PALAVRA E DISCURSO: HISTÓRIA E LITERATURA NO ROMANCE FEMININO ÚRSULA DE MARIA FIRMINA DOS REIS



PALAVRA E DISCURSO: HISTÓRIA E LITERATURA NO ROMANCE FEMININO ÚRSULA DE MARIA FIRMINA DOS REIS

Ana Carla Carneiro Rio[1] 

Resumo: O presente artigo ressalta o papel da palavra na sociedade oitocentista maranhense, com enfoque no romance feminino Úrsula da autora Maria Firmina dos Reis, demonstrando que as palavras têm vida, vestem-se de significações, camuflam e se contagiam umas com as outras. O discurso da autora focaliza a problemática racial e de gênero, fazendo uma abordagem correlacional entre o comportamento do sujeito concreto do século XIX e os personagens ficcionais. Assim, o discurso literário aparece como matéria-prima e pressuposto para documentar a realidade histórica social brasileira. Este trabalho procura discutir a dimensão do processo e reprodução de palavras, buscando caminhos que indiquem a construção de sentidos novos, reafirmando velhos sentidos. Assim, será feito um intercâmbio entre história e literatura, dando uma dimensão do que foi, tirando-nos o véu do futuro, permitindo, nesse percurso, que seja produzido outras significações e novas ações.

Palavras-Chave: Palavra. Discurso. História-Literatura. Maria Firmina Dos Reis.

1     INTRODUÇÃO 

Maria Firmina dos Reis é um nome sem revelação dentro da história literária. Em 1859, no período escravagista, momento em que a população negra e feminina é colocada como incapaz de tratar qualquer questão de opinião pública, uma mulher afro-descendente, nordestina, maranhense e de origem humilde, escreve um romance, escancarando as condições que o negro e a mulher estavam submetidos na sociedade brasileira do século XIX.

Dessa forma, propõe-se uma nova visão aos estudos literários, haja visto que é revelada a presença de uma escritora negra em pleno século XIX no Brasil, numa sociedade marcada pelo patriarcalismo.

Em 1859, Maria Firmina dos Reis publicou seu romance Úrsula, e se apresentou à imprensa como escritora de poemas, contos e ainda compositora de uma letra musical de um hino que homenageava a abolição.

Com base no período histórico Brasil – colônia, faz-se importante analisar a obra Úrsula partindo da condição de mulher numa sociedade, que era ancorado no patriarcado, com uma diferença enorme entre pobre e rico, negro e branco, homens e mulheres. Portanto, Maria Firmina está inserida na parcela da sociedade em que a mulher era submissa aos pais, maridos e senhores.

 O artigo tratará de um modelo idealista de sujeito, ou seja, a realidade expressa na obra de Maria Firmina dos Reis passa a ser exclusivamente uma produção discursiva do sujeito, de forma que, é o sujeito quem cria a realidade. A obra Úrsula é o objeto do conhecimento, é como se a realidade existisse quando fazemos a leitura, a atividade humana nesse âmbito se manifesta, cria o objeto e ocorre a interação. Maria Firmina contribui para o acréscimo de informações sobre o assunto, “mulher negra” em especial na literatura, pois, muito se pode esperar de uma obra no qual se propõe uma nova visão  do Romantismo no Brasil,pois, até hoje a voz feminina dentro da historiografia literária nacional é silenciada. 

2     OBJETIVOS 

2.1  Objetivo geral

  • Analisar e obter um novo olhar sobre a Literatura Brasileira no movimento Romantismo, através do romance “Úrsula” de Maria Firmina dos Reis, demonstrando a condição de desigualdade que as mulheres, negro e afro-descendentes estavam submetidos no Brasil.

2.2   Objetivos específicos

  • Analisar o período histórico do      Brasil no século XIX;
  • Observar a posição da mulher na      sociedade e no movimento Romantismo;
  • Comparar a escrita feminina e      apontar as características do Romantismo dentro da obra;
  • Detectar as dificuldades sociais      da época que as mulheres sofrem em relação aos homens;
  • Analisar a condição do negro      dentro do Brasil - colônia  e no      regime escravista;
  • Constatar o preconceito com a      escrita feminina e o negro na literatura do século XIX;
  • Analisar      os personagens da obra Úrsula como espelho da sociedade brasileira do      século XIX.

