Nenhuma garantia
Resumo: Luca Matéria bate às portas do facebook – um reduto pós-moderno - e hesita em aderir às regras do jogo.
Nenhuma garantia
Luca Matéria entende por amizade algo muito parecido com um poema. Um poema construído a quatro mãos. Nasce do sentimento, cresce na intuição, amadurece na dificuldade, e brilha no desinteresse.
Por isso nela adivinha parentesco íntimo com a eternidade.
Bom, muito bom que LM pense assim, porque foi baseado nessa convicção que pode arguir o gerente do facebook, numa dramatização que leva em conta aspectos da ruptura cultural em andamento nestes dias de virtualidade acelerada.
O caso foi que, entrado no facebook, LM notou a presença de um amigo do peito, e logo buscou meios de o cumprimentar.
Em vão o fez, pois,
subsumido nos meandros do programa, anônimo e vigilante, o gerente atalhou:
- Sinto muito, senhor; para falar com essa pessoa torne-se antes amigo dela.
- Perdão, essa pessoa é minha amiga há muito tempo.
- Não aqui.
- E por que não?
- Porque aqui tudo o que é sólido se desmancha no ar.
- Não me diga. Quer dizer então que navegamos em águas pós-modernas.
- Justamente.
- Conheço o movimento e também conheço o lema, mas não sabia que o facebook sufraga a proposta.
- Não admira. Pouca gente sabe. De mais a mais o senhor faz hoje a sua primeira conexão.
- De fato. É a minha primeira conexão e espero que não seja a última.
- Isso vai depender de como o senhor encara o estilo de vida virtual. Dito de outro modo, vai depender de como reagirá ao novo regime que, dentre outras coisas, tem horror a intelectuais.
- E daí? Quem é intelectual?
- O senhor tem cara de intelectual e, além do mais é idoso. Se o senhor fosse apenas idoso, talvez tivesse uma chance.
- Então explique melhor.
- Note bem: no mundo pós-moderno não se tolera nenhum tipo de graduação hierárquica. Igual rigor se observa na virtualidade – sua praia predileta – onde é proibido compactuar com o abominável séquito de acontecimentos e outras quinquilharias do mundo real. Ora, sendo intelectual, o senhor hierarquiza o ambiente, sendo idoso, o senhor carreia para cá o indesejável fardo da história.
- Bem, que eu sou idoso não há como negar. A minha foto já foi publicada. Mas intelectual quem lhe garante que eu sou?
- Ninguém garante nada. É contra os princípios da vida líquida garantir seja lá o que for. Garantia pressupõe solidez e aqui, como o senhor já sabe, tudo o que é sólido se desmancha no ar.
- Nesse caso...
- Nesse caso decida logo, não tenho a noite toda.
- O que devo fazer?
- Convide o seu amigo a ser seu amigo, ora essa, e torne-se um de nós.
- O senhor diz agora, neste exato momento?
- Não, não precisa ser agora. Pode ser outro dia. Aqui ninguém tem pressa. Afinal, não vamos a lugar algum.
- Mas espere aí um pouco. Ora o senhor me apressa dizendo que não tem a noite toda, ora me deixa à vontade para decidir quando eu quiser. Isso no mínimo configura incoerência, não lhe parece?
- Pela última vez vou lembrar ao senhor que aqui na pós-modernidade ninguém cobra coerência de ninguém. Aqui, como dizem os americanos, anything goes.
Autor: Osorio De Vasconcellos
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