E AS PROSTITUTAS COMO INTEGRANTES DE UM GRUPO SÓCIO-CULTURAL MARGINALIZADO



TEREZA BATISTA E AS PROSTITUTAS COMO INTEGRANTES DE UM GRUPO SÓCIO-CULTURAL MARGINALIZADO 

Armando Januário dos Santos[1] 

Resumo: Neste artigo, as prostitutas são compreendidas como integrantes de um grupo sócio-cultural de práticas marginalizadas, tendo em vista a discriminação a elas imposta. No sentido de problematizar os signos de perdição e pecado atribuídos às referidas por parte do senso comum, foi feito um panorama histórico acerca da prostituição, desde a Antiguidade Clássica até a contemporaneidade, partindo do mundo greco-romano, passando pelas discussões estabelecidas acerca da sexualidade, do filósofo francês Michel Foucault (1926-1984) e chegando a obra de Jorge Amado (1912-2001), Tereza Batista Cansada de Guerra (1972). Pretende-se, deste modo, realizar um estudo sócio-histórico e cultural, demonstrando através da experiência vivida por Tereza Batista, que as prostitutas são seres humanos detentores de sua própria cultura.

 

Palavras-chave: prostituição, história, cultura, sociedade.

 

 

Introdução

 

Desde os primórdios, a prostituição se fez presente no contexto das civilizações. Seja na Antiguidade Clássica marcando a cultura greco-romana, seja na Idade Média passando pela Idade Moderna, até chegar à contemporaneidade, aquela que é considerada pelo senso comum como “a profissão mais antiga da humanidade” possui uma existência incontestável nas diversas camadas sociais, em quase todos os locais do globo.

Ao longo dos séculos, as prostitutas ficaram famosas tanto pela sua perícia no intercurso sexual, quanto por utilizar esta prática para fins secretos. Exemplo disso foi a dançarina indiana Mata Hari, a qual despertou a paixão em muitos homens e que na verdade era Margaretha Gertuuida Zelle, espiã holandesa a serviço do governo alemão quando da Primeira Guerra Mundial (História Viva, 2010, p. 29).

Na Grécia Antiga, “as relações sexuais pagas com mulheres (...) não eram condenadas. (...). Sem falsos pudores, os clientes ficavam satisfeitos (História Viva, 2010, p. 30). Existiam basicamente três categorias de prostitutas no mundo grego: as pornai, na língua grega, “mulheres à venda”, que representavam a camada mais baixa, formada por escravas sexuais. Outro grupo eram as prostitutas que serviam em banquetes. Eram belas e possuíam conhecimento da flauta ou mesmo dançavam. Contratadas, sua função era promover a alegria dos convidados de um banquete. Havia também aquelas que eram autônomas, as hetairas. Prostitutas de luxo, elas exerciam o ofício sem precisar de nenhum agenciador. Comercializavam seus corpos a clientes ricos, por dia, mês, ou até mesmo por ano. Estavam presentes em cerimônias importantes ao lado de personalidades e isso não despertava espanto da sociedade em geral. Exemplo desse segmento refinado de prostitutas foi Aspásia de Mileto, hetaira que viveu durante 16 anos ao lado de Péricles, considerado o pai do regime democrático em Atenas (idem, p. 31).

            Caso o assunto seja a prostituição, comparando-se a democracia brasileira com a grega, a última estaria muito à frente. Prova disso é o sistema tarifário dos bordéis, que era estipulado pelo Estado, o qual além de fixar, também mantinha fiscalização constante nas referidas casas de prostituição com uma dupla finalidade: verificar se as taxas eram de fato cumpridas e se as prostitutas eram mesmo escravas compradas legalmente e não mulheres livres (História Viva, 2010, p. 30).