3     METODOLOGIA 

O romance Úrsula, de Maria Firmina dos Reis, será analisado a partir dos seus personagens, gênero, etnia e através do movimento Romantismo, no qual está inserido. O trabalho consiste do levantamento de livros, pesquisa bibliográfica,artigos e ensaios, além de contar com o estudo do contexto social, cultural e político em que a escritora viveu.

4     O DUELO DOS DISCURSOS 

A sociedade funciona de um grande leque de discursos que se intercruzam, se chocam, se anulam, se complementam. Desses parâmetros nascem os novos discursos, que acrescentam na alteração dos significantes e significados para que reproduzam os seus próprios significados. Assim, o momento mais importante está centrado no texto produzido que será aceito pelo receptor. Este observa o discurso fazendo sua leitura a partir do seu mundo e conforme os aparelhos ideológicos[2] que ele freqüentou, e somente dessa forma a comunicação é estabelecida entre os discursos.

O choque de discursos ocorre tanto em nível sincrônico como diacrônico. E os textos literários, muitas vezes sob forma de estereótipos, preconceitos também constituem parte importante desse processo dialógico. Maria Firmina, executa sua trajetória literária sob o reinado de D.Pedro II e veste a luta contra a escravidão, assistindo, anos mais tarde, a libertação dos negros e a proclamação da república.

Portanto, analisar o período histórico em que viveu a autora, do ponto de vista cronológico é fundamental para a compreensão de sua obra. Fazer uma análise de uma sociedade sustentada pela diferenciação, em que o patriarcado estava ancorado, estratificada entre homens e mulheres, brancos e negros, pobres e ricos, legítimos e bastardos, é de suma importância para a literatura nacional. A autora faz parte de uma parcela que estava fora das decisões políticas de sua época, portanto, a subjetividade da autora nada mais é do que o resultado da polifonia[3],das muitas vozes sociais que cada indivíduo recebe e tem condição de produzir e elaborar.

Analisando o discurso de Maria Firmina, observa-se que somos resultantes de vários discursos e pacientes de uma carga social pesada que atua como uma força ditatorial sobre cada um de nós.

 

5  O ROMANCE ÚRSULA: Tirar o véu

 

Úrsula estaria inserido no Romantismo, observado num período que vai de1840 a1960, inserido na longa fase de imitação dos modos privilegiados pela tradição dominante, e internalização dos padrões de arte e pontos de vista das regras sociais. Segundo essa classificação, o romance reduplica os valores patriarcais, construindo um universo onde a donzela frágil e desvalida é disputada pelo bom mocinho e pelo vilão da história. Essa reprodução da dominação masculina não aparece apenas nesse momento e sim em todas as personagens femininas da obra, todas sofrem comprimidas, no lugar que a sociedade lhes reservava, sustentando a passividade que lhes devia ser o comportamento de praxe.

A subjetividade da autora tem um peso na estrutura social, no resultado do processo histórico, o indivíduo/sujeito deixa de  ser agente para se transformar numa mera “figura da realidade”, o resultado do passado tem visão de futuro, é fazendo a leitura da obra que podemos ampliar nossos conceitos, analisar paradigmas e estereótipos sociais, ampliarmos, reformularmos, renovarmos e revolucionarmos. São esses discursos que programam nossas decisões, efetivam as hierarquizações e ditam os interesses e necessidades dos grupos e classes sociais.  

Considerado um romance abolicionista diferente dos demais de sua época, “Úrsula” é o único romance de seu tempo que tenta apresentar os negros como tal e não de acordo com estereótipos. Apresentava também a condição submissa da mulher naquela sociedade, onde o marido exercia uma autoridade despótica sobre a esposa, como no episódio em que o personagem Tancredo faz o seguinte desabafo:

Não sei por que, nunca pude dedicar a meu pai amor filial que rivalizasse com aquele que sentia por minha mãe, e sabeis por quê? É que entre ele e sua esposa estava colocado o mais despótico poder: meu pai era o tirano de sua mulher; e ela, triste vítima, chorava em silêncio, e resignava-se com sublime brandura. (REIS, 1988, p. 49)

