Direitos humanos e cidadania: uma crítica à política de violação dos direitos humanos na ditadura militar



DIREITOS HUMANOS E CIDADANIA: uma crítica à política de violação dos direitos humanos na Ditadura Militar


BÁRBARA FERNANDES PERAZZO1
DANIELA BARRETO DA SILVA2


RESUMO
Este documento visa abordar a conceituação de “Direitos Humanos e Cidadania”, a partir de uma perspectiva histórica, de modo a evidenciar o progresso das conquistas alçadas pelo homem no decorrer de sua história, a fim de reconhecer a dignidade da pessoa humana, independentemente das diferenças existentes entre os homens. Será feita, ainda, uma análise acerca da positivação de tais direitos nos dispositivos constitucionais, bem como de sua eficácia jurídico-social. Além disso, o ponto principal deste é a formação de um pensamento crítico sobre os acontecimentos caracterizadores do regime ditatorial que vigeu no Brasil entre os anos de 1964-1985, sobretudo no tocante à violação dos direitos humanos, e a atual instalação de uma comissão, denominada “Comissão Nacional da Verdade” que vem buscar e fornecer respostas sobre os diversos crimes cometidos nesse período, de modo a concretizar a busca pelos ideais da democracia e da dignidade da pessoa humana no âmbito deste Estado Democrático de Direito.
PALAVRAS-CHAVE: Direitos humanos, dignidade humana, ditadura militar.
ABSTRACT
This document aims to address the concept of "Human Rights and citizenship", from a historical perspective, in order to highlight the progress of achievements by authorizations in the course of its history man, in order to recognize the dignity of the human person, regardless of the differences between the men. Will be made also an analysis about positivization of such rights in constitutional devices, as well as its social and legal effectiveness. In addition, the main point of this is the formation of a critical thinking about the events that characterize the dictatorial regime that was in Brazil between 1964-1985, particularly with regard to human rights violations, and the current installation of a Commission, called "National Commission of truth" that comes to seek and provide answers about the various crimes committed during this periodin order to make the search for the ideals of democracy and human dignity within the framework of the democratic State of law.
KEY WORDS: Right Humans, dignity of human person, military dictarorship.
1 Acadêmica do Curso de Direito da Universidade Federal de Rondônia
2 Acadêmica do Curso de Direito da Universidade Federal de Rondônia
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SUMÁRIO
1. O QUE SÃO DIREITOS HUMANOS?
2. EVOLUÇÃO HISTÓRICA DOS DIREITOS HUMANOS
2.1 DO DIREITO NATURAL;
2.2 DA MAGNA CARTA DE 1215;
2.3 A DECLARAÇÃO NORTE-AMERICANA DE 1776;
2.4 A REVOLUÇÃO FRANCESA DE 1789 (DECLARAÇÃO DOS DIREITOS DO HOMEM E DO CIDADÃO).
3. ASPECTOS CORRELACIONAIS ENTRE “DIREITOS HUMANOS” E “CIDADANIA”
4. OS FUNDAMENTOS DA REPÚBLICA: um olhar sobre o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF);
5. TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS NO BRASIL
6. A DITADURA MILITAR NO BRASIL E A QUESTÃO DOS DIREITOS HUMANOS
6.1 Breve histórico
6.2 A violação dos direitos humanos
6.3 Uma análise da Comissão Verdade
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
8. REFERÊNCIAS
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1. O QUE SÃO DIREITOS HUMANOS?
Definir o que são “direitos humanos” não é tarefa simples, pois se trata de expressão detentora de amplo emprego e utilização, o que torna árduo o trabalho consistente na conceituação terminológica de tais palavras. São numerosas as explanações doutrinárias acerca do tema e não raras as divergências que causam polêmica quanto ao seu correto emprego, bem como afirma Tupinambá Nascimento, quando diz que “qualquer tentativa de definição de direitos humanos pode significar resultado insatisfatório e não traduzir para o leitor a exatidão, a especificidade de conteúdo e a abrangência”3.
Pois bem, Moraes (2007, p. 20) define direitos humanos fundamentais como “o conjunto institucionalizado de direitos e garantias do ser humano que tem por finalidade básica o respeito a sua dignidade, por meio de sua proteção contra o arbítrio do poder estatal, e o estabelecimento de condições mínimas de vida e desenvolvimento da personalidade humana”.
Tobeñas (1976, p. 267) define “direitos humanos como aqueles direitos fundamentais da pessoa humana, tanto individual como coletivamente, que correspondem a esta em razão de sua própria natureza [...] e que devem ser reconhecidos e respeitados por todo o poder e autoridade, inclusive as normas jurídicas positivas, cedendo, não obstante, em seu exercício, ante as exigências do bem comum”.
Importante se faz destacar que existe uma linha tênue entre direitos humanos e direitos fundamentais, estando um interligado ao outro. Tal distinção se deve também à correlação entre direito natural e direito positivo.
Para Siqueira Jr. (2007, p. 43), “os direitos humanos são aquelas cláusulas básicas, superiores e supremas, que todo o indivíduo deve possuir em face da sociedade em que está inserido”. Quando estes direitos são reconhecidos pelo Estado, adquirem o status de “direitos fundamentais”, através da sua incorporação nos textos constitucionais, limitando o poder estatal e efetivando as declarações dedicadas aos direitos do homem.
2. EVOLUÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS 3 NASCIMENTO, Tupinambá Miguel Castro do. Comentários à Constituição Federal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997, p. 211.