            Os romanos utilizavam suas tabernas como locais de prostituição. Era comum na Roma Antiga uma hospedaria ter como anexo um bordel. Em Pompeia, cidade devastada pelo vulcão Vesúvio, a principal casa de prostituição ficava ao lado do hotel de Sitilius, funcionando para oferecer algo mais do que apenas alimentação e abrigo aos hóspedes. Este sistema – hospedaria e bordel juntos – era tão popular, que, de acordo com as leis romanas, donos de taberna e albergaria eram considerados praticamente como cafetões – na atualidade, segundo o senso comum, homens ou mulheres que agenciam profissionais do sexo. Havia também uma espécie de diferenciação social: frequentavam bordéis cidadãos comuns, a exemplo de pequenos comerciantes, tropeiros, entre outros, ao passo que os membros de posição mais alta na sociedade não frequentavam estes ambientes, os quais normalmente se encontravam em condições lamentáveis. Ademais, não era apenas nos bordéis onde se encontravam prostitutas; elas podiam trabalhar nas ruas, nas arenas e em anfiteatros. O caso mais famoso de prostituição em Roma foi o de Vistilia, esposa do governador da Gália narbonesa. Ela chegou a solicitar a renunciar do seu posto para se prostituir. Tal pedido foi negado pelo Senado e ela foi deportada para uma ilha (História Viva, 2010, p. 34-37).

            Mesmo com toda a rigidez moral da Igreja Católica na Idade Média, as prostitutas exerceram sua profissão. Se em 1254, o rei Luís IX, baixou um decreto ordenando a expulsão de todas as moças públicas das cidades e aldeias e o confisco dos seus bens, dois anos depois, ele próprio suavizou a pena, afirmando que era necessário apenas expulsá-las das ruas onde os religiosos andavam, reduzindo assim a prostituição a alguns locais das cidades, demonstrando a incapacidade do poder público em eliminar o comércio do corpo ou mesmo inserir as cortesãs na vida social em outras profissões (História Viva, 2010, p. 38-39). Já na Idade Moderna, os reis franceses modificaram a maneira do Estado encarar as prostitutas. Em 1560, Henrique II ordenou o fechamento dos bordéis em todos os locais do reino. A repressão aumentou ainda mais em 1684, quando Luís XIV tornou a prostituição um crime, ordenando a prisão e mesmo punições duras, como surras de chicote em público. Porém, tais perseguições não surtiram os efeitos desejados. Após a morte do “Rei Sol”, como Luís XIV era conhecido, as prostitutas chegaram a 25 mil trabalhando na cidade. (idem, p. 40-41).

            O século XVIII na França entrou para a história também como o período do apogeu das prostitutas de luxo e da nobreza mergulhada na depravação. Apesar das leis de Luís XIV continuar vigentes, não havia fiscalização por parte dos órgãos públicos, o que facilitou o acesso as cortesãs. Prova disso foi o caso do Príncipe de Conti, que se enamorou pela dançarina Testard e o duque Luís Felipe II de Orléans, o qual por diversas vezes desfrutou dos serviços sexuais intermediados pelas “fornecedoras”, como eram denominadas as grandes cafetinas, frequentadoras das altas rodas da sociedade, a exemplo das madames Brissaut, La Mule, Varenne, Carlier e La Gourdan, que se tornou famosa por agenciar Du Barry, uma jovem mais tarde amante do rei Luís XV. Se neste momento da história, a república brasileira fosse mais uma vez comparada concernente a temática prostituição, desta feita com a França da Idade Moderna, a última estaria bem à frente. Comprovação disso foi o projeto desenvolvido por Restif de La Bretonne, um dos maiores escritores eróticos do século XVIII. Ele desenvolveu uma proposta de regulamentação, limitando a prostituição as casas fechadas. Ficou claro com esta medida que após a ineficaz perseguição liderada por Luís XIV, a prostituição era uma realidade impossível de esconder e quase indestrutível (História Viva, 2010, p. 42-47).

 

O período vitoriano e os “desvios” da normalidade sexual

Até meados do século XIX as relações sociais eram travadas em um campo de permissividade. Não se sentia a necessidade de ocultar as práticas sexuais; agressividade e violência eram encaradas como algo natural e próprio do ser humano.