 

Maria Firmina não se casou e nem teve filhos, rompeu os padrões de mulher do período em que viveu, pois neste período sacramentava a imagem da “Mulher-mãe” e do amor maternal como instinto natural no sexo feminino. Exerceu o magistério público por 34 anos, lecionava em sua casa. Aos 55 anos de idade e um ano antes de se aposentar do magistério público, fundou uma escola mista e gratuita para ensinar os meninos e meninas pobres. Essa iniciativa de criar uma escola mista era um exemplo de ousadia, pois na época não se admitia oficialmente que os meninos e meninas estudassem juntos.

Em literatura, estudar o comportamento, e consequentemente suas mudanças, significa não apenas analisar suas marcas externas, seus rastros na sociedade, algo que se pode ver claramente. Significa também buscar suas origens ir em busca de algo que se esconde embaixo de um véu. O que se pretende com o estudo da literatura, em especial da obra “Úrsula” da escritora Maria Firmina dos Reis, é mergulhar dentro do inconsciente das mulheres, dentro de sua mentalidade, lançando em sua subjetividade. Como Le Goff já dizia “mentalidade é aquilo que muda mais lentamente” (GOFF, 1976, p.68), faz-se necessário, portanto, um recorte temporal amplo para que se interprete com mais precisão as mudanças no comportamento feminino, suas rupturas. Será utilizado o conceito do imaginário coletivo, incorporando as imagens, compreendidas em seu sentido mais amplo, indo para além da imagem iconográfica. Abrangendo também as imagens verbais, escritas e mentais.

Com “Úrsula” as mulheres maranhenses e brasileiras, já não eram  as mesmas, tomavam postura de uma “nova mulher”, que podia ser reconhecida por sua educação e independência, sua tendência a desprezar antigos valores e nublar os limites entre o masculino e o feminino. A obra foi vista como uma salvadora, que começava ajustar as coisas entre os dois sexos. Para os opositores, era uma mulher digna de censura, uma aberração que destruiria a separação das esferas masculina e feminina. O grito de “emancipação” ecoava com o vento e não poderia mais ser calado.

6 A PRODUÇÃO DE SENTIDOS E UMA LITERATURA COM PERSPECTIVA SOCIAL

A literatura para Nicolau Sevcenko “é um produto artístico destinado a agradar e convencer, mas, como se pode imaginar uma árvore sem raízes” (CARRERI,2000, p. 39). Os textos literários são portadores de um discurso, de uma representação, sendo plenamente possível perceber e interpretar a dimensão intrínseca em cada produção. A perspectiva social está inserida na obra literária, é demonstrada quando o personagem ou grupo de personagens tiver seu destino ligado ao da sociedade global, sob o impulso das forças sociais que conferem historicidade às tensões entre indivíduos ou grupos.

Para Fábio Lucas, os personagens apesar de serem retirados da imaginação do escritor, possuem certa dimensão social:

 

Há personagens grupos e classes retratados na ficção, cuja vida, bem ou mal lograda, numa ordem épica ou trágica, se toma cabalmente representativa da situação histórica que a determina: os conflitos subjacentes à trama social ou aparecem nitidamente, quer sob um aspecto positivo construidor quer sob um aspecto negativo, de posição crítica e ordenadora da ordem considerada injusta. O ético e o político se juntam para a fixação de um caráter. (LUCAS, 2000, p.03)

 

 

Dessa forma a literatura romântica além de ser um fenômeno estilístico, é uma manifestação cultural, em que se pode perceber os anseios e visões de mundo do escritor, o registro ao movimento, ao homem em sua história.

Analisar a obra “Úrsula” de Maria Firmina dos Reis, significa tencionar e utilizar como fonte , testemunho histórico, como pano de fundo, estabelecendo as relações entre o comportamento das personagens com as condições da sociedade vigente da época.