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Há muito é utilizado o termo “direitos humanos” nas relações sociais, remontando desde os primórdios da humanidade, estando relacionado à isso a criação do Estado e suas tradições, bem como suas crises. Para que essa compreensão se dê de modo eficaz, faz-se necessário um apontamento sobre os eventos que contribuíram para a formação conceitual moderna dos Direitos Humanos.
2.1 DO DIREITO NATURAL
O direito natural, como aponta Sófocles em sua obra “Antígona”4, é um direito universal, eticamente superior e que não é posto, sendo, portanto, anterior ao Direito Positivo.
Pode-se extrair tal concepção a partir do diálogo entre a jovem Antígona e o rei Creonte:
“Creonte – Portanto, tu ousaste infringir a minha lei?
Antígona – Descumpri mesmo. Quer saber por quê? Porque não foi Zeus que a proclamou! Não foi a Justiça, sentada junto aos deuses inferiores; não, essas não são as leis que os deuses tenham algum dia prescrito aos homens, e eu não imaginava que as tuas proibições fossem assaz poderosas para permitir a um mortal descumprir as outras leis, não escritas, inabaláveis, as leis divinas! Estas não datam nem de hoje nem de ontem, e ninguém sabe o dia em que foram promulgadas. Poderia eu, por temor de alguém, qualquer que ele fosse, expor-me à vingança de tais leis?”
Os estoicos desenvolveram uma ampla concepção de lei natural, que pode ser conhecida através da razão humana, afirmavam que a procura de uma moral devia ser feita através da contemplação da natureza, com isso poderia se encontrar a justiça universal, onde as leis humanas seriam uma imitação das leis naturais5.
O Cristianismo também deu sua contribuição ao Direito natural, pregando a igualdade de todos os homens sem nenhuma distinção, contribuindo para elevar a dignidade da pessoa humana. 4 SÓFOCLES. Antígona. Tradução de Jean Melville. São Paulo: Martin Claret, 2007. 5 GAARDEN, Jostein. O Mundo de Sofia. São Paulo, Cia. das Letras, 4 ed., 1995, p. 125.
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Conforme Santo Agostinho, se as leis terrenas (lex temporalis) contém disposições contrárias à lei eterna, estas normas não tem vigência e não devem ser obedecidas.
Para São Tomás de Aquino, a lei natural aparece como principio genérico, um corretivo superior que deve ser efetivado por meio da lei positiva.
A partir de Hugo Grotius, o Direito natural deixa de ser visto como vinculado à vontade divina e passa a ser fruto da razão inerente a todos os seres humanos.
Estes são apenas alguns dos infindáveis nomes que marcaram a história com suas teorias acerca do direito natural, predecessores dos princípios jurídicos contemporâneos que muito contribuíram para a formação dos ordenamentos que viriam posteriormente a eles.
2.2 A MAGNA CARTA DE 1215
A Magna Carta, outorgada pelo rei João Sem-Terra em 1215 na Inglaterra, é fruto da insatisfação de condes e barões ingleses devido ao anarquismo do referido rei. A Magna Charta Libertatum consistia na reunião de uma série de prerrogativas que eram dirigidas, em sua maioria, ao clero e à nobreza, sobretudo no tocante aos direitos personalíssimos. Na realidade, este foi um documento redigido a fim de privilegiar certas classes sociais, que ocasionou uma onda de revoluções, por dirigir tais liberdades e privilégios a um âmbito restrito da sociedade e, sobretudo, por ferir o princípio da igualdade de oportunidades. Apesar de tais eventos, foram instituídos alguns direitos e liberdades clássicas que acompanham, contemporaneamente, o direito vigente: o habeas corpus act, o devido processo legal (due process of law), a garantia de propriedade e, por derradeiro, o Bill of Rights, dedicado à assuntos parlamentares.
2.3 A DECLARAÇÃO NORTE-AMERICANA DE 1776
No século XVIII, durante a colonização inglesa em terras norte-americanas, foi instituído um elevado ônus tributário da metrópole (Inglaterra) à colônia (Estados Unidos da América). Esse fato ocasionou um movimento de cunho filosófico influenciado pelos ideais iluministas de John Locke, que sustentava a existência de leis naturais do contrato entre governantes e governados e da autonomia entre poderes do Estado, fundamentais
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à liberdade humana, conforme leciona Siqueira Jr.6. A natureza filosófica da revolução que originou a Declaração Norte-Americana se deve ao fato de o povo colonizado não admitir uma visão europeia que os caracterizasse como “um bando de arruaceiros” dispostos, a qualquer custo, a derrubar as imposições da monarquia inglesa.
O movimento rapidamente se espalhou, através de meios modestos, como jornais e panfletos que, por serem de fácil confecção e divulgação, propiciaram, de maneira eficaz, a difusão dos ideais propostos. Era uma forma de publicidade democrática.
Seu líder foi Thomas Jefferson que, partindo do porto de Boston, em 1775, liderou a chamada “revolução generalizada”. Para Jefferson, em carta escrita a Henry Lee em 1825, os revolucionários tinham o desejo de “justificar-se perante o tribunal do mundo”.
2.4 A REVOLUÇÃO FRANCESA DE 1789 (DECLARAÇÃO DOS DIREITOS DO HOMEM E DO CIDADÃO)
A Revolução Francesa, ocorrida no final do século XVIII originou-se, assim como a maioria dos conflitos que aconteceram nesse período, a partir da insatisfação popular perante a incompetência dos governantes, que se mantinham indiferentes quanto à situação das classes desfavorecidas, que sofriam notável opressão. O movimento tinha por escopo derrubar a monarquia e proclamar a república.
