Da Lama ao Caos e um pouco de cinema



Tento me concentrar para escrever um texto crítico sobre o Da Lama ao Caos, disco emblemático de uma das mais importantes bandas já surgidas no cenário musical pernambucano, Chico Science & Nação Zumbi. Deixo o disco tocando, para me inspirar. Penso na cidade, penso na música brasileira, na cultura, no meio ambiente, na tecnologia. E canto do início ao fim. Apenas ao final da última música consigo parar e escrevo. Tantas coisas passaram pela minha cabeça durante os cinqüenta minutos que ganhei escutando cada uma das catorze faixas. Fico feliz em lembrar que fui entusiasta do movimento e ouvi muito os CDs da banda, embora não entendesse exatamente tudo o que Chico Science e os mangueboys traziam consigo. Hoje, dezoito anos após o seu lançamento, o álbum é obrigatório para qualquer um que goste de música ou estude a sua história.

Mas o legado deixado pelo Da Lama ao Caos não é apenas musical. Em 2010 me deparei pesquisando sobre as origens do Manguebeat e todo o seu percurso enquanto estudava, pasmem, cinema. Qual não foi a minha surpresa em notar que, dezesseis anos depois do lançamento do disco, ele permanecia vivo nas mais diversas áreas da sociedade e o quanto os ideais do Manguebeat repercutiram na cena cultural pernambucana. Percebi, através do cinema, o quanto Chico Science e suas influências estiveram presentes no pensamento e na obra de muitos artistas na década de 90, pois não era um movimento restrito à música, mas uma interação constante das mais variadas formas de arte.

O lançamento do disco, em 1994, inaugurou não apenas um novo som, mas uma nova forma de pensar o Recife. O discurso de Chico Science e dos mangueboys nos fazia pensar o momento que a cidade atravessava e o que teria levado ao caos vigente. Como um vírus, o movimento se alastrou nas mais diversas vertentes artísticas e exerceu influência em todas as camadas da sociedade. Dois anos antes, Fred Zero Quatro, um de seus idealizadores, escrevia o Manifesto Manguebeat, um texto que tentava explicar os conceitos e os ideais do movimento que eclodia na cena cultural pernambucana. De acordo com o manifesto, Recife teve um crescimento acelerado, a partir da expulsão dos holandeses, por causa da sensação de metrópole que vivia. A cidade acabou crescendo desordenadamente, aterrando seus manguezais, um dos ecossistemas mais produtivos do mundo. Com o passar do tempo, percebeu-se que a estrutura do Recife não suportava tamanho crescimento, e a cidade ficou entregue ao caos e ao aumento também da miséria.

Como nos disse José teles, numa crítica publicada no JC em ocasião do aniversário de 15 anos de lançamento do disco, “o mais importante em Da Lama ao Caos foi que ele disseminou o vírus da auto-estima entre os artistas pernambucanos”. E foi exatamente isso que fez o filme Baile Perfumado, surgido exatamente nesse contexto de interação de artes e artistas. O filme é considerado a transposição para as telas dos preceitos do manguebeat, não apenas pela trilha sonora, composta por Chico Science, Lucio Maia, Fred Zero Quatro, Paulo Rafael e Sérgio Siba Veloso, todos “mangueboys”, que acreditavam na urgência de conter o falso progresso no qual o Recife estava inserido. No filme, dirigido por Paulo Caldas e Lírio Ferreira, vê-se uma mistura exótica. O passado convive em harmonia com o presente; o arcaico, com o moderno; a cultura popular, com a cultura pop, traduzindo, em sua própria linguagem, o que Chico Science anunciava na abertura do disco: “modernizar o passado é uma evolução (musical)”. Na década de 90, a cena cultural pernambucana fervilhava. De acordo com a pesquisadora Amanda Nogueira, em seu livro Cinema Pernambucano: uma questão de estilo, com o surgimento do manguebeat, transformações foram provocadas em todo um contexto de renovação da produção cultural do estado. Os cineastas pernambucanos, portanto, também participam dessa experiência musical, entrando em contato com seus códigos culturais, valores sociais, e sentimentos compartilhados que forneceram elementos para a construção das identidades sociais e laços afetivos entre os profissionais dos dois campos artísticos.

É exatamente o Recife como metrópole a cidade retratada em Baile Perfumado. O filme se passa nos anos 30, período em que o cangaço imperava no sertão do nordeste. No início do século XX, a população rural permanecia pobre e explorada pelas oligarquias e dificuldades que vieram com a República Velha. A situação cada vez mais se agravava, dando início a uma série de movimentos populares. Um desse foi o cangaço, ou “banditismo social”, termo criado pelo historiador Hobsbawm para designar esse grupo composto por homens pobres e destemidos, que atacava armazéns e fazendas, distribuindo comida para o povo, sendo, por outro lado, extremamente cruéis com seus inimigos, não exitando em torturar, estuprar e executar. A população pobre que colaborava com os cangaceiros era protegida e tratada com generosidade. É nesse contexto de “banditismo social” que surge o mito de Lampião.

Uma das faixas de destaque no disco Da Lama ao Caos, Banditismo por uma questão de classe, compara a atual marginalidade no Recife com a época de Lampião. Ao ouvir a música, constatamos que não há muitas diferenças entre os motivos que levam alguém a se tornar bandido nas duas diferentes épocas da história. A desigualdade continua, apesar do aparente crescimento da cidade. A denúncia social não é privilégio apenas dessa faixa. O disco todo possui um discurso muito sensível e consciente dos problemas pelos quais a cidade passa. Temas como o êxodo da população do nordeste para a região sudeste do país, a necessidade de organizações populares que lutem por seus direitos, o futuro das artes com o advento da tecnologia, a estrutura física da cidade, a violência, entre outros, estão embutidos nas músicas do Da Lama ao Caos.


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