            Sobre tais fatos, o filósofo francês Michel Foucault, descreve com riqueza de detalhes:

 

(...) no início do século XVII ainda vigorava uma certa franqueza. As práticas não procuravam o segredo; as palavras eram ditas sem reticência excessiva, e as coisas sem demasiado disfarce; tinha-se com o ilícito uma tolerante familiaridade. Eram frouxos os códigos da grosseria, da obscenidade, da decência, se comparados com os do século XIX (1988, p. 9).

 

            Foucault prossegue, informando o leitor acerca de como era o cotidiano daqueles tempos: “gestos diretos, discursos sem vergonha, transgressões visíveis, anatomias mostradas e facilmente misturadas, crianças astutas vagando, sem incômodo, nem escândalo, entre os risos dos adultos: os corpos “pavoneavam” (1988, p. 9)”. Assim, a descrição foucaultiana realiza uma abordagem histórica do paradigma que a sociedade tinha até meados do século XIX, quando o assunto era a sexualidade. A partir de tal análise, pode-se questionar como a temática sexualidade adquiriu as características da atualidade, enquanto preconceituosas com o exercício da prostituição. O próprio Foucault elucida esta questão a seguir.

            Foi no período histórico conhecido como Era Vitoriana (1837-1901), momento que ficou marcado pela subida da Rainha Vitoria ao trono inglês, que a sexualidade ganhou uma nova trajetória. De acordo com Foucault (1988, p. 9-10), a sexualidade foi transferida para o ambiente do lar, tendo como finalidade a reprodução. Se anteriormente, falar de sexo em público era algo permitido e mesmo incentivado, se havia tolerância neste respeito, no século XIX, o silêncio é instaurado. Este assunto é retirado da pauta do cotidiano. O filósofo francês progride em suas considerações no que tange a esta etapa de mudanças do comportamento humano quanto à sexualidade:

 

o casal, legítimo e procriador, dita a lei. Impõe-se como modelo, faz reinar a norma, detém a verdade, guarda o direito de falar, reservando-se o princípio do segredo. No espaço social, como no coração de cada moradia, um único lugar de sexualidade reconhecida, mas utilitário e fecundo: o quarto dos pais. Ao que sobra só resta encobrir-se; o decoro das atitudes esconde os corpos, a decência das palavras limpa os discursos (FOUCAULT, 1988, p. 9-10).

 

            As crianças também são alvo desta mudança. Elas são proibidas de se pronunciar quando o assunto for sexualidade. E se, por acaso, esse tema vier à tona quando elas estiverem presentes, alguns mecanismos serão rapidamente implantados para impedi-las de ouvir tal discurso:

 

(...) não somente não existe, como não deve existir e à menor manifestação fá-lo-ão desaparecer – sejam atos ou palavras. As crianças, por exemplo, sabe-se muito bem que não tem sexo: boa razão para interditá-lo, razão para proibi-las de falarem dele, razão para fechar os olhos e tapar os ouvidos onde quer que venham a manifestá-lo, razão para impor um silêncio geral e aplicado (idem, p. 10).

 

            Com efeito, a normatização da sexualidade foi imposta, delimitando o certo e o errado, estabelecendo relações maniqueístas. Se antes da Era Vitoriana, esta temática era aberta e até mesmo permissiva, agora a rigidez e a necessidade de haver ordem acirram os discursos e impõem a todos – crianças, jovens e adultos – um padrão de comportamento baseado em reprimir atitudes ou falares desvinculados do que oficialmente é correto. Este ordenamento, antes inexistente, ao ser posto na ordem do cotidiano foi denominado “Idade da Repressão” (FOUCAULT, 1988, p. 11), sendo uma imposição surgida por diversos fatores, entre os quais, destacam-se dois. O primeiro aponta para a difusão do capitalismo e para a utilização das energias do ser humano, enquanto máquina produtora de lucros para a classe burguesa, no labor diário. O questionamento feito abaixo esclarece em detalhes a primeira causa de tal instituição:

 

um princípio de explicação se esboça por isso mesmo: se o sexo é reprimido com tanto vigor, é por ser incompatível com uma colocação no trabalho, geral e intensa; na época em que se explora sistematicamente a força de trabalho, poder-se-ia tolerar que ela fosse dissipar-se nos prazeres, salvo naqueles, reduzidos ao mínimo, que lhe permitem reproduzir-se (FOUCAULT, 1988, p. 11)?