A Tomada da Bastilha (prisão do Estado) é considerada o marco inicial da Revolução Francesa, onde foi promovida uma insurreição popular contra o governo. Eis os fatores que motivaram esse evento: o absolutismo da dinastia Bourbon, a crise financeira provocada pelas guerras externas, a doutrina iluminista dos filósofos, economistas e enciclopedistas, a propagação dos ideais democráticos, a desigualdade social e a ascensão da burguesia, por exemplo.
Em 26 de agosto de 1789, ocorreu a chamada “consagração normativa dos direitos humanos fundamentais”, quando a Assembleia Nacional promulgou a
6 SIQUEIRA JR, Paulo Hamilton. Direitos Humanos e Cidadania. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 85.
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Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, contendo 17 artigos, com os ideais de liberdade, fraternidade e igualdade7. Esse acontecimento deu origem posteriormente, mais especificamente no ano de 1791, à primeira Constituição francesa, que viria a ser aprimorada pela Constituição de 1793, consagrando direitos e princípios referentes à igualdade, liberdade, segurança, legalidade, propriedade, devido processo legal, ampla defesa, proporcionalidade entre delitos e penas e presunção de inocência, além de importantes direitos políticos.
No tocante à elaboração da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, afirma Paine (1988, p. 129):
Os representantes do povo francês [...], compreendendo que a ignorância, o esquecimento e o desprezo pelos direitos do homem são a causa única da infelicidade pública e da corrupção do governo, decidiram expor, numa declaração solene, os direitos naturais, inalienáveis e sagrados do homem, a fim de que essa declaração, estando sempre presente em todos os membros do corpo social, lembre-lhes de seus direitos e deveres.
De um modo geral, foram esses acontecimentos que propiciaram uma gradativa evolução do pensamento humano acerca dos direitos que garantem sua real existência na sociedade política, ocasionando o fenômeno da positivação jurídica de tais direitos como os conhecemos hodiernamente.
3. ASPECTOS CORRELACIONAIS ENTRE “DIREITOS HUMANOS” E “CIDADANIA”
Cidadania é uma expressão originária do Latim. Na Grécia de Platão e Aristóteles eram considerados cidadãos todos aqueles que estavam em condições de opinar sobre os rumos da sociedade. Era pequeno o número de cidadãos, que excluía os homens ocupados, mulheres, escravos e estrangeiros.
Lafer (2006, p.150) entende que a igualdade resulta da organização humana, que é o meio de igualizar as diferenças por intermédio das instituições. É o caso da polis, que tornava os homens iguais através da lei. Perder o acesso à esfera pública equivalia a privar-se da igualdade. A esfera privada, vinculada às atividades de sobrevivência do indivíduo, era o espaço de sujeição no qual a mulher, o escravo e os
7 SIQUEIRA JR., 2007, p. 89.
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filhos, destituídos de direitos, estavam sob o domínio despótico do chefe de família e a proteção das divindades domésticas.
Em Roma, também se encontra, patente, a ideia de cidadania como capacidade para exercer direitos políticos e civis e a distinção entre os que possuíam essa qualidade e os que não a possuíam.
Na época medieval, em razão dessa índole hierarquizada, das estruturas em classes sociais dilui-se o principio da cidadania. O homem medieval ou era vassalo, ou servo ou suserano, jamais cidadão.
Já no final da Idade Moderna observa-se um sério questionamento das distorções e privilégios que a nobreza e clero mantinham sobre o povo. É ai que começa a despontar personagens que marcariam a historia da cidadania, como Diderot, Jean-Jacques Rousseau, Barão de Montesquieu, Thomas Hobbes e outros que, juntos, foram mentores do movimento iluminista. Desde o advento do Estado liberal, o conceito de cidadania refere-se intimamente à capacidade de exercer o poder político, mediante, sobretudo, o processo eleitoral.
Expôs Hannah Arendt (1956, p. 179 apud LAFER, 2006, p. 227) acerca do assunto em questão
“A cidadania é o direito a ter direitos, pois a igualdade em dignidade e direitos dos seres humanos não é um dado. É fruto da convivência coletiva, que requer o acesso ao espaço público. É este acesso ao espaço público que permite a construção de um mundo comum através do processo de asserção dos direitos humanos."
Nessa mesma perspectiva, visualizando a correlação existente entre Cidadania e Direitos Humanos, posiciona-se Pinsky (2008, p. 144), ao dizer que “exercer a cidadania plena é ter direitos civis, políticos e sociais, fruto de um longo processo histórico que levou a sociedade ocidental a conquistar parte desses direitos. Cidadania não é uma definição estanque, mas um conceito histórico, o que significa que seu sentido varia no tempo e no espaço”.
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A cidadania instaura-se a partir dos processos de lutas que culminaram na Declaração dos Direitos Humanos, dos Estados Unidos da América do Norte, e na Revolução Francesa. Esses dois eventos romperam com o princípio de legitimidade que vigia até então, baseado nos deveres dos súditos, e passaram a estruturá-lo a partir dos direitos do cidadão. Desse momento em diante todos os tipos de luta foram travados para que se ampliasse o conceito e a prática de cidadania e o mundo ocidental o estendesse para mulheres, crianças, minorias nacionais, étnicas, sexuais. Nesse sentido pode-se afirmar que, na sua acepção mais ampla, “cidadania é a expressão concreta do exercício da democracia".
Na terminologia atual, cidadão é o indivíduo vinculado à ordem jurídica de um Estado.
