Tirem-nos de lá até sexta-feira



Tirem-nos de lá até sexta-feira

(baseado livremente na música Get them out by friday, do grupo Genesis, álbum Foxtrot de 1972)

 

 

 

  • Tirem-nos de lá até sexta-feira, se não não pagarei vocês!Já dei a ordem para que sejam removidos, espero ter sido bem claro. O projeto já está correndo e o tempo não vai ficar esperando passar a preguiça de vocês. Espero que todo mundo tenha recebido suas instruções e tenha entendido. Não quero e não suporto moleza!Este projeto é revolucionário, é uma maravilha, o mundo inteiro vai ficar de queixo caído!!! Tirem-nos de lá até sexta-feira, ou então não vão receber um mísero puto, e não adianta ficar reclamando depois, nem ir na justiça, a justiça a gente controla.

    Assim costumava falar com seus subordinados o Sr. John Peeble, a cabeça por trás da Styx Enterprises, empresa incorporadora, sede do conglomerado, sempre ávida por novos terrenos, novos espaços, novas oportunidades de negócios. “O mundo é uma selva, e só os animais mais espertos e fortes sobrevivem” era o lema do Sr. John, frase que pontuava sempre os seus discursos, quase um slogan permanente associado com a imagem de seu rosto flácido e pálido, com olhos azuis perfurantes encharcados de uma volúpia e uma avidez pecaminosa. Um homem de sucesso entre seus pares, condecorado com o título de empresário do ano por três edições consecutivas. Seu lema, em princípio aplicado ao mundo dos negócios, acabou por ser usado em cada aspecto de sua vida. A Styx Enterprises mais do sua empresa, era a sua própria extensão, sua razão de ser nesta encarnação.

    Seu mais recente empreendimento era um projeto novo, um novo conceito de moradia voltado aos novos tempos que surgiriam, com a aplicação de recentes descobertas feitas pela pesquisa genética aplicada, conduzida pelo Instituto Peeble Styx , cercada de grande sigilo e muita expectativa. O segredo por trás da pesquisa fez surgir diversas especulações. A curiosidade era estimulada pelo Sr. John, com dissimulações, negativas, falsos boatos feitos circular por meio de seus contatos na imprensa. Dizia-se que uma nova espécie estava surgindo, ou que a manipulação genética criaria seres superdotados a serviço da Styx Enterprise, guiados pela vontade soberana de seu mentor, cuja ambição não conhecia limites. Ele não dizia sim, muito menos não, deixava fermentando este “bolo”, e quanto mais boatos mais as ações de sua empresa ficavam valorizadas.

    A base onde ficaria assentado este novo empreendimento imobiliário ficava no pequeno subúrbio de Harlow, muitas milhas longe do centro, até então meio esquecido pela onda da especulação imobiliária, que jogara os preços dos terrenos nas alturas. Harlow não chamava a atenção, era um lugar de pessoas simples, discretas, pouco abonadas, inquilinos na maioria. Grande parte dos blocos residenciais tinha aquecimento central e um pequeno jardim coletivo, motivo de orgulho dos moradores, que se esmeravam para cuidar, e até criaram um campeonato de jardinagem, cujo resultado era ansiosamente aguardado ao final de cada ano e divulgado numa grande festa.

    A Styx Enterprise há muito vinha comprando propriedades nos arredores de Harlow. O instinto aguçado de John Peeble dizia-lhe que a bola da vez seria aquela região, justamente por ser tão esquecida. Ninguém dava muita atenção aquele subúrbio sem graça, então a Styx Enterprise pulou na frente e quando os demais jogadores daquele mercado se deu conta, John Peeble já era o dono do pedaço. Dentre seus inúmeros colaboradores, ou seus asseclas, se considerarmos o ponto de vista dos adversários, o mais destacado era Mark Hall.

    Mark havia adquirido um tique nervoso que o fazia piscar com frequência, logo passaram a chamar-lhe ( pelas costas é claro) de Pisca-Pisca. Com uma personalidade magnética ao contrário, se sentia atraído e anulado quase sempre, quando em presença de alguém mais firme. Mimeticamente passava a utilizar gestos, frases, jeito de vestir, opiniões das pessoas que admirava. Um simulacro de indivíduo, bastante útil como instrumento a serviço de interesses no mínimo escusos, ou como pau mandado, quando a ação a ser executada era banal, insossa, ou suja. Em síntese, Mark Hall sujava suas mãos para que as mãos de Peeble ficassem imaculadas. Existem muitos como ele. A evolução das espécies deve ter alguma explicação para a existência deste tipo de indivíduo.

