Capoeira e cidadania: seu poder e atuação como instrumento educacional em ambiente escolar



CAPOEIRA E CIDADANIA: SEU PODER E ATUAÇÃO COMO INSTRUMENTO EDUCACIONAL EM AMBIENTE ESCOLAR

 

 

 

Hugo Leonardo Esterci Araújo[1]

 

RESUMO

 

O termo “Educação Física” abrange diversas interpretações. Pode ser relacionada à ginástica, medicina, cultura, jogos, esportes, ciência e até política. Por conta desses e de outros motivos, a Educação Física, em especial a Educação Física Escolar, vem passando por mudanças significativas em suas finalidades educacionais. A Capoeira compreendida como recurso de ensino, que prepara e educa de forma prazerosa, desenvolvendo-se nas atividades físicas, no lazer, em datas festivas e brincadeiras, por meio de músicas, ritmos e danças, proporciona aos seus praticantes, através de sua prática bem orientada, conhecer de forma lúdica aspectos que abrangem o universo desta arte, como: filosofia de vida, instrumento educacional, história, arte, música, cultura popular, esporte, luta e jogo. O presente trabalho, de caráter descritivo, pretende, por meio de revisão bibliográfica, levantar questões referentes à compreensão e à importância da aplicação de aulas de Capoeira no universo escolar, tendo por objetivo o resgate das atividades culturais, identificando a Capoeira como recurso pedagógico no que tange a oferecer caminhos para que a criança desenvolva conhecimentos historiográficos, prática de trabalhos corporais, atividades esportivas, construção e aprendizado em instrumentos musicais, dança, enfim, socialização como um todo. No que se refere à sua articulação educacional, podemos trabalhar com conteúdos de Geografia e História, principalmente História do Brasil, conteúdo intimamente ligado à História da Capoeira, situando a criança no tempo e no espaço dos quais faz parte.

Sendo assim, destaca-se o papel do professor de Capoeira na orientação dos alunos, e as formas de apresentá-la aos mesmos.

 

PALAVRAS-CHAVE: Educação Física Escolar. Capoeira. História. Cidadania.

 

ABSTRACT

 

The term "physical education" covers several interpretations. May be related to fitness, medicine, culture, games, sports, science and even politics. Because of these and other reasons, physical education, particularly physical education, has been undergoing significant changes in their educational purposes. Capoeira understood as a resource for education, which prepares and educates in a pleasurable way, unfolding in physical activities in leisure, holidays and games, through music, dance rhythms and gives its practitioners, through their practice and oriented, meet in a playful aspects that cover the universe of this art as philosophy of life, educational tool, history, art, music, popular culture, sport, fight and play. This study, descriptive in character, aims, through literature review, raising questions concerning the understanding and importance of conducting classes in Capoeira school environment, aiming to the rescue of cultural activities, identifying Capoeira as a teaching resource in comes to offer ways for children to develop historiographical knowledge, practice of bodywork, sports activities, construction and learning musical instruments, dance, finally socialization as a whole. As regards their educational articulation, we can work with content from geography and history, especially history ofBrazil, content closely related to the History of Capoeira, placing the child in time and space of which is a part. Thus, we highlight the role of Capoeira teacher in guiding students, and ways to present it to them.

 

KEY-WORDS: Physical Education. Capoeira. History. Citizenship.

 

 


APRESENTAÇÃO

 

 

A Capoeira como conhecemos teve seu início durante o período colonial, quando os negros escravos, trazidos da África Ocidental, descobriram em seus corpos um valoroso aliado pra extravasar seu sentimento de indignação, na forma de expressão corporal. Porém, sua origem, por não haver provas conclusivas acerca do fato, ainda se apresenta de formas divergentes. A Capoeira apresenta traços de jogo, dança, religião e luta, sendo hoje considerada como uma arte essencialmente brasileira. Nela, podemos desenvolver conteúdos lúdicos (como jogo e suas variações), religiosos (nos cantos durante a roda, por exemplo), dança (através da ginga e dos movimentos de floreio) e defesa pessoal (por meio dos movimentos de ataques e defesas presentes na Capoeira). No tocante à sua evolução, Araújo (1997) diz que a Capoeira sofreu múltiplas transformações: a primeira, de uma arte marcial para uma prática de defesa pessoal, a segunda, de defesa pessoal para uma prática desportiva, e, depois, em uma prática de natureza lúdica.

Durante todo esse processo, a Capoeira vem conquistando seu espaço, derrubando preconceitos e agregando praticantes nas diferentes classes sociais do Brasil e em diversos países do mundo. Nas escolas, hoje, a Capoeira é uma das atividades extracurriculares mais aceitas. Contudo, tem sido pouco utilizada como conteúdo na Educação Física escolar, visto que ainda não há profissionais preparados para ministrar os conteúdos da Capoeira dentro das atividades desenvolvidas nas aulas de Educação Física.

No Brasil, a Educação Física teve seu início no século XIX, em 1851, com a reforma Couto Ferraz. De acordo com Darido (2003, p.01): “Três anos após a aprovação da reforma do primário e do secundário, em1854, aginástica passou a ser uma disciplina obrigatória no primário e a dança no secundário”.

A motivação para apresentar o tema veio através de uma vivência de dois anos ministrando aulas de Capoeira nos colégios Stella Matutina e O mágico de Oz, na cidade de Juiz de Fora – MG, com crianças de cinco a doze anos, e, nesse período, acompanhando o desenvolvimento motor e comportamental das mesmas. Assim, ao longo deste trabalho, tentaremos levantar questões referentes à compreensão e à importância da aplicação de aulas de Capoeira no universo escolar, tendo por objetivo o resgate das atividades culturais no referido ambiente, identificando a Capoeira como recurso pedagógico no que tange a oferecer caminhos para que a criança desenvolva conhecimentos historiográficos acerca do tema, prática de trabalho corporal, atividades esportivas e musicais, enfim, socialização como um todo.