 

            O segundo fator interessa de perto ao desenvolvimento deste trabalho, uma vez que faz referência a subversão do paradigma então construído, ou seja, a sexualidade enquanto discurso proibido, que representa revoltar-se frente ao silêncio imposto pela ordem e viver à margem da lei vigente:

 

se o sexo é reprimido, isto é, fadado a proibição, à inexistência e ao mutismo, o simples fato de falar dele e de sua repressão possui como que um ar de transgressão deliberada. Quem emprega essa linguagem coloca-se, até certo ponto, fora do alcance do poder; desordena a lei (...) (FOUCAULT, 1988, p. 12).I

 

O único local permitido para a sexualidade era o seio familiar. Neste, o leito matrimonial significava a retidão e a pureza indispensáveis ao reconhecimento e a legitimação por parte do poder público (FOUCAULT, 1988). Todas as outras formas de sexualidade caminhavam na contramão do discurso normatizador. Eram marginais e se existissem, teriam de ocorrer de forma velada e clandestina:

 

ao que sobra só resta encobrir-se; o decoro das atitudes esconde os corpos, a decência das palavras limpa os discursos. E se o estéril insiste, e se mostra demasiadamente, vira anormal: receberá este status e deverá pagar as sanções (FOUCAULT, 1988, p. 10).

 

A partir das citações acima, poder-se-ia questionar quem seriam aqueles que se insurgiriam contra a moral estabelecida. A resposta é dada pelo próprio Foucault (1988, p. 11):

 

se for mesmo preciso dar lugar as sexualidades ilegítimas, que vão incomodar noutro lugar: que incomodem lá onde possam ser reinscritas, senão nos círculos da produção, pelo menos nos do lucro. O rendez-vousII e a casa de saúde serão tais lugares de tolerância: a prostitutaIII, o cliente, o rufião (...). Somente aí o sexo selvagem teria direito a algumas das formas do real, mas bem insularizadas, e a tipos de discurso clandestinos, circunscritos, codificados. Fora desses lugares, o puritanismo moderno teria imposto seu tríplice decreto de interdição, inexistência e mutismo.

 

            Deste modo, segundo Foucault, é a partir deste momento que as prostitutas passam a ser abertamente marginalizadas, visto que não estão incluídas na instituição legítima do casamento, não fazendo parte dos mecanismos produtivos do sistema capitalista, tendo, no máximo, seus corpos como instrumentos de lucro. O resultado numa sociedade com esta dinâmica foi óbvio: as prostitutas, por não representarem parte da cadeia produtiva do capitalismo, tiveram sua cidadania comprometida e foram reduzidas aos bordéis, castelos, “zonas” e demais estabelecimentos onde o sexo pago, de modo clandestino e subversivo, era tolerado.

            Se por um lado, Foucault denunciou a exclusão social das prostitutas, o escritor brasileiro Jorge Leal Amado de Faria em sua obra Tereza Batista Cansada de Guerra, publicada em 1972, também descreveu as prostitutas como um conjunto de seres humanos excluídos, porém, heróicos. Ao narrar a história pessoal de Tereza, Jorge Amado simboliza na protagonista a imagem positiva e solidária presente nas prostitutas:

 

sendo de ofício artista de cabaré, amásia, mulher-dama, acidentalmente professora de crianças e de adultos, para as polícias de três estados da federação profissional de brigas e arruaças, Tereza Batista (...) não soube apenas lavar variolosos, passando permanganato e álcool canforado nas borbulhas, aplicar vacina; soube convencer os mais recalcitrantes, temerosos de pegar a doença no ato da inoculação (2000, p. 207).