    Mark Hall já estava pronto e de pé numa segunda-feira nublada, fria, com nuvens baixas prontas a desabar sobre os ombros dos infelizes obrigados à labuta diária, para alcançar o pão de cada dia, que neste dia parecia chegar encharcado nas mãos comuns dos trabalhadores anônimos. Mark olhava pela sua janela ensaiando as frases copiadas de seu patrão e mentor, naquela missão especial conforme lhe dissera Mr. Peeble.

    • “Mark, meu fiel cão de guarda, quero que você vá até Harlow e comunique aos moradores que eles precisam arrumar já um lugar para se mudarem. Esta semana eu finalizei a compra de praticamente todos os “cortiços” daquele pedaço inútil, e portanto, meu projeto precisa acelerar. Diga aos que quiseram ficar, que continuarão inquilinos, só que MEUS inquilinos, e que se quiserem participar como voluntários do meu projeto, deverão assinar um termo de cessão de direitos, coisa simples. Eu tenho uma minuta para você mostrar, caso alguém pergunte do que se trata. Diga-lhes que é de interesse da humanidade.

    • Sim senhor Pebble, mas você poderia me adiantar alguma coisa desse seu projeto, para que eu possa explicar melhor?. Sabe, todos estão muito curiosos, há muitos rumores circulando...

    • Que tipo de rumores?

    • Bem, ah sabe... estão dizendo que o senhor pretende criar uma nova espécie, sei lá... Não entendo bem estas coisas de genética .Tem gente assustada, mas com medo de perguntar, e então pediram que eu tentasse descobrir alguma coisa...

    • Ah, ah,ah,ah meu caro Mark! Você é um bom colaborador, mas este assunto não é da sua competência. Cuide de fazer sua parte, o resto você saberá depois, na hora certa. A revolução está a caminho!!.

    Mark sabia que seria inútil conseguir qualquer coisa dali. Levantou-se e foi cumprir sua tarefa.

 

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A mesma segunda-feira cinzenta nascera para a Senhora Barrow. As mesmas nuvens pesadas, tão comuns naquela região, que servem para dar bom dia aos trabalhadores modestos de Harlow. O sono intranquilo a deixara apreensiva. Ela dava muita atenção a seus avisos. Chamem de premonição ou qualquer outro termo, mas ela vinha tendo sonhos repetidos onde ela e seus vizinhos eram lançados no ar por torvelinhos de vento, e ao descer para o chão todos iam diminuindo de tamanho. Acordava assustada e chamava por Mary, sua filha solteira, a única e que morava com ela, esta enfermeira aposentada, que à custa de muito sacrifício e abnegação, conseguira criar Mary sozinha.

Toda manhã Mary andava pelas quadras calmas de Harlow, até o terminal de ônibus que a leva para o trabalho. Como moram há bastante tempo, assim como quase todos os vizinhos, não há perigo nas ruas. Uma rotina com pouquíssimas alterações, uma comunidade pacata e, diria até, bastante conservadora, que começou a notar a presença cada vez mais constante de alguns homens desconhecidos. De início só ficavam andando pelas ruas, e logo começaram a abordar alguns moradores, principalmente a turma que se reunia no pub local. Depois de muitas cervejas as línguas ficam mais relaxadas, e os estranhos começaram a demonstrar um interesse especial por aquele pedaço afastado de subúrbio.

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      • Bom dia, posso pagar uma rodada de Guiness ?

      • Por quê? respondeu Joe Ordinary ao forasteiro que não parava de piscar.

      • Deixe me apresentar: meu nome é Mark Hall e eu represento a empresa de um cavalheiro, que recentemente adquiriu este prédio e quase todas as casas ao longo da avenida. Estou fazendo um trabalho de aproximação e convencimento aos moradores deste bairro. A Styx Enterprises está interessada nesta região. Há um projeto grandioso em andamento, e eu fui incumbido de trazer as novidades para os moradores. Digamos que eu seja o porta-voz do Sr. Peeble, meu chefe.