Assim, ressalta-se a mediação do educador no universo de construção de conhecimentos dos alunos, e as formas de apresentar a Capoeira. Por meio de uma concepção didática, pode-se considerar a Capoeira uma atividade de grande abrangência, visto que sua atuação se faz de forma direta e indireta sobre os aspectos cognitivo, afetivo e motor do praticante.

No que se refere à sua articulação educacional, podemos trabalhar com conteúdos de cultura geral, Música, Geografia e História (principalmente História do Brasil, conteúdo intimamente ligado à história da Capoeira).

Na busca desta compreensão, utilizamos uma pesquisa bibliográfica, envolvendo autores tais como: Araújo (1997), Areias (1984), Capoeira (1999), Darido (2003), Silva (2003), entre outros.

Este artigo aborda fatores relevantes no que tange à Capoeira e sua aplicação na escola, através de uma contextualização histórica, relacionando o Brasil, o negro, a Capoeira e suas transformações ao longo da história. Também, questões relacionadas às curiosidades e correlações culturais da Capoeira. Seu foco principal está numa breve contextualização histórica da Educação Física, em especial, no Brasil, a inserção da Capoeira na realidade escolar, as formas de se trabalhar esse conteúdo e seus resultados positivos na formação do indivíduo.

A Capoeira como conhecemos hoje é sinônimo de cultura, dança, luta, jogo. Arte difundida por todo Brasil e em muitos países do mundo, a Capoeira tornou-se uma das mais importantes manifestações do povo brasileiro. Sua origem é tema de diversas discussões entre os estudiosos que dela se ocupam, visto que não há conclusões definitivas relacionadas ao tema.

Entretanto, recentes trabalhos realizados acerca da cultura negra no Brasil questionam algumas dessas ideias.

Desde o início das colonizações realizadas pelas grandes potências europeias, em especial as realizadas por Portugal, os negros eram valiosos objetos de mercado, tirados à força de seu habitat natural, acomodados de forma precária nos porões de navios e conduzidos para os novos destinos, entre os quais o Brasil era o de maior destaque no que se refere ao mercado negreiro. Chegando aqui, tinham como função assegurar a posse da nova terra, desbravando-a e transformando-a em produtora de riqueza para seus senhores e para a coroa portuguesa.

O considerável número de negros trazidos ao Brasil como escravos mostra a alta lucratividade do tráfico negreiro, em princípio responsável pelo abastecimento das lavouras de cana em expansão nos séculos XVI e XVII, e, logo depois, nas áreas de mineração e das lavouras cafeeiras, nos séculos XVIII e XIX, respectivamente. Isso não quer dizer sobremaneira que os negros eram condizentes com tal realidade. Houve diversas formas de resistência, desde fugas isoladas, passando pelo suicídio, pelo banzo (nostalgia que fazia o negro cair em profunda depressão o levando à morte) e pelos quilombos. Várias foram as formas de resistência do negro à escravidão, sendo a formação dos quilombos a mais consequente. Os negros jamais aceitaram passivamente o fato de trabalharem como escravos, simplesmente não havia, naquele momento, condições apropriadas para uma revolta em grande escala. As invasões holandesas proporcionaram aos escravos uma chance de se mobilizarem no intuito de alcançar a liberdade, visto que, durante o período (1624-1630), as fazendas de engenho do nordeste passavam por uma turbulência temporária, uma vez que os senhores e governantes concentraram suas atenções em expulsar os invasores.  Tal evento diminuía a rigidez e vigilância direcionada aos negros, possibilitando a fuga e a criação das comunidades quilombolas.

O Brasil foi o maior importador de cativos africanos, status que perdurou por mais de trezentos anos, sendo o último a libertá-los após um longo processo de resistência negra, e também por interesses políticos, movido por alguns setores da sociedade. Faziam parte desse grupo influente, personagens como: Joaquim Nabuco, Visconde do Rio branco, André Rebouças, Luiz Gama e José do Patrocínio, figuras de grande relevância no que tange ao fim da escravidão no país. O abolicionismo conquista a opinião pública nos anos de 1880 e leva o Brasil ao fim da escravatura, e, em 13 de maio de 1888, no Paço da Cidade, no Rio de Janeiro, a princesa Isabel assina a Lei Áurea. Contudo, mesmo após a abolição, os negros sofreriam com as exclusões e discriminações da sociedade branca.

É de domínio público que a Capoeira é oriunda do período colonial, quando o negro escravo se valia do jogo de agilidade corporal como um instrumento de defesa contra seus perseguidores, referenciado pela figura do capitão-do-mato. Mas “capoeira” não é apenas essa arte corporal e cultural conhecida:

 

O termo capoeira não tem um único sentido. Em português, capoeira e seus derivados, em grande maioria se associam às características de cestos, gaiolas ou locais para se guardar aves ou indivíduos. Já em Tupy-Guarany, o termo capoeira significa “mato”, sem qualquer espécie de qualificação (novo, velho, ralo, encorpado) (ARAÚJO, 1997, p.56).

 

 

Mais que uma simples forma de defesa, a Capoeira engloba um universo de atividades diretamente ligadas à dança, música, brincadeiras, malícia, enfim, é expressão explícita da cultura afro-brasileira.

A origem da Capoeira sempre foi motivo de discussões entre seus estudiosos e praticantes. Se africana ou brasileira, ainda não há provas que direcionam a nenhuma certeza. O fato é que a Capoeira, assim como conhecemos hoje, tem características genuinamente brasileiras.

O termo “Capoeira” era o usado pelos destacamentos policiais (e por outras camadas da sociedade) para designar esse movimento praticado pelos negros, que contava com golpes de habilidade corporais característicos e pelo uso de facas e navalhas.