A obra “Úrsula” de Maria Firmina dos Reis, foi escrita num período histórico, fazer sua análise compreende, inevitavelmente, uma relação dialógica entre a escritora e o grupo social ao qual pertenceu. Tal análise comunica-se especialmente com a idéia de uma possível intervenção que Maria Firmina tenha pretendido, realizar, desvendar as intricadas relações entre a mulher o grupo e o fato, mostrando-a como o ser social, que ela é, “articula-se como fato social que ela também fabrica e ao qual faz parte integrante”. (DEL PRIORE, 2003, p. 42)

  Em conseqüência, instala-se dentro do panorama da literatura brasileira, uma voz peculiar que aproxima a literatura das mazelas sociais, que são traços do século XIX, mas que optou por buscar compreender e explorar os limites sociais da mulher. Na sociedade em que Maria Firmina viveu e produziu, à mulher competia a casa, e os afazeres domésticos, as prendas materiais e espirituais, com a única função de tornar satisfatória e confortável a vida dos homens.

  Existia todo um modo de vida constituído para definir o que era a mulher e sobremodo o que ela não era. O que ela deveria desempenhar na sociedade tinha que ser definido desde o princípio, a partir da diferenciação da educação entre os sexos.

Simone de Beauvoir, em 1949, com a obra  O Segundo sexo, faz algumas considerações sobre a história das mulheres, tornando esta obra, um dos textos fundamentais para o movimento feminista de 1960,para ela:

 

As mulheres não tinham história, não podendo, consequentemente, orgulharem-se de si próprias. Ela dizia, ainda que uma mulher não nascia mulher, mas tornava-se mulher. Para que isso acontecesse, ela deveria submeter-se a um complexo processo, no seio de uma construção histórica cujo espírito determinaria seu papel social e seu comportamento diante do mundo. (DEL PRIORE, 2003, p 217)

 

No entanto, sabe-se que escrever, ler e pensar eram ações que não competiam ao mundo feminino, os críticos falavam que tais práticas eram nocivas à saúde mental das mulheres, haja visto que se contrapõem as características estabelecidas como inatas ao seu universo.

As mulheres do século XIX, em especial neste trabalho, a maranhense Maria Firmina, produziram uma literatura marcada por sua história psíquica e social. Em conseqüência disso, uma história da literatura nacional com vistas à inserção da escrita feminina deve atentar para os fatos que envoltam o universo  da produção literária, sem lançar mão de uma observação e de uma possível compreensão dos limites impostos por uma sociedade patriarcal e escravocrata.

O ato de escrever para a mulher do século XIX, representa um momento  de ruptura de estereótipos. Com Maria Firmina, o fato é acentuado por se tratar de uma escritora mulata, pobre e bastarda, submetida à crítica masculina,  desdobrando os critérios  vigentes em função da ideologia em voga, a saber, o positivismo.

De acordo com Sylvia Paixão, as idéias positivistas definiam a mulher como  um ser superior, porque se submetia sem resistência, porque sua capacidade em obedecer era maior do que do homem. E nesse aspecto, publicar uma obra, constitui como um ato de coragem, de transgressão, especialmente de ocupação de um espaço público até então interrompido.

 

No século XIX, para as mulheres que pensaram ser algo mais do que “bonecas”ou personagens literárias, os textos dos escritores colocaram problemas tanto literários quanto filosóficos, metafísicos e psicológicos. Como a cultura e os textos subordinam e aprisionam as mulheres, antes de tentarem a pena cuidadosamente mantida fora do seu alcance, precisaram escapar dos textos masculinos que a definiam como ninharia nulidade ou vacuidade. (TELLES,1997,p.408).

 

 

Maria Firmina tinha noção clara de seu espaço, a prova disso é a forma como inicia no prólogo de Úrsula: “mesquinho e humilde livro é este que vos apresento, leitor. Sei que passará entre o indiferentismo glacial de uns e o riso mofador de outros, e ainda assim o dou a lume”.(REIS, 1988,p.19)

Para Maria Firmina dos Reis, havia muitas mulheres com uma boa formação intelectual, com capacidade de produzirem suas histórias e de torná-las participantes do jogo político e social, partindo do momento em que suas histórias marcam uma análise contextual histórica.

No momento em que se justifica no prólogo do livro, como humilde, retorna aos séculos passados, quando o início da obra reside verdadeiros testemunhos da bajulação monárquica para a publicação das mesmas. Olhando o jeito “firminiano”, o prólogo resume um nível social que não se podia evitar para qualquer obra realizada por uma mulher: necessidade de aprovação mediante os estereótipos do século XIX.