      • Que projeto é este, quem são vocês, que história é essa de comprarem todas as casas?!

      • Olha, os detalhes do projeto só o Sr. Peeble sabe, infelizmente ele é muito centralizador. Antes de vir para cá eu tentei descobrir alguma coisa, pois achei que seria melhor, para poder responder perguntas como a sua, mas ele não disse nada, só falou que era um projeto revolucionário, que o mundo ficaria espantado. Eu vim com a missão de dizer-lhes que, quem quiser pode continuar sendo inquilino, faremos novos contratos de locação, e junto com os novos contratos há uma cláusula de consentimento que será melhor explicada depois.

      • Consentimento para que? Olhe, não estou gostando nada dessa conversa...

      • Fique calmo, tudo se resolve. A Styx Enterprises é uma empresa idônea, não vamos prejudicar ninguém, te dou minha palavra!

      • Ora bolas, eu nem lhe conheço, como vou saber se sua palavra vale alguma coisa?

      • Tudo bem, por hora é só o que eu posso dizer. É só um contato preliminar. Voltarei com mais detalhes na próxima semana. Só lhe peço um favor: espalhe entre seus vizinhos o que acabei de contar.

Joe Ordinary ficou muito ressabiado com aquele encontro e começou a contar para os vizinhos a estranha conversa que havia tido. Logo um clima de inquietude e muitas dúvidas cresceu dentro dos quarteirões de Harlow. Um dos vizinhos foi checar no cartório se de fato as casas haviam sido vendidas. Quando ficou constatado que não só as casas da avenida principal, mas 90% das casas haviam mudado de dono houve aumento da sensação de insegurança. Pouquíssimos moradores eram proprietários. Como num passe de mágica, quase que da noite para o dia, a maioria dos moradores de Harlow havia mudado de senhorio. Ninguém havia sido consultado.

Na semana seguinte, não somente Mark Hall havia retornado, como se fazia acompanhar por um carro com alto-falantes que transmitia as novidades: “Senhores moradores de Harlow, como já é do conhecimento de vocês a Empresa Styx se tornou proprietária de toda esta região. Iniciaremos em breve um grandioso projeto imobiliário, acompanhado de um ambicioso projeto de pesquisa genética a ser aplicada neste bairro. Solicitamos aos atuais moradores, que, caso haja interesse em participar como voluntário neste projeto, garantimos a continuidade de seus contratos de locação antigos. Aos demais moradores que não tiverem interesse em participar informamos que já arrumamos um lugar melhor para onde vocês possam ir, já que este projeto é de interesse da humanidade.”

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“Oh não, não posso acreditar nisto. Oh não, eles estão nos mandando embora!”, e o lamento da Sra. Barrow ecoou pela vizinhança. “ Após todo este tempo eles nos pedem para sair deste jeito? Nem perguntam se podemos pagar ou não, mesmo que dobrem o aluguel!”. “Mary, é verdade o que estou ouvindo?”

  • Sim, mãe, é verdade. Não se fala de outra coisa.

  • Oh não, não posso acreditar nisto! Nós nem concordamos com isto!

  • Estou com medo, e se não tivermos lugar para ir ? Não dá para alugar nada deste padrão, com a renda que nós temos, nem em Polkland, nem em Highchester, lugar nenhum... Fora esta estória esquisita de experiências genéticas que estão falando.

  • Que estória é esta filha?

  • Sei lá, está correndo um boato, e isto eu soube também no escritório, de que o dono desta Styx Enterprises tem um laboratório secreto onde fazem experiências terríveis, e que o governo sabe, mas faz vista grossa, porque ele foi o maior financiador das últimas campanhas eleitorais.

  • Meu deus!!! Isto é possível?

  • Olha se é possível eu não sei, mas tudo está muito confuso e nebuloso.