 

            Apenas contando treze anos incompletos, Tereza foi vendida pela sua tia Felipa a Justiniano Duarte da Rosa, o Capitão Justo, homem que a utilizou como escrava sexual, violentando-a por vezes e espancando-a, ao mesmo tempo em que lhe obrigava a trabalhar no balcão da sua venda e também a prestar serviços domésticos. Apesar disso, ela lutou por melhorias na sua condição de vida e também na dos mais pobres. Quando todos os profissionais de saúde abandonaram a cidade de Buquim, interior de Sergipe, atingida por uma epidemia de varíola, inclusive o médico, então chefe do Posto de Saúde, Oto Espinheira, são as prostitutas da cidade, chefiadas por Tereza, empreendem uma verdadeira ação de caridade. Eles vacinam, aplicam permanganato nos ferimentos causados pela varíola, limpam enfermarias, lavam roupas, sepultam mortos, enfim, executam todas as medidas profiláticas e curativas ao seu alcance para erradicar a epidemia.

            Com efeito, Jorge Amado apresentou Tereza ao leitor como heroína popular, guerreira abençoada pelos orixás da Bahia, mulher forte e boa de briga, que não tolerava nenhuma espécie de abuso contra o sexo feminino (AMADO, 2000). Prova disso é o episódio que marcou sua estreia no Cabaré Paris Alegre, quando ao ver uma mulher ser agredida, Tereza briga com o agressor ferozmente, e termina por derrotá-lo (idem, 2000, p. 5-9). Não é sem propósito que o Clube Feminista Italiano tenha batizado sua sede em Milão com o nome de “Casa de Tereza Batista” (FUNDAÇÃO CASA DE JORGE AMADO, 2012). É essa mulher que representa as classes populares no Brasil, desde muito cedo marginalizadas, não lhes restando alternativa, exceto se sustentar comercializando o próprio corpo, seja exercendo o ofício de prostitutas, ou como dançarinas de cabarés, lugares marcados pela violência estampada em confrontos e resoluções de desavenças pessoais:

 

ia o poeta retomar a dança e o improviso sem conceder maior importância ao acontecido – o que mais dá em cabaré é corno aflito – eis que a bofetada estala tão forte a ponto de cobrir o ruído do jazz. Estanca o passo Tereza, a tempo exato de assistir à mão espalmada do grandalhão pela segunda vez na cara da rapariga e de escutar-lhe a voz nasal a repisar palavras tão repetidamente ouvidas em tempos distantes: aprenda a me respeitar, cadela!; a voz era outra mas a frase idêntica e idêntico também o som da mão do homem na face da mulher (AMADO, 2000, p. 7).

 

            Como se percebe, os traumas pelos quais Tereza passou não a detiveram; antes, deram-lhe força para não compactuar, em sua presença, com abusos de qualquer sorte contra uma mulher.

Ela manteve seus ideais e sua cultura, levando-se em consideração o conceito de cultura proposto por Roberto da Mata (1981):

 

''cultura" não é simplesmente um referente que marca uma hierarquia de "civilização" mas a maneira de viver total de um grupo, sociedade, país ou pessoa. Cultura é, em Antropologia Social e Sociologia, um mapa, um receituário, um código através do qual as pessoas de um dado grupo pensam, classificam, estudam e modificam o mundo e a si mesmas.

 

            Tereza Batista da Anunciação tem, de acordo com a narrativa amadiana, a sua maneira de falar, de se vestir, seus valores morais e éticos. Não suportava ver uma mulher apanhando e contribuiu decisivamente na erradicação de uma epidemia de varíola, conforme supracitado. Conservou, apesar das imensas dificuldades vividas, seu modo de encarar a vida, como uma experiência repleta de possibilidades. Apesar de não pertencer a uma classe letrada, soube agir de modo verdadeiro, enquanto muitas pessoas doutas e moralistas de sua época se comportaram de modo covarde e hipócrita. Foi íntegra aos seus valores culturais e, como prostituta, soube contribuir para a transformação da sua realidade e das suas companheiras (AMADO, 2000).

 

Considerações Finais

 

            Ao longo da história da humanidade, as prostitutas alternaram períodos de tranquilidade e de sofrimento no que tange ao exercício de sua profissão. Se na Grécia e em Roma havia permissividade e o poder público estatizou o ofício do sexo, em diversos outros momentos, as cortesãs foram perseguidas. Sendo toleradas ou não, o fato é que as “mulheres da vida” sempre foram exploradas, em especial pelos agenciadores, fossem eles os lenos do Império Romano, fossem os cafetões que perduram até a atualidade.