O romance Úrsula, é um livro feito em declaração por uma mulher, haja visto, que ela assina sobre o pseudônimo “Uma Maranhense”, cuja narrativa faz uma denúncia dos maus tratos que sofriam os negros no Brasil e da maneira bárbara pelos quais se davam o tráfico e o transporte de membros da sociedade africana até a província, desse modo precisava ocultar da crítica letrada.

A autora apresenta-se à literatura nacional como uma romancista de educação básica, ela inicia à crítica e ao público leitor a acreditar que nada poderia haver na obra que atentasse contra os costumes, normas ou valores da sociedade a qual estava inserida.

Exatamente no prólogo, Maria Firmina penetra na sensibilidade do leitor a partir da construção de imagem “frágil”, por meio de uma metáfora familiar, que envolve o estilo da obra, e utiliza a figura de linguagem para colocar a obra como uma filha, retomando o conceito de mulher como mãe que respeita e autoriza ao leitor numa forma de doação complacente.

Publicar Úrsula, cujo tema da opressão é a ligação de todos os personagens, instiga o pensamento do leitor a promover a circulação de um discurso destoante dentro de uma sociedade dividida, estratificada, em que os indivíduos são tipificados a partir do sexo, da cor, da genealogia, como forma de dizer e denunciar qual lugar cada um deve ocupar.

7          ÚRSULA: OBRA QUE O CÂNON ESQUECEU

Ler “Úrsula” firma-se como um prisma discursivo que permite revisitar o sistema literário brasileiro na intenção de ressignificá-lo a partir do estudo da sociedade e das condições do negro e da mulher na sociedade brasileira. Mais do que isso, permite uma reavaliação dos parâmetros e métodos de classificação da história literária brasileira diante do texto literário da obra.

 Alguns historiadores costumam falar de uma grande relação entre a história da cidade de São Luís e a Literatura (MEIRELES, 2001, p. 26: LACROIX, 2002, p 19), tal relação foi construída principalmente a partir do século XIX. Nesse período, ainda durante o Império, a então, Província do Maranhão conheceu uma das suas melhores fases econômicas e culturais, especialmente no período conhecido como ciclo do algodão, mercadoria produzida em grande quantidade e exportada em sua quase totalidade para Europa.

O enriquecimento particular permitiu aos grandes senhores do   Maranhão, desde o último quartel do século XVIII, o luxo de mandar seus filhos[...] a estudar na Europa[...] isto criou um campo propício ao surgimento de um núcleo intelectual bem ao gosto e feitio do romantismo literário(MEIRELES, 2001, p.266-267)

No período compreendido entre 1832 e 1868, pouco depois da Independência  do Brasil, essa aproximação com a cultura européia fomentou o início de uma produção literária extremamente relacionada às primeiras fases do Romantismo literário europeu. Nesse momento São Luís conheceu o que é hoje chamado Grupo Maranhense, grupo de autores que escreviam em estilo romântico e que tiveram destaque nacionalmente. Composto por várias personalidades das letras maranhenses, dentre as quais se destacaram nomes como Gonçalves Dias, Odorico Mendes, Sotero dos Reis, Sousândrade, dentre outros, que em função do reconhecimento de suas obras, ajudaram a “forjar” o título de Atenas Maranhense, para a Capital da Província do Maranhão.

A literatura produzida por mulheres, ao longo dos tempos, pode ser incluída como um dos temas silenciados pelo trabalho científico produzido por homens, sobretudo, nas pesquisas relacionadas à Crítica Literária. Quando aparece nos registros históricos (cânones Literários, essencialmente) as obras literárias produzidas por mulheres são citadas como obras de menor qualidade. Segundo Schwantes:

Os estudos de Gênero partiram de uma ampla operação de revisão do Cânone Literário, na tentativa de demonstrar que as escritoras mulheres são, a longo prazo, defenestradas do Cânone. Não necessariamente porque suas obras não tenham qualidade, mas porque, para tornarem-se capazes de expressar uma experiência especificamente feminina, recusada no contexto de uma instituição literária falologocêntrica, elas precisam, de alguma forma, trair e subverter os pressupostos que aparentemente, abraçam. Dessa forma, o que pareceu falha [nessa literatura] é exatamente o que lhe confere especificidade. (SCHWANTES, 2006, p 83)

 

A intenção de questionar esse tema transforma em objeto sociológico, pois vêm de reflexos da insatisfação popular que orientam muitos trabalhos. As relações de gênero estão influenciadas pelo silêncio que parece encobrir muitas temáticas referentes à participação e também à atuação de mulheres em diversos territórios do saber.