Tomando como referência as ideias de Araújo (2005), sabe-se que na Bahia, com o intuito de evidenciar a Capoeira pelos componentes dos grupos marginais, sempre foi utilizada a palavra vadiação, percebendo-se obviamente como derivativo de vadio (assim como os capoeiras, foram sempre confundidos socialmente, não se configurando muitas vezes os limites distintivos entre ambos, apesar de se reconhecerem na tentativa jurídica aspectos distintivos apenas entre estes e os praticantes da capoeira. Contextualmente se poderia entender como “vadio” a negação do próprio trabalho; o pobre sem ocupação; o intermediário entre a legalidade e a ilegalidade, não se podendo estender esta compreensão para todos os praticantes da Capoeira), expressão que fora muito usada na identificação dessa categoria de indivíduos em vários contextos histórico-sociais brasileiros.

Quando se fala em capoeira hoje, sua imagem se faz familiar para grande parte das pessoas. Para uns, considerada como genuíno esporte nacional; já outros consideram a Capoeira a memória de uma ancestralidade africana. Todavia, ao estudarmos a fundo o tema em busca de suas raízes na historiografia, o objeto (Capoeira), antes tão nítido e direto, ganha ares de complexidade. Podem-se perceber ao longo de sua história as múltiplas faces atribuídas a esta manifestação, as quais concorreram em diversos momentos para dar-lhe um caráter pernicioso e de afronta à segurança pública, em outras ocasiões, vista como símbolo da identidade nacional e, por fim, como proposta cultural esportiva genuinamente brasileira.

Há algumas dúvidas que sempre permearam a Capoeira: Seria a Capoeira uma dança-divertimento que se transformou em luta? Ou luta que se transformou em divertimento? Como surge a música na roda de Capoeira?

Sobre esse assunto, Areias (1984, p. 21) considera que:

 

 

Em primeiro lugar, perguntas desse tipo são muito difíceis de responder, dada a deficiência de documentação e a pouca pesquisa feita sobre o tema. Outro ponto que dificulta o esclarecimento dessas questões é o fato, ridículo, da figura do nosso “ilustre Rui Barbosa”, o “Águia de Haia” ter queimado todos os documentos referentes à escravidão, na alegação de que tais documentos eram retratos da “vergonha nacional” que a escravidão tinha sido. E note-se que o Brasil foi o ultimo país a libertar os escravos, só se justificando aquela atitude pelo fato de ela ter partido de Rui Barbosa, que acreditava ser possível apagar um fato histórico pela simples queima de documentos que dele falavam [...].

 

 

Contudo, tais documentos eram apenas de uma repartição, sobretudo das matrículas de escravos criadas pela Lei do Ventre Livre (1871), cuja destruição dificultaria qualquer exigência de indenização por parte dos ex-proprietários de escravos – o que Rui Barbosa temia. Mesmo apesar desse fato, existem toneladas de documentos que se referem à escravidão, espalhados por todos os estados brasileiros. Esse fato, já conhecido no universo acadêmico, tem encontrado dificuldades em chegar às rodas de Capoeira, nas quais, até hoje, é comum ouvir comentários equivocadamente “românticos” acerca do tema.

A partir do século XX, a Capoeira passa por uma enorme transformação, alterando assim todo seu futuro. Personagens como Bimba e Pastinha, remodelaram-na, dando-lhe um perfil que se aproximava do esporte, uma guinada em sua história.

Ao mencionar a Capoeira, pelo menos dois personagens devem ser lembrados e celebrados: Vicente Ferreira Pastinha (Mestre Pastinha) e Manoel dos Reis Machado (Mestre Bimba).

Pastinha nasceu em 5 de abril de 1889, na cidade de Salvador, e foi, posteriormente, responsável por organizar este jogo de corpo a fim de preservar as tradições e a cultura afro dentro desta modalidade de luta-jogo-dança. Foi considerado pelos mestres mais famosos de sua época o mais perfeito capoeirista angola da Bahia. Ainda criança, Pastinha iniciou-se na Capoeira, ensinado por senhor africano de nome Benedito, que lhe ensinou a lutar para defender-se de um menino que sempre lhe batia na rua. De acordo com Adorno (apud SILVA, 2003, p.51): “Além das técnicas, muito mais lhe foi ensinado por Benedito, o africano seu professor.”

 Pastinha fundou, em 1952, o Centro Esportivo de Capoeira Angola. Tal fato aconteceu após receber de outro mestre a honra e a responsabilidade de dar continuidade aos fundamentos da Capoeira Angola. Defensor ferrenho da “Capoeira Angola”, Pastinha considerava que esta seria uma junção de culturas africana e brasileira. Segundo o próprio Pastinha (apud SILVA, 2003, p. 52): “conhecer as leis do ritual, saber brincar, cantar, dançar, ser malicioso, mandingueiro, são qualidades mais importantes do que a simples eficiência marcial dos golpes”, corroborando o caráter lúdico da Capoeira. Pastinha escreveu um livro sobre Capoeira Angola, e gravou um disco.

No dia 13 de novembro de 1981, aos 92 anos, muito debilitado, cego, quase paralítico, abandonado, Pastinha falece, deixando um grande legado cultural.

No mesmo período, em 23 de novembro de 1899, nasce, também no estado da Bahia, Manoel dos Reis Machado (Mestre Bimba), ao lado de Pastinha, a figura que revolucionaria a Capoeira, levando-a ao reconhecimento mundial. De acordo com Adorno (apud SILVA 2003, p. 52): “aos doze anos começou a aprender Capoeira com o africano Bentinho, capitão da Cia. de Navegação Bahiana”. Os treinos eram fortes, com caráter mais marcial, de luta, combate. Silva (2003) menciona que Mestre Bimba pretendia retirar a Capoeira do Código Penal, a fim de que sua prática ganhasse reconhecimento e o preconceito enraizado na sociedade se esvaísse, e, para tanto, Bimba, ainda angoleiro como mandava o figurino, se sentia insatisfeito e constituiu um novo estilo de Capoeira, tornando-a mais ligeira e eficaz, com formas marciais em que o capoeirista é convidado, num espaço e tempo pré-determinados, a demonstrar flexibilidade e agilidade com o propósito de não ser lesado pelo ataque do parceiro de roda. Bimba (apud SODRÉ, 2002, p. 50), propondo um novo espírito de jogo, declara: “Em 1928, eu criei, completa, a regional, que é o batuque misturado com a angola, com mais golpes, uma verdadeira luta, boa para o físico e para a mente”.