            Foucault deu uma contribuição ímpar no sentido de compreender a prostituição como uma atividade marginalizada pela sociedade, não apenas por aspectos morais, mas antes, por interesses econômicos: as prostitutas não faziam parte da população média produtora – pai e mãe que, ao serem explorados pelo sistema capitalista, mal teriam forças para o ato sexual visando a reprodução (FOUCAULT, 1988).

            Jorge Amado (1972) optou por não reforçar o discurso das elites dominantes de seu tempo, denunciando, na obra Tereza Batista Cansada de Guerra, o descaso do poder público com as populações carentes e desprivilegiadas existentes na sociedade brasileira até os dias atuais, sobretudo com as mulheres que engrossavam os índices de pobreza e miséria, vendo-se muitas vezes obrigadas a exercer o ofício de prostitutas, dado o alto grau de exclusão. Descreveu de modo ímpar a pedofilia já existente na década de 70 e a prática da venda de meninas menores de idade como escravas sexuais. Mostrou abertamente os desmandos de coronéis, capitães e seus capangas, sempre prontos a aumentar a miséria dos pobres e famintos. Entretanto, a narrativa amadiana exalta as classes populares brasileiras, que mesmo sofrendo muito com o abandono social a elas imposto, não desistem de lutar por melhores condições de vida. Um povo alegre, embora maltratado pelas arbitrariedades dos poderosos que estão muito longe de representá-lo com dignidade. Além disso, enobrece na figura de Tereza Batista o(a) mulato(a), este componente tão importante na realidade brasileira, contudo, alvo de forte preconceito. Ele(a) é representado(a) por Tereza Medo Acabou, quando age de modo corajoso para libertar-se da tirania e da monstruosidade de Justo, Tereza da Bexiga Negra ao enfrentar e derrotar a epidemia de varíola, salvando muitas vidas, Tereza que luta, que chefia a greve do Balaio Fechado, resultando em mais uma vitória para os desfavorecidos.

            Faz-se necessário, assim, compreender que é de fundamental importância a prática do respeito a um ser que, independente da sua morfologia e sexo, é humano. Com os avanços realizados por grupos feministas ao redor do globo, já não deveria haver mais espaço para visões machistas e sexistas acerca das prostitutas. Infelizmente, porém, conceitos retrógrados perduram, muitos dos quais conduzem a violência contra a mulher, marchando na contramão das descobertas científicas que comprovam que o feminino detém capacidade intelectual tal qual o masculino. Daí a importância de aprofundar mais a temática da feminilidade e dos direitos da mulher, exerça ela qualquer profissão, perante uma sociedade que ela própria tem contribuído em larga escala para progredir.

 

Referências

2.500 anos de prostituição. História Viva, São Paulo: Duetto, 2010 (ano VII, n.o 81), p. 26-47, jul 2010.

 

AMADO, Jorge. Tereza Batista cansada de guerra. 31 ed. Rio de Janeiro: Record, 2000.

 

BELLINE, Ana Helena Cizotto. Representações do feminino. Disponível em: http://www.jorgeamado.com.br/professores/03.pdf. Acesso em: 13 jan 2012.

 

DA MATTA, Roberto. Você tem cultura? Jornal da Embratel: Rio de Janeiro, 1981.

 

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade: volume I, a vontade do saber. Trad. Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. 13 ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988.


[1] Pesquisador do Núcleo de Estudos de Gênero e Sexualidade / Nugsex Diadorim da Universidade do Estado da Bahia. Graduando em Psicologia pela mesma instituição. Graduado em Letras com Inglês pela mesma instituição. Pós-graduado em Língua, Linguística e Literatura pela PADMA Consultoria, Pós-graduação e Projetos Educacionais. E-mails: [email protected]; [email protected].

I Grifo próprio.

II Expressão francesa mundialmente conhecida, que significa bordel, casa de prostituição.

III Grifo próprio.

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Autor: Armando Januario Dos Santos


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