Quando se faz a releitura das obras literárias que foram legadas do passado, quando se têm elementos para constatar a recepção que tiveram na época em que foram publicadas, frequentemente surpreende o anual estado de ostracismo a que estão relegadas. Não se ouve mais falar delas, não são reeditadas, não se encontram nos programas de leituras e de textos a serem estudados nos colégios, nas universidades. Assim, observa-se nitidamente que não pertencem ao cânon literário, estão fora da lida dos livros consagrados, daquele que é preciso ter lido das obras eleitas como indispensáveis à  formação intelectual do discente.

Nos últimos anos, esse assunto tem sido debatido em estudos feministas, principalmente quando o assunto é gênero. Obras que o cânon “esqueceu”, que o tempo apagou, que os mecanismos editoriais desprezaram, fazendo sobre elas os, através dos anos o silêncio, e o conseqüente esquecimento. Como se nunca houvessem existido. Como se um dia em meio a vida, uma voz feminina não houvesse desejado exprimir, e dizer: Eu falo, eu existo, e colocasse no papel um pouco de seu mundo, com seus anseios, sonhos e angústias.

As razões desse “esquecimento” e silêncio estão ligadas à questão do poder e das ideologias vigentes da sociedade oitocentista. Essa questão volta à problemática que consigna a: homem-branco-letrado a legitimação  da dominação social e até mesmo literária. Aquele que escreve a história e a interpreta segundo seu desejo, privilegiando acontecimentos em detrimento de outras, lançando luz sobre fatos que interessando a legitimação do seu poder e deixando na obscuridade aqueles que não o dignificam.

Em todos os países se conhecem as antologias, os compêndios de História da Literatura, redigidos por autores de várias tendências e com diversos critérios de seleção. E na maioria esmagadora deles uma constante:  a quase total ausência de poetisas, de romancistas mulheres.

Maria Firmina dos Reis, é uma escritora deixada à margem do cânon literário. É autora de livro de poemas Cantos à beira mar,dos romances “Úrsula” e  “Gupeva” e do conto “A Escrava”. Maria Firmina tinha a seu desfavor alguns traços que a sociedade condenava: era pobre, mulata e mulher.

No entanto, como era comum numa época em que as mulheres viviam submetidas a inúmeras limitações e preconceitos, a autora omite seu nome tanto na capa quanto na folho de rosto de Úrsula, ali consignando apenas o pseudônimo “Uma Maranhense”. Desta forma, a ausência do nome, aliada à indicação da autoria feminina e, ainda, a procedência da distante província nordestina, juntam-se, ao patriarcado brasileiro. O resultado é, que um silêncio envolveu a autora ao longo de mais de um século. Silvio Romero e José Veríssimo ignoraram-na, e muitos dentre os expoentes de nossa historiografia literária canônica fazem o mesmo, a exceção de Sacramento Blake e Raimundo de Menezes, dicionários biográficos brasileiros.

Para tanto, articular o desenvolvimento de uma crítica, é colocar a lume o caráter fluido, múltiplo e inacabado da identidade literária do sujeito pós moderno, de forma a romper com as hierarquias entre o local/global e constituir um sistema literário que dê conta de uma heterogeneidade identitária dos diferentes imaginários culturais brasileiros.

8          A PALAVRA NO DISCURSO: Maria Firmina dos Reis

 

A palavra não é apenas um instrumento com a finalidade de transmitir informações. É um todo dinâmico que abarca o movimento da sociedade: por isso é um lugar de conflitos. Esses conflitos são concretizados no discursos, neles as realizações lingüísticas trazem inscritas as diferenças de interesses e a propostas de direções diversas para o mesmo processo histórico. As palavras carregam sentidos emocionais, volitivos e cognitivos.