Nesse mesmo sentido se posiciona Arendt (1956, p. 151) ao analisar em sua obra “As Origens do Totalitarismo” o fenômeno dos Estados Totalitários e suas consequências para os apátridas no que diz respeito aos direitos humanos: “Na prática, o resultado da identificação dos direitos humanos com a nação foi que tais direitos passaram a existir apenas como direitos nacionais e só podiam ser exercidos quando o individuo se imbuia da qualidade de nacional de um Estado, isto é, de cidadão”. E completa ao dizer que as atrocidades cometidas nos campos de concentração e de extermínio pelos regimes totalitários durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) mostram que os direitos humanos são vazios e inúteis quando não estão vinculados a um ordenamento jurídico positivado.
3.1 Cidadania no Brasil
O termo cidadania, no Brasil, tem sido comumente empregado para definir a condição daqueles que, como nacionais, exercem direitos políticos.
Nacionalidade e cidadania não mais se confundem. Nacionalidade é vinculo ao território estatal por nascimento ou naturalização. A cidadania é um “status” ligado ao regime político. Cidadão é o titular de direitos políticos e a nacionalidade é pressuposto da cidadania. Nesta perspectiva, os direitos relacionados à cidadania se adquirem através do alistamento eleitoral.
Na seara da internacionalização dos direitos humanos, a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) passou a considerar cidadão “todos aqueles que habitam o
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âmbito de soberania de um Estado e deste Estado recebem uma carga de direito políticos, civis, sociais, culturais e econômicos e também deveres”.
A história da cidadania no Brasil liga-se diretamente ao estudo histórico da evolução constitucional no país, bem como está atrelada à luta pelos direitos fundamentais da pessoa humana.
A sociedade colonial se estruturou com a unidade produtiva do latifúndio e com a mão de obra escrava (indígena e africana). Numa sociedade que excluía a maior parte da população das condições dignas de vida, ser considerado cidadão tornou-se privilégio da elite.
Apesar de ter se tornado independente em 1822, em nada mudou a estrutura e os processos sociais, políticos e econômicos do Brasil. A mesma elite se manteve no comando dos destinos do país, com a mesma lógica de exclusão e exploração. Esta condição se agravou, ironicamente, com a Abolição da Escravatura, proclamada em 1888, quando um enorme contingente de pessoas foi assolado pela completa exclusão socioeconômica.
Após a Proclamação da República em 1889, em razão do déficit na educação e do grande índice de analfabetismo, desenvolveram-se práticas como o voto do cabresto, a política do café com leite, o coronelismo e o populismo, que fizeram com que a população de maior interesse nos rumos políticos do país ficasse aquém de toda e qualquer decisão e participação política. Esta classe era coagida a votar nos candidatos que favoreciam os interesses pessoais da elite dominante.
Os anos de 1930, porém, foi um divisor de águas na história do país. Foi criada uma legislação trabalhista e previdenciária, além de um Código Eleitoral e a promulgação de uma Constituição (1934) que instituía o sufrágio universal. O art. 108 da Constituição de 1934 dispõe que “são eleitores os brasileiros de um e de outro sexo, maiores de 18 anos, que se alistarem na forma da lei”.
Apesar desses fatos, em 1964 os ideais democráticos e de cidadania sofreram um duro golpe de Estado promovido pelos militares que instalaram um governo ditatorial por 21 anos (194-1985). Foi um período marcado por ditaduras em toda a América Latina. Em contraposição, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 possibilitou a transição para um regime democrático efetivo. A referida Carta Política
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incorporou em seu texto a concepção contemporânea de cidadania introduzida pela Declaração Universal dos Direitos Humanos e ratificada pela Conferência de Viena de 1993. Observa se que a Carta política de 1988 ratifica este novo conceito de cidadania tendo na dignidade da pessoa humana seu sentido maior. Mazzuoli (2001) afirma que
“Somente com a colaboração de todos os partícipes da sociedade e do Estado, é que os direitos humanos fundamentais alcançarão a sua plena efetividade. O papel de cada um na construção desta nova concepção de cidadania é fundamental para o êxito dos objetivos desejados pela Declaração Universal de 1948 e pela Carta Constitucional brasileira8.”
A Constituição brasileira de 1988, marco fundamental do processo de institucionalização dos direitos humanos no Brasil, recebe os tratados internacionais de proteção aos direitos humanos com índole e nível constitucional, além de dar aplicação imediata às suas normas devidamente incorporadas, dada a sua natureza de emenda constitucional. A abertura do sistema se deu no art. 5.º, § 2.º, que dispõe: "Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte".
Assim, não mais se trata de se definir a cidadania como simples qualidade daquele que possui direitos políticos, mas sim de atribuir um núcleo mínimo e irredutível de direitos (fundamentais) que deve ser imposto obrigatoriamente à ação dos poderes públicos.
4. OS FUNDAMENTOS DA REPÚBLICA: um olhar sobre o princípio da dignidade da pessoa humana
Os direitos humanos, em sua essência, tem caráter universal, o que lhes confere uma identidade comum a todos. Entretanto, cabe dizer que tal universalização não implica na homogeneização dos indivíduos, visto que estes devem ser tratados de
8 MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Direitos humanos, cidadania e educação: uma nova concepção introduzida pela Constituição Federal de 1988. Artigo elaborado em 05/2001 e disponível em: http://jus.com.br/revista. Acesso em: 23 de abril. 2012.
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acordo com as normas que constituem o Estado. Morais (2008) afirma que a Constituição é o instrumento jurídico que dá forma aos direitos humanos.
Dispõe a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, em seu artigo 1º, incisos I a V, sobre os fundamentos que a regem. Desse modo, lê-se:
Art. 1º - A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
I – a soberania;
II – a cidadania;
III – a dignidade da pessoa humana;
IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
V – o pluralismo político.