 

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      • Tirem-nos de lá até sexta-feira, ah ah ah ah ah! Pensando bem é um bom lema para estimular meus funcionários. Eu sempre disse, e aprendi há muito tempo, quando comecei nesta vida de empresário, que a grana sempre ajuda a fazer bem as coisas que precisam ser feitas. O trabalho pode e deve ser recompensador, principalmente para mim! Rá, rá , rá. É só molhar bem molhadinha algumas mãos encaloradas e sedentas, que logo seus problemas desaparecerão, ah que maravilha!! Bastaram algumas fotografias e 400 libras, só 400 libras, e todo aquele pedaço encardido de mundo agora é meu, todo meu! Meu caro Mark, não esqueça do agradinho que prometi para o tabelião do Registro de Imóveis de Harlow. Veja bem, só 400 libras, hein! Não vá desperdiçar meu suado dinheirinho, he hehehehehehehe!!.

      • Sim, Sr. Peeble, pode deixar comigo, o Sr. conhece a minha dedicação, não é mesmo?

      • Tenho que admitir que você até hoje jamais me desapontou, meu caro Mark. Acho que você tem futuro. As vezes você me lembra a mim mesmo quando jovem. Eu sempre fui obcecado e comprometido com o meu sucesso, ninguém podia ficar na minha frente, qualquer pequeno obstáculo era um estímulo para ser atropelado. Todos os fatos até hoje me deram razão. Eu sou “O” sucesso personificado, ahhh. Se tivesse nascido na antiguidade, naquele tempo sem estas regras de civilidade e humanismo, bahhh, eu teria sido um conquistador, um imperador, o mundo seria meu!!!

Mark ficava olhando embevecido para seu mestre. Dizem até as más línguas que ele mantem um poster de seu adorado chefe na parede de seu quarto, vejam só a que ponto chega a dedicação deste rapaz! Talvez ele tivesse o interesse de subir cada vez mais na hierarquia da empresa, ou quem sabe, num momento de extrema ousadia em seus pensamentos, ele sonhasse em suceder ao grande patrão, que não tinha herdeiros nem descendentes, muito menos família. “Minha família é a minha empresa” repetia aos seus interlocutores o Sr. Peeble. Não creio que alguém tolerasse conviver intimamente com tão respeitada figura.

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Em pouquíssimo tempo as desapropriações começaram. Pesados caminhões, tratores, gruas, guindastes, operários, se instalaram em Harlow. Com pesados investimentos, e todas as facilidades que estes investimentos trazem, quando se trata de conseguir licenças e documentos que facilitem as coisas para um empreendedor poderoso, a feição antiga e acolhedora, embora um tanto insossa do subúrbio de Harlow, começou a mudar radicalmente.

Os moradores atônitos quase não conseguiam entender as mudanças pelas quais passava seu território. Muitos saíram, muitos foram praticamente expulsos, e o restante assinou o tal termo de linguagem dúbia, que prometia facilidades e garantias de contrato caso consentissem em participar das experiências em curso, promovidas pelo instituto Peeble Styx.

 

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A reunião começou pontualmente às 17:00hs. Presentes na sala soturna do Edifício Peebles, anexa ao salão de reuniões do 30º andar, somente o Sr. John e os Drs.Vassili Narotov e Florian Gordulescu, responsáveis diretos pela tal pesquisa secreta, que por anos instigou a imaginação, e fermentou as especulações sobre quais mudanças estavam em andamento no quartel general da Styx. Dois renomados, orgulhosos e ambiciosos cientistas, seduzidos pelas promessas do Sr. John, e facilmente atraídos para seu campo gravitacional. Afinal, quem jamais pensou em ser deus por um dia?

  • Senhores, como vai meu projeto? Posso anunciar finalmente a maior mudança já imaginada pela humanidade? Posso dizer aos quatro cantos do mundo, finalmente, que o problema de espaço e de superpovoamento das metrópoles está com os dias contados?

  • Errrr, creio que sim Mr. Pebble, estamos tão somente finalizando os últimos protocolos, detalhes insignificantes. O projeto está pronto, disse o Dr. Narotov, num tom quase trinfante.