Com Maria Firmina a mulher Maranhense deixa de ser apenas a “senhora prendado” dos salões, que a escola educou, não para a vida e sim para o casamento, ou mais certo, para a “governanta”, de cujo enxoval, no entanto, a instituição não era peça fundamental mesmo nas famílias de nível social mais elevado.

Maria Firmina trouxe à mulher maranhense uma visão mais ampla de tomar consciência de si, do que pode e do que é capaz, além do trinômio doméstico: Esposa-Mãe-Mestra. Com ela a mulher ganhou uma personalidade literária, pois, com sua literatura apresenta-se como a senhora de um “Reino Encantado”, que tinha por sede a província maranhense. Ela sobrevive esquecida no mundo, fixando-se na figura humana com sua forte e excepcional individualidade.

“Úrsula” é um romance que historicamente, consiste na primeira obra escrita por uma brasileira descendente de africanos.  Além disso, colaborou incessantemente em vários jornais maranhenses com artigos, crônicas e poesias.

Úrsula, até o momento é o primeiro romance pertencente a escola literária Romântica com a temática afro-descendente brasileiro.

Mesmo em uma sociedade em que o pratriarcalismo estava ancorado, a escritora lia bastante e escrevia francês fluentemente. Sua luta, atualmente consistiu como uma exceção do cenário literário. O negro era marginalizado e alvo de adjetivos relacionados à negatividade, o esquecimento de cem anos de uma obra, se deu pela vontade de revolução numa época em que a mulher não deveria falar, ainda mais, denunciar através da escrita literária.

Maria Firmina rompeu estereótipos e silêncios impostos, desse modo, preenche até hoje lacunas na memória da historiografia literária. De acordo com estudos e pesquisas de estudiosos de Maria Firmina, ela se classifica  no panorama da Literatura Brasileira de acordo com a tabela abaixo:

Pionerismo

Produção   Literária

1ª   romancista da Literatura Brasileira

Úrsula

1ª   romancista da Escola Romântica

Úrsula

1º   ficcionista a introduzir no romance o drama da escravidão negra no Brasil

Úrsula

5º   escritor a publicar  romance em livro

Úrsula

17º  romance publicado no Brasil por romancista   Brasileiro

Úrsula

2º   romancista Indianista

 Gupeva

1º   ou único romancista a abordar o incesto( no processo de formação do povo   brasileiro) como conseqüência dos primeiros relacionamentos dos brancos com   os índios, brancos com os negros.

 

Gupeva   e Úrsula

Ficcionista   abolicionista (conto)

 A Escrava

Poetisa   da escola romântica

Cantos   à Beira-Mar

Uma das dez primeiras poetisas a publicar livro de poesia

Cantos à Beira-Mar

Um dos treze livros de poesia publicado até 1874 por uma   mulher

Cantos   à Beira-Mar

 

Sua posição no panorama da cultura maranhense de acordo com estudos da academia maranhense de letras está relacionada abaixo:

Literatura

  • 1ª literata;
  • 1ª romancista( a única romancista do século  XIX);
  • Funda com João Clímaco Lobato (antes) e Sabbas da Costa(depois) o romance ( o gênero)no Maranhão;
  • 1ª cronista;
  • 1ª poetisa;
  • 1ª contista;
  • 1ª folquelorista;
  • 1ª letra e música para autos;
  • 1ª jornalista;
  • 1º compositora popular e erudita;

Educação:

  • Funda a primeira escola mista;
  • 1ª maranhense a publicar;
  • 2º (romancista) a publicar romance em livro;
  • 1ª poetisa a publicar livro de poesia.

Posição política

  • Abolicionista;
  • Composições literárias e musicais.