O novo estilo criado obteve muito adeptos de todas as camadas da sociedade, desde o homem rude do povo a doutores, artistas, intelectuais, ex-chefes de Estado e, então, numa oportunidade políticaem que Getúlio Vargasdiscursava, na década de 1930, Mestre Bimba solicitou uma autorização para que fizesse uma apresentação de seu grupo e, dessa forma, foi demonstrada a Capoeira Regional Baiana, que, aos olhos de Getúlio Vargas parecia proveitosa politicamente, uma vez que, ao liberá-la, teria o apoio da massa popular que praticava a luta-dança.

Então Getúlio decreta a livre prática da Capoeira, a partir de então considerada como esporte genuinamente brasileiro. Com claro interesse político, a Capoeira será um dos meios pelo qual o Estado tentará realizar seus projetos, visando uma nacionalidade a partir dos elementos culturais e tradicionais, formando as ideologias do Estado Novo.

A duras penas e em medidas homeopáticas, a Capoeira romperia com o preconceito entranhado na sociedade brasileira. Tanto que, em 1934, Getúlio Várgas, revogaria uma lei que criminalizava o Candomblé e a Capoeira. Segundo Bruhns (2000, p. 28) “a Capoeira sai das ruas, ganhando significado diferente daquele atribuído a ele na fase anterior, ou seja, coisa de negro, de vadio, de malandro”. Já Sodré (2002) ressalta que Mestre Bimba, em 1937, obteve o registro de diretor de Educação Física junto à Secretaria de Educação, Saúde e Assistência Pública. Também, dois anos depois, estava ensinando a Capoeira Regional no quartel do Centro de Preparação de Oficiais da Reserva do Exército.

Já em 1973, após formar sua última turma no estado da Bahia, Mestre Bimba mudou-se para Goiânia, estado de Goiás, com sua família. Sentia que na Bahia não estavam lhe dando o devido valor, principalmente por parte dos órgãos públicos. Mas ele só foi mesmo pela sedutora proposta de um aluno de Goiânia, que prometeu apoiá-lo em tudo, dando dinheiro, casa, academia, alimentação e trabalho. Tudo não passou de uma grande mentira, o que deixou Mestre Bimba profundamente decepcionado. Bimba veio a falecer em fevereiro de 1974, em Goiânia, vítima de um derrame cerebral.

No que se refere à transformação social da Capoeira como uma prática marcial numa prática de defesa pessoal, pode-se considerar que tenha sido de grande relevância, primeiramente, o fenômeno da “urbanização”, em contraposição à “ruralização” da mesma, que provavelmente, nos séculos XVII e XVIII era manifestação de forma coletivizada através das lutas de guerrilhas praticadas por escravos fugitivos e defensores dos quilombos.

A segunda transformação da Capoeira na sociedade brasileira se dá de forma gradual. Essas mudanças transcorrem da seguinte forma: inicialmente a afirmação, depois, a consolidação e, por fim, a oficialização.

No que tange à sua oficialização, Araújo (1997) argumenta que com o crescimento da Capoeira no Brasil, não só pelos motivos antes explicitados, mas também pelo processo de afirmação das práticas culturais “nacionalizadas” e pela grande divulgação feita pelos setores turísticos no país, principalmente na Bahia, mudou-se decisivamente de postura quanto à Capoeira, uma vez que a mesma já se consolidara como expressão no campo das práticas de defesa pessoal, do aspecto lúdico e expressões folclóricas, faltando agora, a sua inserção nas atividades desportivas, ganhando força ao final da década de 1960, momento em que são realizados os primeiros jogos desportivos de Capoeira e a tentativa de regulamentação de sua prática em nível nacional, além do I Simpósio de Capoeira (realizado no dia 27 de agosto de 1968).

Ao analisarmos historicamente a transformação da Capoeira em atividade lúdica, veremos que esse fato se deu anteriormente à sua transformação em prática desportiva oficial, apesar de haver neste percurso características muito particulares, donde se destacaram indícios de gestualidade corporal, oralidade, rituais e musicalidade.

 

Na história da capoeira foram muito poucos os relatos que registraram a vinculação de evidências musicais, orais e rituais vinculadas a esta luta, isto pelo menos no contexto do século XIX e ate à duas primeiras décadas do século XX, que pudesse de algum modo enquadrá-la como uma manifestação de caráter lúdico, fazendo-me, portanto, defender a posição de ter ocorrido esta transformação nos primeiros anos do Governo Republicano e em resultado de múltiplos fatores sociais e políticos do período. Todavia, a sua consolidação como prática cultural de natureza lúdica como se conhece atualmente, isto no que se refere aos aspectos de musicalidade, oralidade e ritualidade, somente toma corpo a partir da década de 30 do século em curso (ARAÚJO, 1997, p.227).

 

 

Quando se fala em caráter lúdico da Capoeira, deve-se levar em conta todo um contexto em torno do tema. Por exemplo, o significado da palavra “jogo” no contexto social brasileiro e no contexto da Capoeira, o contexto da repressão político-policial contra a Capoeira no decurso da história brasileira e suas adaptações, a ligação da criança com a Capoeira, das relações entre os sujeitos, os sentidos do ato lúdico na Capoeira, além dos instrumentos propiciadores da Capoeira como atividade lúdica.