  • Veja só Mr. Peebles, o Sr. é um homem de visão. Não é a minha área, mas por que dispender tanto dinheiro em material de construção para construir mais e mais, quando podemos diminuir as pessoas, de forma que caibam duas onde cabe uma? Sim, foi uma grande ideia, e fico muito agradecido de ter participado neste processo. Disse então o Dr. Gordulescu, cujas ideias avançadas e humanitárias vinham de longa data, desde o tempo em que contribuía de forma voluntária e dedicada ao regime do Dr. Ceausescu, em sua Romênia natal. Agora, já em estado decrépito, buscava deixar uma marca indelével nas conquistas da humanidade. Seu colega e amigo de longa data, o Dr. Narotov, havia fugido quando o regime comunista desabara, e ele sentiu que não mais poderia trabalhar envolto em mantos de mistério.

  • Obrigado aos queridos colaboradores. Quando poderei anunciar nossa grande conquista?

  • Convoque a imprensa tão logo queira, disseram em uníssono os dois laureados pesquisadores.

 

 

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Os telejornais, rádios, todos os tipos de mídia, ecoaram a divulgação do comunicado feito através do assessor de imprensa da Styx Enterprises. O grau de estupefação que logo tomou conta de todos os envolvidos, assim como de todos os círculos bem pensantes (e não tão bem pensantes assim) se espraiou e assustou a opinião pública, incrédula em saber o nível de ousadia a que chegara o notório Sr John Peebles. Eis o resumo do comunicado:

 

“ Quero comunicar à toda a imprensa, bem como a todos os círculos que possam se interessar por tal assunto, que a Styx Enterprises, personificada na figura do Sr. John Peebles, presidente e líder supremo de seus empreendimentos, vêm a público divulgar o resultado dos anos de pesquisa séria e dedicada, levadas a termo pelos Drs. Vassili Narotov e Florian Gordulescu, responsáveis técnicos pelos resultados finais, pesquisa esta que por todo este tempo suscitou tantas especulações e rumores. Sabedores que somos que o problema habitacional e de ocupação do espaço nas grandes metrópoles é de alto grau de preocupação para toda a sociedade, trazemos para toda esta sociedade a solução para este grave problema. A solução é simples: Temos agora os meios para alterar na base genética, a determinação do tamanho dos seres humanos, de forma que, doravante, o tamanho médio dos humanóides seja diminuído pela metade, ou mesmo menos do que isso. O resultado da pesquisa é de tal magnitude, que mesmo pessoas já adultas poderão ser diminuídas, sem que disto resulte grandes transtornos de ordem física para as mesmas.

O sigilo absoluto requerido no andamento da pesquisa fez com que alguns protocolos mundialmente aceitos pela comunidade científica precisassem ser desprezados, pois o fim a que se destina, em face da gravidade do problema habitacional e ambiental, têm importância maior do que as regras ditadas pelo rigor acadêmico.

O que alcançaremos com isto? Simples e claro, onde cabe um ser humano caberão dois, ou com um pouco de boa vontade, três. Nosso carro chefe são os empreendimentos imobiliários, e tomamos como piloto, e pesquisa de campo o subúrbio de Harlow. Já está em andamento a aplicação prática de nossa pesquisa. Na recente aquisição de toda aquela região, ficou estipulado nos novos contratos de locação que, de forma voluntária, (conforme o pequeno inciso colocado ao pé da página 5, em tamanho 4), que todos os novos inquilinos serão submetidos ao novo tratamento. Paralelo a isto, é sabido por todos que a recente lei de reordenação do espaço urbano, cuja inspiração partiu da mente fértil do Sr. John Peeble, foi votada e aprovada na Câmara, em que pese toda a crítica da imprensa hostil e ignorante, cuja alegação de que a votação foi feita à portas fechadas e de madrugada, mediante vultosas transferências em espécie, não procede.

O que estamos contemplando hoje é o surgimento de uma nova era, onde indivíduos menores demandarão menos recursos, tão escassos estes recursos se apresentam já em nosso presente, o que nos dirá no futuro? Se não tomarmos já iniciativas que projetem um futuro com menos conflitos, poderemos num curto espaço de tempo ser testemunhas do caos e da destruição completa de nossa bela civilização. Devemos estar cientes de que haja um esforço de boa vontade por parte de todas as vozes discordantes dos nossos pontos de vista, ou então não hesitaremos de utilizar dos meios a nosso dispor que faça com que a aceitação de nossa visão gloriosa seja completa. Não há meio de escapar, o futuro chegou por nossas mãos, e o oferecemos a todos os bons cidadãos. O debate e a livre discussão de ideias cessam quando um perigo maior se antepõe a todos. A discordância, neste momento, é um sinal claro de rebeldia e egoísmo por parte daqueles que pregam soluções mais utópicas e inaplicáveis, cujo humanismo e ecologismo não podem ser cogitados em face da crise iminente que já vemos no horizonte, etc etc etc”