 

Portanto, o que se observa é que Maria Firmina foi uma mulher atuante nos diversos campos sociais da província maranhense, contribuindo com a literatura, imprensa, política e educação. Desafiando e colocando a mulher numa condição de respeito e poder. Rompendo com alguns estereótipos, e se lançando à crítica literária que, como ela mesma afirma no prólogo de sua obra Úrsula: “pouco vale este romance, porque escrito por uma mulher, e mulher brasileira, de educação acanhada e sem o trato e conversação dos homens ilustrados”(REIS, 1988, p 19). Por trás dessa declaração de modéstia, a escritora revela sua condição social: o fato de não ter estudado na Europa, como era comum entre os homens educados de sua época, por si só indica o lugar que ocupa na sociedade em que nasceu. É desse lugar intermediário, mais próximo da pobreza que da riqueza, que Maria Firmina corajosamente levanta sua voz através do que chama “mesquinho e humilde livro”. “E mesmo sabendo do indiferentismo glacial de uns, e do riso mofador de outros, desafia: “ainda assim o dou a lume” (REIS,1988, p.19).

 

9  RESULTADOS E DISCUSSÕES X CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

A construção deste trabalho sobre a escritora maranhense Maria Firmina dos Reis, foi fundamentada no romance feminino Úrsula, utilizando como pressupostos teóricos a história da literatura e a história das mulheres na sociedade maranhense do século XIX, tornando possível realizar um percurso em que se pode verificar qual o lugar da escritora no universo da história brasileira produzida no século XIX, e em que condições a sua obra foi produzida.

A intenção foi a de retirar a obra do esquecimento, na tentativa de contribuir para a construção de uma “nova história”, essa história busca a valorização da mulher na história da literatura, observando a obra de arte como objeto, sem esquecer as questões sociais e ideológicas que se articulam na literatura. Foi mostrado que houve uma ruptura do que diz respeito a produção das escritoras. Houve também a exclusão de suas histórias.

Neste trabalho não é a primeira necessidade saber se ela foi a primeira romancista, o que se deseja é contribuir com a crítica, com a finalidade de alertar os paradigmas canônicos existentes, já que nem na história literária maranhense a autora tem lugar de destaque, como Sotero dos Reis, primo por parte de mãe, Henrique Leal, Mário Meireles.

Com a análise de “Úrsula”, da escritora Maria Firmina, observa-se uma inovação na narrativa, por se tratar de temas como a escravidão da mulher afro-descedente como escritora, denunciando aos poucos as atrocidades do sistema escravocrata brasileiro. Defende insistentemente a liberdade e igualdade de todos, acreditando na união das raças e no fim da opressão. Ela inova com a construção das personagens, dando voz  aos escravos contarem suas vidas e falarem de seus universos.

Portanto, observa-se que apesar do silêncio que a escritora Maria Firmina dos Reis esteve envolta, sua história literária recupera seus percursos, porque o rastro que ela deixou no passado no lugar que é dela, mas que pertence a nação brasileira. Mesmo fora do cânone, ela ressurge a partir da pesquisa, como forma de reparar a injustiça, desvelando as sombras e acrescentando com a literatura nacional.

 

 

REFERÊNCIAS

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[1] Graduada em Letras, habilitação em Português-Literatura pela Universidade Estadual do Maranhão, Centro de Estudos Superiores de Imperatriz. Acadêmica do curso de Comunicação Social/Jornalismo da Universidade Federal do Maranhão, especialista em Linguística e Metodologia do Ensino Superior.Professora substituta do curso de Letras da Universidade Estadual do Maranhão- Centro de Estudos Superiores de Açailândia, Professora do programa Darcy Ribeiro, Instuto Superior de Educação Continuada e Professora de Língua Portuguesa da rede Estadual de Ensino do estado do Maranhão, municípior de Açailândia.

 

[2] A teoria de Althusser implica uma ligação umbilical entre Estado e aparelhos ideológicos, Althusser nega explicitamente, de que a ideologia (ou o sistema de ideologias) das classes oprimidas obtenha a hegemonia mesmo antes de tais classes terem conquistado o poder de Estado. Essas instituições se comportariam como aparelhos ideológicos de Estado, de acordo com a visão de Althusser. Para Ele, a formação social, a qual é resultado de um modo de produção dominante, e que este, produz e reproduz as condições de sua produção através da reprodução dos meios de produção, ou seja, através da reprodução da força de trabalho.

 

[3] Em linguística, polifonia é, segundo Mikhail Bakhtin a presença de outros textos dentro de um texto, causada pela inserção do autor num contexto que já inclui previamente textos anteriores que lhe inspiram ou influenciam.

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