Moraes (2007, p. 61) afirma que “a dignidade da pessoa humana é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se em um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar (...)”.
O Direito Romano proporcionou, através de Ulpiano, importante político de Roma, uma tríade que hoje é a base da concepção do princípio da dignidade humana: viver honestamente, não causar dano a ninguém e dar a cada um o que lhe é devido (honestere vivere, alterum non laedere e suum cuique tribuere). Tal preceito vem para reforçar a exigência de que o indivíduo deve respeitar a dignidade de seu semelhante tal como exige que lhe respeitem a própria, como bem dispõe a Constituição da República. Desse modo, ainda sob a ótica de Moraes (2007, p. 61)
“o princípio fundamental consagrado pela Constituição Federal da dignidade da pessoa humana apresenta-se em uma dupla concepção. Primeiramente, prevê um direito individual protetivo, seja em relação ao próprio Estado, seja em relação aos demais indivíduos. Em segundo lugar, estabelece verdadeiro dever fundamental de tratamento igualitário dos próprios semelhantes”.
As ideias acerca da dignidade da pessoa humana remontam de vários séculos antes de sua idealização jurídico-político-filosófica. Assim como em outras abordagens temáticas, cumpre discorrer que a dignidade humana também dispõe de um pensamento que evoluiu ao longo da história.
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Nos primórdios da humanidade, as crenças dos povos estavam basicamente ligadas à religião e às crenças que regiam a vida das sociedades da época. Os valores relacionados à vida, à liberdade e à dignidade também estavam submetidos ao aspecto teológico da vida desses povos. Sob a ótica cristã – uma das religiões professadas mais importantes da história da humanidade – a dignidade diz respeito ao fato de que o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus. Tal visão constitui a premissa da qual o Cristianismo extraiu a consequência de que o ser humano é dotado de um valor intrínseco, não podendo ser transformado em mero objeto ou instrumento. Entretanto, apesar este conceito ser encarado como a noção de dignidade, na Bíblia Sagrada não é possível encontrar uma concepção clara e direta sobre dignidade. Porém, essa explanação religiosa transcendeu os séculos e influenciou notadamente o pensamento de Immanuel Kant.
Além disso, há ainda o pensamento clássico, fortemente influenciado pela filosofia e pela política, que ligava a dignidade da pessoa humana à posição social que este ocupava na sociedade o seu grau de reconhecimento pelos demais cidadãos. O nível de dignidade, então, era quantificado e modulado, sendo as pessoas classificadas como mais dignas ou menos dignas.
O pensamento estoico, por sua vez, hierarquizava o homem num patamar superior aos demais seres, pois sendo aquele dotado de razão e dignidade, que está intimamente ligada à noção da liberdade pessoal de cada indivíduo, o distinguia das demais criaturas da terra, que vivem apenas em função de seus instintos. No mais, considerava que todos os homens são iguais em dignidade, podendo este pensamento ser considerado um dos mais evoluídos de sua época.
Em Roma, por exemplo, as formulações de Cícero propiciaram o desenvolvimento de uma compreensão do termo “dignidade” desvinculada do cargo ocupado ou posição social. Dessa forma, é possível fazer um reconhecimento da coexistência moral e sociopolítica de dignidade.
Durante a Idade Média, São Tomás de Aquino foi quem se destacou no tocante ao pensamento sobre a dignidade humana ou, como ele preferia dizer, dignitas humana. A elaboração de sua concepção sobre o tema foi fortemente influenciada pelos pensamentos cristão e estoico. Desse modo, conclui-se que a ideia de São Tomas de Aquino está intimamente ligada à concepção de que o homem foi criado à imagem e
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semelhança de Deus, além da sua capacidade de autodeterminação naturalmente inerente. A partir de tais características, foi possível determinar, sob a concepção de S. Tomás de Aquino e de uma ótica estritamente teológica, o contexto do que seria “dignidade”.
A ótica antropocêntrica, já no período renascentista, juntamente aos princípios católicos, revela uma visão humana baseada na grandeza, na superioridade do homem em relação às demais criaturas existentes. Segundo Giovanni Pico della Mirandola, ao homem foi outorgada uma natureza indefinida, para que este fosse independente, soberano e artífice. Essas capacidades constituiriam aquilo que ele próprio quer e deseja.
Entre os demais estudiosos do assunto, podemos citar Immanuel Kant - que defendia a tese de que a dignidade é parte da autonomia ética do ser humano, e que este não pode ser tratado como objeto - e Samuel Pufendorf – afirmava que mesmo o monarca deveria respeitar a dignidade da pessoa humana.
Hegel, por sua vez, defende a ideia de que o ser humano não nasce digno, que a dignidade não lhe é um atributo inerente. O homem, segundo o filósofo, só adquire dignidade quando assume sua condição de cidadão. Na filosofia do Direito, a dignidade é o resultado do reconhecimento de que cada pessoa deve respeitar os outros como pessoas.
A Declaração Universal dos Direitos do Homem (Paris, 10 de dezembro de 1948) possui, em seu texto, cerca de trinta artigos que consagram princípios referentes à dignidade da pessoa humana: direito à vida, à igualdade (vedação de qualquer tipo de discriminação, seja em razão de sexo, cor, convicções políticas, religiosas etc.), à liberdade, à honra, à imagem, à intimidade, proibição à tortura, ao tratamento ou castigo cruel, degradante ou desumano, direito ao devido processo legal, ao contraditório e à ampla defesa, ao princípio do juiz natural etc.