Sobre o caráter lúdico da Capoeira, tomando como foco a criança, Araújo (1997, p.235) afirma que:

 

 

No desenvolvimento vivencial procurando a formação da sua personalidade, a criança, através da estimulação dos sentidos, apropria-se de alguns objetos que circulam no seu universo social para transformá-lo ao nível da sua compreensão infantil, servindo-se muitas vezes das manifestações dos adultos, exteriorizadas no ambiente que a rodeia, como instrumentos educacionais que lhe serão úteis na vida e propiciatórios de interesses e necessidades derivadas dos seus impulsos imediatos. Partindo deste entendimento, e reconhecendo na luta da Capoeira uma exercitação que produz modelos e notabilidades no espaço das comunidades marginais e consequentemente na história brasileira, leva as crianças, principalmente, das sociedades carioca e soteropolitana do fim do século XIX e início do século XX, a cooptá-lo como instrumento de auto-instrução, de estimulação física e de diversão, tudo isto voltado para a formação da sua personalidade através das práticas de natureza lúdica.

 

 

Já sobre o sentido do ato lúdico da Capoeira, de acordo com Araújo (1997), esses sentidos não se mostram diferentes daqueles encontrados em grande parte dos jogos que se conhece atualmente, apresentados como brincadeiras contribuintes na promoção do divertimento dos indivíduos detentores dos conhecimentos técnicos inerentes à luta de igual denominação.

Dentro da evolução na arte da Capoeira, ressalta-se sua mistura com outros tipos de manifestação popular, como: futebol, carnaval, rituais de pescadores, lutas coreografadas com bastões e facões, entre outras. São esses os fenômenos que serão revelados nesse capítulo.

O futebol, o carnaval e a Capoeira, além de fazerem parte do jeito de ser do brasileiro como marcas identificadoras de nossa cultura, carregam consigo muitos traços em comum, se interpenetrando num espaço formado por fatores que os unem, mas também os repelem.

 Bruhns (2000, p. 130) menciona que:

 

Isso pode ser exemplificado nas crenças religiosas, sempre presentes – mesmo que algumas recebam os mais variados estigmas (como é o caso do candomblé), possuindo menos aceitação, ao passo que outras mostram-se mais aceitas (como é o caso do catolicismo).

  

 

Essas três manifestações se inserem no universo lúdico do povo brasileiro, guiando-o a novas experiências e caminhos nas relações com a vida, que é, de acordo com Bruhns (2000), regida fortemente por valores diretamente ligados à produtividade e ao rendimento, havendo uma desvalorização e uma repulsa dos valores próximos do gratuito, em que a manifestação da ociosidade se torna um sinônimo de “malandragem”, não compreendida como necessária para um modo de vida mais reflexivo, pausado e comunicativo.

Fica claro que as três manifestações apresentam uma linha divisória tênue entre o sagrado e o profano, como revela Nelson Rodrigues (apud BRUHNS, 2000, p.132-133), sobre futebol e religiosidade:

 

[...] faltando quatro ou cinco minutos para acabar a batalha, ocorre contra Flamengo o pênalti que, para muitos, foi de compensação. Devia ser empate, ou seja: o resultado que viria pôr abaixo, da ponta, o Flamengo. Foi então que Dida teve uma lembrança maléfica e mesmo diabólica. Estava a bola na marca fatídica. Dida aproxima-se, ajoelha-se, baixa o rosto e vai fazer o que nem todos, na afobação, percebem. Para muitos, ele estaria rezando o couro. Mas, eis, na verdade, o que acontecia: Dida estava cuspindo na bola.

 

 

Tomando a Capoeira, vimos em sua história, quanto à sua “esportivização”, que há uma tentativa de dessacralização. Entretanto, nesse processo, se faz importante reparar, como relata Reis (1993, p.190), “uma apropriação ‘negra popular’ dos santos católicos brancos (ou seja, os mesmos significantes são resignados no interior de outro contexto cultural)”. A autora conclui reflexionando acerca da possível introdução dos símbolos católicos que povoam a Capoeira como estratégia de disfarce para a conquista da legitimação dessa prática cultural negra (usando toques na Capoeira com nomes: São Bento Grande e São Bento Pequeno) numa sociedade branca e racista, assim como no candomblé.

No que tange à ambiguidade entre o sagrado e o profano na Capoeira, a autora mostra o profano pela necessidade de acesso a esse “mundo”, onde os capoeiristas “pagam simbolicamente”; em outras palavras, os capoeiristas “compram o jogo”; e que, além disso, ao mesmo tempo, a “roda” tem ares de local sagrado, uma vez que lá não se entra e muito menos se pode sair, sem que se benza antes. Também, ao final da roda, são cantadas músicas de despedida, quando os jogadores desejam uma “boa viagem” em seu regresso do “mundo da roda” ao “mundo dos homens”.

Relacionando o samba e a Capoeira, encontramos em Barbieri (1993, p. 76), usando a obra de Oliveira (1956) como fonte, uma lembrança dessa união, no momento em que o autor fala sobre os tempos antigos da Capoeira no Recife: “não havia festa sem banda de música. E não havia banda de música sem Capoeira”. Ele ainda menciona o fato de a Capoeira do Rio de Janeiro, que permaneceu atrelada aos “malandros da Lapa”, ter sido absorvida por escolas de samba: “existem até alguns autores sociais do campo da Capoeira que, mesmo sem fundamento até o momento, admitem que os capoeiristas teriam sido os primeiros Mestres-Salas”.

Quando se faz a relação entre futebol e Capoeira, fica clara uma particularidade do praticado no Brasil, a que diz que o brasileiro desenvolve o “futebol-arte”. Sobre isso, Vogel (1982, p. 109) afirma que: “o jogador brasileiro tem ginga, versatilidade e intuição, por isso é um artista”. O atleta de futebol brasileiro, claramente influenciado pela Capoeira e pelo samba, assimilou diversos golpes e artimanhas típicos dessas práticas.