 

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Os sinais de mudança no cenário político já estavam bem claros, quando uma nova legislação foi aos poucos sendo implantada, e um crescente endurecimento das instituições foi ficando mais vísivel. Grande parte da opinião pública já não tinha mais opinião nenhuma, encharcados e abarrotados pela bonança duradoura. O sono cheio de sonhos de conforto e abundância embriagou com o ópio do bem estar material a geração que admitiu de bom grado transferir sua independência de pensamento e opinião para aqueles que lhes garantissem a vida livre dos percalços da escassez.

A conta chegara agora na figura do novo Messias, que nos meandros escuros da cooptação, adulação, cumplicidade ou mera extorsão, conseguira atingir seu objetivo por meios legais. Naquela manhã a propriedade da carga genética da humanidade estava de posse de um novo dono. E tudo dentro dos conformes e dos ditames da Lei.

Em poucos anos a mudança drástica no jogo político varreu da sociedade qualquer vontade de mudança ou contestação. Pouco a pouco a vontade majoritária do pensamento econômico-tecnológico-catastrofista se impôs aos países, que se aglomeravam em blocos cada vez maiores, e cada vez mais unidos e homogêneos. A questão toda foi tornada oficial quando o próprio Ministro da Saúde, por intermédio do diretor do Controle Genético, como porta-voz, anunciou:

 

-” É meu dever anunciar a todos os cidadãos sobre as novas regras que a legislação sobre o controle e aproveitamento dos recursos espaciais e biológicos impõe. Desta data em diante, conforme a vontade de nosso excelso legislador, todos os habitantes deverão se submeter ao engenhoso método de nanoreengenharia corporal. Desde o anúncio feito pela prestigiosa Styx Enterprises, poucos anos antes, que o sucesso da medida se mostra cada vez mais evidente. Foram observados casos residuais de efeitos colaterais indesejados, o que acarretou o reassentamento da ínfima população atingida. Mas a estatística comprova a aceitação da maioria absoluta da população, medida através dos institutos oficiais de pesquisa. A diminuição do percentual estabelecido entre 40% e 70% do tamanho dos seres humanos nesta nova era implicou em redução considerável dos recursos naturais. Onde antes cabiam 10 pessoas, hoje cabem de 20 a 30 pessoas, que consomem roupas menores, carros menores, menos comida, entre outros fatores positivos. A extensão da aplicação das medidas depende da boa vontade e dever cívico de cada cidadão. Há um prazo estabelecido para que todo o conjunto da população esteja convertido no novo modelo de Homem. Dissidências serão tratadas com rigor. Contestações são ilegais. Esta é a vontade de nosso grande inspirador e nosso grande modelo, Sr. John Peeble. Seja feita sua vontade”.

 

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-”Aqui estamos na New Town Harlow, quase não dá para reconhecer os antigos quarteirões desta que outrora foi uma comunidade modesta e tranquila. Este pequeno distrito se tornou mundialmente conhecido por ter sido o projeto piloto do maior acontecimento científico da civilização humana. As novas construções erguidas para servir de moradia, totalmente adaptadas às novas dimensões do gênero humano, e construídas a um custo 60% inferior aos antigos métodos construtivos, são o cartão de visitas mais vistoso da Organização Styx”, assim começava a mais nova peça publicitária divulgada na Rede Estatal de Teletransmissão. Como o controle acionário da rede estava de posse da Styx, durante vários intervalos da programação as vantagens e benefícios do projeto eram divulgados para a plateia cativa, quase como um mantra áudio-visual, com suas belas imagens e sons envolventes,

     Poucos conseguiam ficar indiferentes ao apelo, pois a complacência havia se tornado uma atitude corrente naquela sociedade saciada e com pouquíssimo apetite para a contestação. Aliás, a contestação, além de ilegal, não era vista com bons olhos pelos semelhantes. Afinal, por quê abrir mão de todo o conforto e realizações importantes que foram conseguidas num breve espaço de tempo?