No Brasil, a CF dispõe que constituem direitos sociais: o direito à educação, à saúde, ao trabalho, à moradia, ao lazer, à segurança, à previdência social, a proteção à maternidade e à infância e a assistência aos desamparados (art. 6º).
De acordo com Sarlet (2007, p. 175), a dignidade é considerada por muitos como qualidade intrínseca à condição de ser humano, dado o fato de que um é
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indissociável do outro (dignidade e condição humana), ou seja, se um fosse destruído, o outro também o seria.
Siqueira Jr. (2007, p. 76) afirma que a dignidade da pessoa humana é o alicerce do ideário dos direitos humanos, e que este tem como desafio a sua concretização, que constitui o meio mais eficaz de sua realização plena. O respeito e a proteção à dignidade constituem uma meta permanente da humanidade, do Estado e do Direito.
5. TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS NO BRASIL
A constituição de 1988, denominada “Constituição Cidadã”, teve como uma de suas várias inovações, no que diz respeito à proteção aos direitos fundamentais, a ratificação de diversos tratados internacionais de direitos humanos. Corroborando a afirmativa supramencionada: “Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais” (CF, art. 5º, § 3º).
Ressalte-se que, assim como as normas internas de direitos humanos, todos os dispositivos contidos nos referidos tratados também gozam do status de clausula pétrea, não podendo, pois, serem suprimidos, nos termos do art.60, §4°,IV, da Magna Carta. Levando- se em conta, ainda, o art. 29 do Pacto de São José da Costa Rica, do qual o Brasil é signatário, que diz: “Nenhuma disposição da presente convenção pode ser interpretada no sentido de: a) permitir a qualquer dos Estados- partes, grupo ou individuo, suprimir o gozo e o exercício dos direitos e liberdades reconhecidos na convenção ou limitá-los em maior medida do que a nela prevista e; b) limitar o gozo ou exercício de qualquer direito ou liberdade que possam ser reconhecidos em virtude de leis de qualquer dos Estados-partes”.
O jurista brasileiro Antônio Augusto Cançado Trindade, juiz da Corte Interamericana de Direitos Humanos, propôs, perante a Assembleia Nacional Constituinte, a inserção do princípio da prevalência dos direitos humanos no artigo 5º, §
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2º, CF, de modo que os tratados internacionais prevaleçam quando forem benéficos às normas constitucionais em vigor9.
Os tratados que o país ratificou funcionam como eixos norteadores das ações do Estado e como parâmetros mínimos a serem respeitados. Além disso, o Direito Internacional se conjuga com as normas internas para ampliar, fortalecer e aprimorar o sistema de proteção dos Direitos Humanos, tendo em vista a dignidade da pessoa humana.
Sob essa perspectiva, a do Brasil como signatário de diversos tratados internacionais que versam sobre direitos humanos, sobretudo após a promulgação da Constituição de 1988 e com a finalidade de preservar e garantir com mais efetividade os direitos e garantias da pessoa humana e a incidência dos mesmos no plano interno com status de norma constitucional, analisar-se-á a política de “institucionalização” da violação dos direitos humanos durante a Ditadura Militar no Brasil.
6. A DITADURA MILITAR NO BRASIL E A QUESTÃO DOS DIREITOS HUMANOS
6.1 Breve histórico
Em plena década de 60, quando o mundo, sobretudo os Estados Unidos da América e a União Soviética partiam em busca da corrida armamentista sob a égide da Guerra Fria, o Brasil se viu mergulhado numa ditadura que destituiu o então presidente da República, João Goulart. Os militares responsáveis pelo golpe alegavam que sua gestão enfatizou as reformas de cunho social, contrariando os interesses das classes conservadoras. Nesse período ocorreu um fortalecimento do poder central, principalmente do Executivo, quando a este se atribuiu a função de legislar e o alto comando das Forças Armadas passou a controlar a sucessão presidencial10.
O primeiro presidente da ditadura foi o marechal Humberto de Alencar Castello Branco( abril de 1964 a julho de 1967), que suspendeu direitos políticos dos cidadãos, 9 In MAZZUOLI, Valério de Oliveira. A influência dos tratados internacionais de direitos humanos no direito interno. Artigo elaborado em 06/1999. Disponível em: http://jus.com.br/revista/texto/1608/a-influencia-dos-tratados-internacionais-de-direitos-humanos-no-direito-interno. Acesso em: 12 de maio. 2012.
10 Disponível em: http://www.sohistoria.com.br/ditadura/. Acesso em: 28 de maio. 2012.
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realizou a cassação de mandatos parlamentares, estabeleceu eleições indiretas para governadores, dissolução dos partidos políticos, permanecendo apenas a Aliança Renovadora Nacional(ARENA),representando os militares e o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), que reuniu a oposição consentida.
Castello Branco é sucedido por Arthur Costa e Silva, em 1966, que enfrentou a organização dos setores oposicionistas, entre eles o movimento estudantil universitário. Em resposta às reivindicações contra a ditadura o governo radicalizou as medidas repressivas, entre elas o decreto do Ato Institucional nº 5, que aposentou juízes, cassou mandatos, acabou com as garantias de habeas corpus e aumentou a repressão militar e policial. O fato mais significativo foi o fechamento (recesso) do Congresso Nacional.