Ora, então pode-se dizer que a simulação, a “catimba”, os “dedos nos olhos” e o “rapa” são formas de procedimento que entrelaçam o futebol, o samba, Capoeira e até as já conhecidas “malícia” e “malandragem”.

Através dos tempos, muitas mudanças ocorreram no seio da civilização. Transformações culturais, históricas e, sociais tiveram influência direta no comportamento dos indivíduos. Considera-se que tudo tenha começado a partir do momento em que o homem primitivo sentiu a necessidade de lutar, fugir ou caçar para que mantivesse sua sobrevivência. Dessa forma, segundo a ciência, o homem começa a executar os seus movimentos corporais mais básicos e naturais (correr, saltar, trepar, arremessar, puxar, empurrar) no momento em que se colocou de pé.

A Educação Física tem sua história marcada por diversas civilizações, como: China, Japão, Índia, Egito, Roma, mas, sem dúvida nenhuma, a civilização que marcou e desenvolveu a Educação Física foi a grega, através da sua cultura. Nomes como Sócrates, Platão, Aristóteles e Hipócrates contribuíram, e muito, para a Educação Física e a Pedagogia, atribuindo conceitos até hoje aceitos na ligação corpo e alma, através das atividades corporais e da música. Os sistemas metodizados e em grupo, bem como os nomes halteres, atleta, ginástica, pentatlo, entre outros, são heranças da civilização grega. As atividades sociais e físicas eram práticas desempenhadas durante todo período da vida, lotando os estádios e praças destinados às referidas atividades.

De acordo com Soares et al. (1992, p. 50),

 

No âmbito da escola, os exercícios físicos na forma de cultura, jogos, ginástica, dança, equitação surgem na Europa no final do século XVIII e início do século XIX. Esse é o tempo e o espaço da formação dos sistemas nacionais de ensino característicos da sociedade burguesa daquele período [...] Esse tempo e espaço, ou seja, a Europa de fins do século XVIII e início do século XIX constitui-se em palco da construção e consolidação de uma nova sociedade – a sociedade capitalista – onde os exercícios físicos terão um papel destacado.

 

 

Nesse contexto, Soares, et al. (1992) mencionam que o cuidado com o corpo também tem o significado de cuidar dessa nova sociedade em construção, visto que a força de trabalho produzida e posta em ação pelo corpo se torna fonte lucrativa. Dessa forma o cuidado com o corpo passa a ser uma necessidade sólida, devendo ser adotada pela sociedade do século XIX. Com isso, atividades pedagógicas como a Educação Física entrariam em ação e seriam correspondentes aos interesses classe social hegemônica naquele momento histórico, em outras palavras, a fatia social dirigente do setor político, intelectual e moralmente, a nova sociedade.

A partir do século XIX emergem as primeiras sistematizações acerca dos exercícios físicos, conhecidas como Métodos Ginásticos, apresentando-se como expoentes o sueco P. H. Ling, o francês Amoros e o alemão A. Spiess, com contribuições oriundas de fisiologistas como G. Demeny, E. Marley, médicos como P. Tissié, e ainda professores de música como J. Dalcroze. A partir desses personagens, como apresenta a autora acima citada, a Educação Física ministrada na escola começou a ser vista como um instrumento fundamental para o aprimoramento físico dos indivíduos que, “condicionados” pelos exercícios, que por si só promovem a saúde, estariam melhor preparados para contribuir com a crescente indústria, com os exércitos, proporcionando, assim, prosperidade para a pátria.

Durante esse período, as aulas eram apresentadas por treinadores físicos, instrutores do exército, implantando métodos militares disciplinadores e hierárquicos, sendo esse sistema a base da construção da identidade pedagógica da Educação Física Escolar.

Grande parcela da história brasileira é apresentada com um caráter de colonização. Nesse processo de transplantação cultural, a Educação provavelmente tenha sido o setor que mais sofreu com seus efeitos deletérios, impedindo-nos de escapar de uma desconfortável situação de subdesenvolvimento. A Educação Física brasileira não foi exceção. No Brasil, durante as quatro primeiras décadas do século XX, a influência dos Métodos Ginásticos e da Instituição Militar foi fortemente sentida.

 

Nesse período, a Educação Física escolar era entendida como atividade exclusivamente prática, fato este que contribuiu para não diferenciá-la da instrução física militar. Certamente, também não houve uma ação teórico-prática de crítica ao quadro apontado, no sentido de desenvolver um corpo de conhecimento científico que pudesse imprimir uma identidade pedagógica à Educação Física mo currículo escolar (SOARES et al.,1992, p. 53).

 

Apenas em 1939 foi criada a primeira escola civil de formação de professores de Educação Física. Até os anos de1950, aEducação Física escolar continuou aprisionada ao Método Francês.

No que tange à evolução ocorrida na Educação Física Escolar, Oliveira (2004, p. 27) relata que:

 

 

O Esporte Para Todos, implantado recentemente, aparece como tentativa de democratização esportiva. Foi iniciado com a campanha "Mexa-se" (1975), pela televisão. Ainda é muito incipiente e corre o constante risco de manipulação ideológica no caso de não ser respeitado no conteúdo pedagógico-social que o anima. Este movimento, cada vez mais internacionalizado, coincide e é alimentado por uma espécie de redescobrimento do corpo, que havia sido algo desprezado durante os anos hippies.

 

 

Deverá a escola, portanto, agir no sentido de desenvolver uma Educação Física que possibilite ao aluno um contato com seu conteúdo de uma forma desmistificada, auxiliando para que os mesmos tenham subsídios para analisá-lo criticamente.