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A Sra. Barrow estava em sua minúscula sala, diminuindo a medida de sua roupas, reaproveitando suas estimadas peças de vestuário. Seus rendimentos escassos ainda não haviam permitido trocar toda a sua mobília. Algumas peças ainda no tamanho antigo atravancavam seu espaço. Uma pequena escada para alcançar a cama velha fora sua última aquisição. Cada vez mais solitária ela tinha muitas dificuldades em aceitar a nova situação, mas guardava em silêncio profundo sua amargura. Ao espetar o dedo ela subitamente recordou-se daquele sonho estranho que tivera havia alguns anos, onde um turbilhão de vento arrastava a todos, e à medida que voltavam ao chão, todos iam diminuindo de tamanho. Sua campainha toca, e ela reconhece o rosto insípido do coletor de aluguéis no monitor.

      • Boa tarde Sra. Barrow, sinto informar-lhe que desde a última vez que conversamos, nós chegamos a conclusão que precisaremos aumentar o aluguel de novo, só um pouquinho. Obrigado e passe bem.

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“Oh não, não posso crer nisto! Oh Mary , e pensar que nós aceitamos tudo isto! “. Seu lamento ecoou pelas paredes de sua moradia, como se pudesse ser ouvido pela filha, cujo paradeiro ela não tivera mais notícia, desde que Mary passou a integrar o contingente residual das pessoas sujeitas aos efeitos colaterais do experimento, e desaparecera dos registros oficiais. Sua tristeza e suas preocupações não atraíam a atenção dos vizinhos, tão ocupados em aproveitar as novidades tecnológicas, e que passaram a desconfiar que sua filha havia se tornado algum monstro renegado e contagioso, quando na manhã daquele agosto sombrio e já longínquo havia sido retirada de casa de forma pouco amistosa pelos fiscais da Secretaria para Ordenação das Novas Diretrizes Habitacionais, amarrada e amordaçada. Desde então a pacata senhora fora instada a desistir de sua procura, quando sutilmente fora advertida de que poderia ter sua pensão suspensa por tempo indeterminado, caso insistisse em saber do paradeiro de pessoa suspeita de portar anomalia impeditiva da adaptação ao novo paradigma social. Desde então a solidão e a saudade passaram a fazer parte da sua rotina.

O isolamento é um mecanismo eficiente para evitar a disseminação de ideias, sentimentos, pensamentos impuros, atividade suspeitas, atitudes que não podem ser aceitas de acordo com o novo código moral da nova era onde o tamanho importa, desde que seja o tamanho oficial. O isolamento é a norma nesta sociedade, e o isolamento foi o que restou a Sra. Barrow.

 

Mark Hall descia as escadas com certa dificuldade, a perna esquerda doía um pouco. A idade começava a pesar em sua estrutura. Encerrara mais um dia monótono na empresa que escolhera dedicar a vida. Os anos foram escoando e ele um dia se dera conta de que seu esforço e sua devoção de nada ajudariam no progresso que traçara. Ele desconfiava que mais do que diminuir o tamanho das pessoas, as hoje notórias pesquisas genéticas também serviram para prolongar a vida do seu patrão tão querido e estimado. De fato ele parecia tão firme e resoluto quanto há 20 anos, quando Mark entrou por estas portas pela primeira vez. Quanto anos ele teria? Ninguém sabia, e ninguém tivera a coragem de perguntar. Os olhos azuis flamejantes cheios de cobiça e volúpia continuavam cada vez com mais volúpia e cobiça, e ele parecia ter crescido ao invés de reduzido de tamanho.

Mark pouco havia visto seu querido e amado patrão nestes últimos anos, em que a realidade se tornara mais fantástica do que a ficção. A maturidade havia chegado, e com ela a morte das ilusões. Ser o presidente da Styx Enterprise saíra da sua lista de desejos. Ser o preferido do chefe também, bem como muitos outros itens que ficaram para trás, da mesma forma que todas as pessoas as quais ele ludibriara em nome de sua dedicação e empenho. Cada noite ao deitar ele repetia para si: “ Só cumpri o meu dever”, a complacência se unindo à negação para justificar tudo. Ele não se lembrava mais dos sonhos, nas infindáveis noites em que o sono, irmão da morte, chegava na exaustão daquele corpo cansado e gasto e destruía em migalhas, um pouco a cada dia que passava, sua mera existência.