Por motivos de saúde que impossibilitaram a sua permanência no governo, Costa e Silva foi substituído por uma junta militar formada pelos ministros Aurélio de Lira Tavares (Exército), Augusto Rademaker (Marinha) e Márcio de Souza e Melo (Aeronáutica). Com isso, em 1969 foi aprovada a Lei de Segurança Nacional que previa a pena de morte para os crimes de subversão11. Emílio Garrastazu Médici (1969-1974) assume a posse do governo após a junta militar. Seu mandato ficou conhecido como o mais repressivo da ditadura, onde exílios, prisões, torturas e desaparecimento de cidadãos faziam parte da rotina de violência imposta à sociedade. O Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) e Destacamento de operações e informações – Centro de operações de Defesa Interna (DOI – CODI) ficaram conhecidos à época pela brutal repressão policial- militar, além da censura aos meios de comunicação e toda forma de manifestação cultural. Ernesto Geisel subiu à Presidência em 1974, com um mandato que durou cinco anos. No seu governo, tendo em vista e expressiva vitória do MDB nas eleições, Geisel previu a impossibilidade de manter os militares indefinidamente no poder. Durante seu mandato, iniciou-se a lenta e gradual abertura à redemocratização. Em 1978, Ernesto Geisel revogou o Ato Institucional nº5 e restaurou o habeas corpus.
Em seguida assume para presidente João Baptista de Oliveira Figueiredo (março de 1979 a março de 1985), último presidente dos vinte e um anos de ditadura
11 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/. Acesso em: 13 de abril. 2012.
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militar. O grande marco de seu mandato foi a aprovação da Lei nº 6.683 de 28 de Agosto de 1979, a Lei de Anistia, que permitiu o retorno dos exilados políticos ao país, concedendo perdão aos crimes de caráter político e aos militares responsáveis pela tortura, morte e desaparecimento dos cidadãos. Ao final do governo de Figueiredo, surgiu o movimento das Diretas Já, clamando pelas eleições diretas para Presidente da República através da emenda constitucional Dante de Oliveira, no entanto a emenda foi rejeitada pela Câmara dos Deputados, neste sentido o presidente Tancredo Neves foi escolhido indiretamente por um Colégio eleitoral, Tancredo, no entanto veio a óbito assumindo seu vice José Sarney.
6.2 A violação dos direitos humanos: breve exposição sobre o uso da tortura durante o Regime Militar
Durante a ditadura, infelizmente, a tortura se tornou uma prática rotineira para que a ideologia dos militares fosse efetivada e, sobretudo para coagir e punir os contraventores do regime. O princípio da segurança nacional foi utilizado como pressuposto para a realização de graves violações aos direitos humanos, estabelecendo-se assim uma institucionalização do uso da violência contra os cidadãos pelo próprio Poder Público. Nesta mesma ótica, pode-se visualizar a máxima presente na obra “O Príncipe”, de Nicolau Maquiavel, onde este afirma que “os fins justificam os meios”. Desse modo, tendo-se em vista o combate ao comunismo, qualquer meio utilizado pelos agentes de segurança eram legítimos e justificáveis. Foucault (1987, p. 37) leciona sábias palavras acerca do suplício dos homens perante a tortura:
“O próprio excesso das violências cometidas é umas das peças de sua glória: o fato de o culpado gemer ou gritar com os golpes não constitui algo de acessório e vergonhoso, mas é o próprio cerimonial da justiça que se manifesta em sua força. Por isso, sem dúvida é que os suplícios se prolongam ainda depois da morte: cadáveres queimados, cinzas jogadas ao vento, corpos arrastados na grade, expostos à beira das estradas. A justiça persegue o corpo além de qualquer sofrimento possível”.
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Ainda na gestão do último presidente da ditadura. João Baptista de Oliveira Figueiredo, foi aprovada a Lei de Anistia (Lei nº 6.683/1979), que concede perdão aos crimes de caráter político e aos militares responsáveis pela tortura, morte e desaparecimento dos cidadãos.
Recentemente, o Brasil foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), pelo desaparecimento dos militantes do caso da Guerrilha do Araguaia, entre os anos de 1972 e 1974. Vale frisar que o Brasil só aceitou se submeter à jurisdição da CIDH se esta só julgasse o país pelos fatos praticados após dezembro de 1998. A referida Corte, no entanto, alega que o crime de desaparecimento é um crime de caráter permanente, que não exime o Brasil de suas responsabilidades.
Há uma forte discussão questionando se os crimes cometidos pelos militares contra a sociedade civil prescrevem ou não. A Corte Interamericana de Direitos Humanos dispõe que os crimes de lesão à humanidade não prescrevem, logo, são passíveis de investigação e punição, visto que os crimes de tortura não são considerados crimes políticos. Diferente deste posicionamento foi a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal que, em abril de 2010, declarou a constitucionalidade da Lei de Anistia, utilizando o argumento de que esta é fruto de um intenso debate social que fora realizado na época e uma etapa necessária de reconciliação e redemocratização do país.
6.3 Uma análise da Comissão Nacional da Verdade A Comissão da Verdade, criada sob o Projeto de Lei n. 7376/2010 no âmbito da Casa Civil, é uma comissão que tem como finalidade examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos praticadas no período fixado no art. 8o do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, a fim de efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional (art. 1º)12.