Implantar a Capoeira de forma sistemática na escola é uma ideia relativamente nova. Essa inserção levanta diversas discussões e pontos de vista polêmicos entre os estudiosos da Capoeira. O contato com o mundo da cultura do movimento por parte dos alunos se dá por meio das mais variadas formas, seja por meio televisivo, vídeo games, revistas especializadas, filmes, talvez por influência de amigos, clubes e academias pelas cidades. Normalmente esse contato se dá de forma deficiente, apresentando valores que privilegiam o mais forte em detrimento do mais fraco. Assim, o trabalho na escola deve ser realizado de modo que seja colocado como pilar a construção de uma sociedade igualitária, fraterna e justa, levando em conta o respeito mútuo, a amizade e a cooperação.

 

Segundo Souza (2008, p.23),

 

 

No período caracterizado como higienista, cujo conteúdo predominante era a ginástica, que compreende o início do século XX – década de 30 e início de 40 – a capoeira era reconhecida como Ginástica Nacional, mantendo relações com os militares. Getúlio Vargas autoriza a prática da Capoeira e Mestre Bimba cria a Capoeira Regional, aparecendo as primeiras academias. Já na Educação Física Escolar, nesse período, predominam os Métodos Ginásticos Europeus com o pensamento eugenista/higienista, cujo objetivo era buscar por corpos saudáveis e a prática de exercícios físicos (...) Nas décadas de 60 e 70, caracterizado como período técnico/ esportivo a Capoeira sai das ruas e começa a adquirir espaço nas academias, sendo percebida maior valorização no conhecimento dos mestre. A Capoeira Regional torna-se Esporte Nacional e vincula-se à Confederação Brasileira de Pugilismo. Na Educação Física Escolar há uma valorização dos aspectos sociais, no jogo, do pensamento esportivista com seleção dos mais aptos, da função de descobrir atletas e do esporte-educação-saúde.   

  

 

Já a partir dos anos de 1980, apresentam-se novas visões relacionadas à cultura corporal, ocorrendo na Educação Física Escolar críticas ao modelo adotado até então, com a franca valorização dos jogos, esportes, ginásticas, danças e também a Capoeira. Nesse tempo, em que a Educação Física Escolar passa por uma reformulação, começam a surgir propostas para a aplicação da Capoeira no ensino escolar.

Kunz (2006) considera que tendo em vista que a escola é um ambiente aonde o aluno vai para aprender, conhecer, enfim, para se educar, pode-se afirmar que a escola seja um campo de intervenção educacional intencional. Portanto, na escola não se deve treinar alunos, mas sim ensiná-los de forma prazerosa e produtiva. Ora, sendo assim conclui-se que a Capoeira deve ser não só praticada, mas também estudada em toda a sua essência.

 

 

A capoeira, essa arte de origem controversa e que ainda desperta muita polêmica, emergiu no bojo das camadas populares e adentra as instituições públicas e privadas de forma arrebatadora e efusiva, sendo capaz de um pouco mais de quatrocentos anos de trajetória estar presente na maior parte das escolas, clubes, universidades, academias, dentre outros, se firmando com força em vários países do mundo, força esta, que ora estamos precisando verificar os interesses ideológicos que estão sendo defendidos nas entrelinhas de sua expansão pelo mundo (MOREIRA, 2010).

   

 

Analisando o contexto apresentado acima, podemos imaginar a dimensão do “problema” e das adaptações que foram necessárias para inserir a Capoeira no âmbito escolar, visto que a Capoeira historicamente foi apresentada como referência de contestação da lógica vigente e que seu embasamento teórico e filosófico foca-se em uma simbologia que ultrapassa o conceito de educação escolar, ratificando o verdadeiro conceito de educação, que não estabelece fronteiras, nem limites para as relações de ensino-aprendizagem.

Roger Dangeville (apud Moreira, 2010) afirma que:

 

 

Quando a escola é a aldeia, a educação existe onde não há escola e por toda parte pode haver redes e estruturas sociais, de transferência de saber de uma geração a outra, onde ainda não foi sequer criada a sombra de um modelo de ensino formal e centralizado. Porque a educação aprende com o homem a continuar o trabalho da vida. A vida que transporta de uma espécie para outra, dentro de história da natureza, e de uma geração a outra de viventes, dentro da história da espécie, os princípios através dos quais a própria vida aprende a ensinar a sobreviver e a evoluir em cada tipo de ser.

 

 

A forma de aplicação da Capoeira na escola se faz de maneira particular, uma vez que a “luta” da Capoeira se transforma, numa atividade na qual a formação profissional (trabalho teórico e prático) se torna essencial para o pleno sucesso do educador ao desenvolver seu trabalho.

Kunz (2006) menciona que a mais importante referência do ensino-aprendizagem do conteúdo da Capoeira em ambiente escolar é o aluno, e não a Capoeira que ele pratica, contudo, sem deixá-la de lado, obviamente. Dessa forma, o que mais importa é o aluno e suas relações com a Capoeira. Ela defende que o método de ensino da Capoeira deve contar com estratégias, em que cada participante assumirá um papel dentro do processo de ensino-aprendizagem, no qual professores e alunos serão desafiados a ampliar seus conhecimentos acerca da Capoeira e do mundo, através de processos didáticos-pedagógicos críticos, que questionam a adaptação e a submissão, visando ao esclarecimento, à competência e à autonomia. Também considera que a aula deve ser aplicada fora dos padrões usuais (aquecimento, parte principal e volta à calma). Para tanto, faz a proposta de adoção de estratégias didáticas como: encenação, problematização, ampliação e reconstrução coletiva do conhecimento.

A encenação seria simular situações de jogo, rituais diversos da Capoeira como: desenvolver o jogo nos moldes da Capoeira Angola e Regional, jogar acompanhando o som do berimbau e a cadência do atabaque etc. Também deixar o aluno livre para criar e descobrir diferentes estratégias, pesquisando a arte e suas transformações ao longo se sua história.  