 

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A Styx Enterprises reluzia à noite em seu edifício iluminado, destacado no conjunto de construções mais baixas e opacas na área central da cidade. As linhas austeras do prédio contrastavam com a exuberância das luzes noturnas, num simbolismo evidente e didático, que fazia com que o povo jamais esquecesse de quem havia trazido o futuro e a salvação. No alto, no topo, mirando o horizonte, sem obstáculos, sem contestação, sem dúvidas, Mr. John Peebles, agora Sir John Peeble contemplava a obra de sua vida, na extensão de seus domínios.

Sem interlocutores, apenas subordinados, ele produzia monólogos que ecoavam pelas paredes de seu escritório-moradia. Sua palavra passara a ter a força de lei, quase um dogma. Quem haveria de se contrapor ao maior exemplo de sucesso que a humanidade conhecera? Os livros de história sutilmente eram retirados do mercado, os livros didáticos reescritos. Onde a memória se escondera? Apesar de toda a velocidade de mudanças que a sociedade moderna já se habituara, nada pudera se comparar com esta vertigem, este turbilhão, quase uma obsessão pela mudança, que culminara na apropriação do patrimônio genético da população nas mãos de um único homem e sua vontade, a ponto de tudo se tornar normal, e tudo ser permitido, desde que não se toque no cerne da questão: o conforto e a comodidade como valor máximo e inquebrantável da civilização.

Lá estava ele, com um copo na mão brindando a si mesmo. Bebeu um gole, olhou para baixo, voltou a olhar para frente. Não precisava de ninguém. Onde aprendera isto? Ou quando percebera que não precisava de ninguém? Só dos subordinados. Alguém que lhe trouxesse sua refeição ou seu copo cheio. Alguém que só atendesse ao comando. Estava satisfeito. Estava saciado? Ninguém poderia dizer. O isolamento aos indesejados, como norma da sociedade que erigira, lhe cabia como uma pele perfeita, sem máculas, sem o dissabor da repugnância que causava aos seus próximos, em sua juventude, com sua pele pálida e seus olhos azuis ofuscantes. Decidiu a partir daí criar um mundo em que seria o senhor, e não precisaria mais sentir os olhares de censura e asco.

Enfim conseguira, e nesta noite ele celebra apenas consigo. Olha a Lua ao longe e pensa o quanto ela valeria. E sonha, ainda que acordado, com o universo todo, como se fosse possível. Pensa, mesmo que não saiba, sobre o reino de todas as possibilidades. Limites. A embriaguez do sucesso lhe turva o raciocínio, a insanidade logo ao lado. Ele não tem espelho, só o infinito a sua frente.

A noite está bela, as nuvens deslizam suaves, um vento calmo as empurra como um trenó. A noite chega e vai embora, e não quer saber dos sonhos mesquinhos ou delirantes, a noite a todos envolve e será assim até o fim.

 

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No dia seguinte, depois de um sono dos justos, ou dos que não tem remorsos, depois de um belo desjejum servido em bandejas de prata e louça fina, Sir John chama seu outrora fiel cão de guarda, seu prestativo funcionário, agora envelhecido e diminuto, para mais uma missão.

  • Mark, meu obstinado colaborador, tenho um serviço perfeito para você, para reviver aqueles velhos tempos de expansão e conquista, que você tanto gostava. Eu descobri que ainda há algumas propriedades que não me pertencem. Algumas estão desabitadas. E vi que era hora de mandar meu querido “pisca-pisca” para trabalhar um pouco mais. He,he,he,he.

Em outros tempos Mark ainda teria sorrido, mas hoje ele somente curva seu corpo em sinal de obediência e sai para cumprir mais uma ordem. Antes que ele fechasse a porta Sir John lhe dá um conselho valioso.

  • Mark marque minhas palavras: Com terras na sua mão você será feliz sobre a Terra... ou então invista na sua igreja para alcançar o seu Céu.

 

 

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Autor: Ivan Henrique


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