Dentre os objetivos estabelecidos pela Comissão Nacional da Verdade, encontram-se: I - esclarecer os fatos e as circunstâncias dos casos de graves violações de direitos humanos mencionados no caput do art. 1o; II - promover o esclarecimento
12 PL 7376/2010. Disponível em: http://www.camara.gov.br. Acesso em: 28 de junho.2012.
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circunstanciado dos casos de torturas, mortes, desaparecimentos forçados, ocultação de cadáveres e sua autoria, ainda que ocorridos no exterior; III - identificar e tornar públicos as estruturas, os locais, as instituições e as circunstâncias relacionadas à prática de violações de direitos humanos mencionadas no caput do art. 1o, suas eventuais ramificações nos diversos aparelhos estatais e na sociedade; IV - encaminhar aos órgãos públicos competentes toda e qualquer informação obtida que possa auxiliar na localização e identificação de corpos e restos mortais de desaparecidos políticos, nos termos do art. 1o da Lei no 9.140, de 4 de dezembro de 1995; V - colaborar com todas as instâncias do Poder Público para apuração de violação de direitos humanos, observadas as disposições das Leis nos 6.683, de 28 de agosto de 1979, 9.140, de 1995, e 10.559, de 13 de novembro de 2002; VI - recomendar a adoção de medidas e políticas públicas para prevenir violação de direitos humanos, assegurar sua não repetição e promover a efetiva reconciliação nacional; e VII - promover, com base nos informes obtidos, a reconstrução da história dos casos de graves violações de direitos humanos, bem como colaborar para que seja prestada assistência às vítimas de tais violações.
Importante mencionar que “as atividades da Comissão Nacional da Verdade não terão caráter jurisdicional ou persecutório (art. 4º, § 4º). Os membros da Comissão Nacional da Verdade perceberão o valor mensal de R$ 11.179,36 (onze mil, cento e setenta e nove reais e trinta e seis centavos) pelos serviços prestados. A designação de servidor público federal da administração direta ou indireta ou de militar das Forças Armadas implicará a dispensa das suas atribuições do cargo. A Casa Civil da Presidência da República dará o suporte técnico, administrativo e financeiro necessário ao desenvolvimento das atividades da Comissão Nacional da Verdade. Esta terá prazo de dois anos, contados da data de sua instalação, para a conclusão dos trabalhos, devendo apresentar, ao final, relatório circunstanciado contendo as atividades realizadas, os fatos examinados, as conclusões e recomendações13”.
Para a deputada Luiza Erundina (PSB-SP) ressalta a importância do resultado das investigações da Comissão da Verdade. Para ela, a impunidade dos responsáveis por crimes cometidos durante a ditadura não pode mais ser aceita: “A Argentina acabou de condenar 23 militares de alta patente. Por que o Brasil não faz isso? O Uruguai acabou de mudar a sua Lei de Anistia, tirando a prescrição dos crimes. É isso que os
13 PL 7376/2010. Disponível em: http://www.camara.gov.br. Acesso em: 28 de junho.2012.
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outros países fizeram e nós temos de fazer também”, argumentou. “Sem isso, vamos estar sempre num processo de transição democrática, porque um crime não esclarecido é um crime continuado”, completou14.
Em face de tais exposições, pode-se afirmar que este é o trâmite legal para que os torturadores e demais agentes da ditadura sejam responsabilizados e, quiçá, punidos pelos crimes cometidos.
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O respeito à cidadania e aos direitos humanos são práticas inerentes a um Estado Democrático de Direito, numa relação dialética que reflete a magnitude da dignidade da pessoa humana como princípio fundamental da República Federativa do Brasil.
Nesta seara, afere ainda o fenômeno da internacionalização dos direitos humanos que voltou sua atenção, primariamente, a defesa da pessoa humana, independentemente de qualquer circunstância. Com essa medida, busca-se uma maior efetividade na proteção desses direitos.
Neste contexto, é oportuno analisar um conflito existente no Direito que diz respeito à Segurança Jurídica e à Justiça, pois representa os conflitos que o Brasil tem enfrentado quanto às normas de direitos humanos no âmbito internacional e a prevalência do direito nacional, sobretudo no tocante ao Projeto de Lei que instituiu a Comissão da Verdade (PL 7376/2010).
Apesar da decisão prolatada pelo Supremo Tribunal Federal, a respeito da constitucionalidade da Lei de Anistia, sabe-se que esta foi um instrumento para apaziguar os conflitos da ditadura e suas consequências, e não um processo de intenso debate social com a finalidade de promover efetivamente a reconciliação nacional e um passo necessário para instituir um Estado Democrático de Direito. Aqui se ressalta o fato de que a reconciliação nacional somente é instituída com o reconhecimento por parte do Estado brasileiro dos crimes por este cometidos, através de seus agentes públicos à sombra dos atos institucionais. Assim, busca-se a promoção daquilo que foi perpetrado com imparcialidade e, sobretudo, a punição dos contraventores dos direitos humanos, a
14 Comissão da Verdade. Disponível em: http://www.luizaerundina.com.br. Acesso em: 29 de junho. 2012.
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fim de que tais fatos não se repitam, de modo a construir a história sob os alicerces da verdade e do respeito à dignidade da pessoa humana.
Outrossim, o cenário apresentado possibilitou uma observação analítica sobre a Ditadura Militar no Brasil, bem como seus efeitos sobre a sociedade brasileira. Trata-se de um período em que a democracia foi extinta e houve um claro desrespeito ao princípio da separação dos Poderes, marcado pelo fortalecimento do Poder Executivo e o consequente aumento de sua discricionariedade.
A partir da perspectiva apresentada, pode-se abstrair que o princípio da dignidade da pessoa humana, além de fundamento constitucional, é a base da formação conceitual e essencial do Estado Democrático de Direito, pois aqui têm-se a dignidade da pessoa humana como meio condutor da efetivação das normas previstas na Constituição Federal e sua inobservância é inadmissível, constituindo grave violação aos princípios instituídos pela Carta Política de 1988.
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Autor: Daniela Barreto Da Silva


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