A problematização seria a discussão das variadas situações de ensino levantadas no processo de encenação. Ou seja, não se deve apenas denunciar as contradições e os conflitos que possam surgir, mas sim disponibilizar formas de entendimento e acordo.

A ampliação processa-se por meio de levantamento de todos os problemas e dificuldades encontrados, assim como na demonstração por parte de professores e alunos de contribuições que aumentem o leque visual em relação à temática trabalhada.

E, por fim, a reconstrução coletiva do conhecimento que faz o trabalho de desmistificar o tema a partir de estudos e discussões coletivas das atividades desenvolvidas anteriormente. Tem como objetivo a autonomia e emancipação do aluno frente ao objeto trabalhado. Esse processo visa proporcionar ao professor e ao aluno uma visão ampla da Capoeira e suas particularidades, sem os vícios históricos, sectarismos, visões limitadas, incompatíveis com um modelo de educação crítica.

Esse processo se dá por inúmeros caminhos, tais como: apresentação de vídeos sobre a história da Capoeira, visitas de grupos de Capoeira à escola e de alunos da escola aos grupos, respectivamente. Aulas de fabricação e aprendizado musical de instrumentos e os significados de cada toque, e também através de pesquisas bibliográficas e via internet, além de discussões e reflexões acerca do tema.  

Kunz (2006, p.65) afirma que a ludicidade se apresenta como um dos elementos mais positivos da Capoeira, citando Tavarez (1964), que declara que “a Capoeira sempre teve ambiente festeiro”.

Partindo desse conceito, pode-se constatar que a Capoeira se apresenta numa atividade em que o jogo, a dança, a luta, a “malandragem” (no sentido lúdico da palavra), a ginga e a socialização se interligam fortemente.

Quando se fala em Capoeira, as palavras inclusão e cidadania devem vir sempre atreladas, pois, a Capoeira, como já mencionado anteriormente, engloba elementos de dança, jogo, luta e música. Tais elementos são partes integrantes do cotidiano de todo e qualquer individuo, sendo ponto comum no desenvolvimento das práticas relacionadas à Capoeira, como o próprio jogo, o maculelê, o samba de roda, etc.

Focando a Capoeira e sua relação com outras manifestações, Bruhns (2000) menciona que a ginga, como gesto corporal, se faz presente no samba, no futebol e na Capoeira. Essa afirmação leva ao encontro do termo “cidadania”, pois a capacidade de gingar se refere ao jogo de cintura frente aos conflitos, desigualdades, e que, na roda de Capoeira, todos têm o direito de jogar, se divertir, pois, como diz uma canção sempre lembrada no universo da Capoeira: “Capoeira é pra homem, menino e mulher”.

Além disso, Santos (1990) descreve que a Capoeira se torna uma atividade de grande importância para as crianças uma vez que a Capoeira é uma atividade histórico-político-social e cultural, e que sua expressão se dá por meio do canto, dos instrumentos musicais e dos próprios movimentos corporais e sua simbologia.

A partir das considerações levantadas acerca da Educação Física Escolar, da Capoeira e suas variações, percebe-se que a evolução histórica da Capoeira confunde-se com a evolução da Educação Física e da própria sociedade brasileira, desvelando paradigmas, vencendo preconceitos e firmando-se em seus campos de atuação.

A Capoeira, com toda sua riqueza histórica, apresenta-se como fonte ainda pouco explorada pelos meios de educação, sendo ainda um diamante bruto a ser lapidado. E esse processo de lapidação deve ser executado de forma lúdica, entrelaçando-se com os conteúdos escolares, proporcionando ao aluno uma atividade crítica reflexiva e produtiva, tanto no campo educacional, como no social e esportivo.

Foi explicitada a imagem positiva da arte da Capoeira, seus personagens principais e sua forte relação com a cultura e a história brasileira de forma geral. Entretanto, ressaltando o conhecimento prático e teórico por parte do professor, para que as informações em torno da Capoeira não sejam transmitidas de forma errônea, sem ranços, nem vícios históricos.

        Portanto, tal vivência educacional vem corroborar que um conteúdo como a Capoeira, sendo orientado de forma responsável, é uma escolha acertada, valendo como atividade regular por toda vida, visto que a Capoeira é uma prática que abrange não só o desenvolvimento físico, e sim do indivíduo de forma plena.

 

 

 

 

 

 

REFERÊNCIAS

 

 

 

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BARBIERI, César. Um jeito brasileiro de ser. Brasília: Centro de Informação e Documentação sobre a Capoeira (Cidoca), 1993.

 

 

BRUHNS, Heloisa Turini. Futebol, carnaval e capoeira: entre as gingas do corpo brasileiro. Campinas: Papirus, 2000.

 

 

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MOREIRA, Ramon; Moreira, Najara. Capoeira: sua origem e sua Inserção no contexto escolar. Disponível em: http://www.efdeportes.com/efd114/capoeira-sua-origem-e-sua-insercao-no-contexto-escolar.htm. Acesso em: 22 mai. 2010.

 

 

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PASTINHA, Mestre: Capoeira Angola, 3. ed. Salvador, 1988.

 

 

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SOUZA, Fábio Augusto Gomes de. Capoeira e Educação Física: Relações estabelecidas no contexto escolar. Juiz de Fora: Faculdade Metodista Granbery, 2008.

           

 

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Visite a Bahia Turismo e Eventos Ltda. Disponível em: http://www.visiteabahia.com.br/visite/historiadabahia/detalhes.php?id=10. Acesso em: 22 mai. 2010. 


[1] Acadêmico do Curso de Educação Física da Faculdade Metodista Granbery, Juiz de Fora/MG.                                                          Email: [email protected]

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Autor: Hugo Leonardo Esterci Araújo


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