A metáfora presente em O Guardador de Rebanhos de Fernando Pessoa



A METÁFORA PRESENTE EM O GUARDADOR DE REBANHOS DE FERNANDO PESSOA¹

 

RESUMO: O presente artigo tem o intuito de mostrar a presença da metáfora em alguns poemas de Alberto Caeiro- Fernando Pessoa. Primeiramente, irá discutir sobre metáfora e os possíveis conceitos, logo depois serão relacionados estes conceitos com alguns fragmentos dos poemas de O Guardador de Rebanhos. Este trabalho tem como embasamento teórico os estudos de José Paulo Paes e A poética de Aristóteles. Ao final do artigo conclui-se que a obra O Guardador de Rebanhos é repleta de metáforas, em que estas compõem os poemas de Caeiro com excelência havendo a presença e ausência, certo estranhamento e o prazer e desprazer abordado no texto “A pedagogia da metáfora” de Paes.                                                              

PALAVRAS-CHAVE: Metáfora. O Guardador de Rebanhos. Fernando Pessoa. Alberto Caeiro.

 

INTRODUÇÃO

            A metáfora é uma figura de estilo presente na linguagem com a função de elevar o discurso, por conta de o seu caráter literário ser nobre. Esta figura de linguagem consiste na transposição de um termo para outro a partir de uma relação de semelhança entre sentidos.

            O Guardador de Rebanhos é uma obra escrita pelo heterônimo de Fernando Pessoa, Alberto Caeiro. Constituída por poemas, em que estes apresentam a forma simples e natural de sentir e dizer de seu autor, voltado para a natureza e as coisas puras.

            A metáfora está presente em quase todos os poemas, apesar do escritor dá maior atenção à natureza e preferir as sensações ao pensamento, ele se utiliza de elementos da natureza como metáforas a fim de embelezar o poema e dá um aspecto misterioso.

            Portanto, o presente trabalho pretende apresentar a noção de metáfora, discutindo-a e relacioná-la a alguns poemas de O Guardador de Rebanhos.

 

PARA UMA COMPREENSÃO DA METÁFORA

            O primeiro conceito sobre metáfora deve-se a Aristóteles (1997, p. 42), em que diz o seguinte: “Metáfora é a transferência dum nome alheio do gênero para a espécie, da espécie para o gênero e duma espécie para outra, ou por via de analogia”. Vale destacar que esta conceituação de metáfora ocorre no nome ou na palavra.

Enquanto elemento fundamental na perspectiva de Aristóteles, o nome é objeto de uma transposição de um nome para outro, este movimento de deslocar implica, necessariamente, em um desvio ao uso vulgar e corrente de uma palavra e pressupõe, simultaneamente, um pedido de empréstimo ao sentido de outra palavra, em que o significado será dado à primeira.

A metáfora aparece, por conseqüência, como uma substituição de uma palavra de sentido próprio para uma palavra com sentido conotativo. Para Aristóteles a metáfora representa a forma mais essencial e distinta para o embelezamento da linguagem, pois “A excelência da linguagem consiste em ser clara sem ser chã. A mais clara é a regida em termos correntes, mas é chã [...]” (ARISTÓTELES, 1997, p. 43).

 Portanto, a metáfora eleva o discurso, transforma a linguagem vulgar em linguagem nobre, que é considerada a melhor forma de surpreender o leitor ou ouvinte, apesar dos termos metafóricos não serem tão claros, como o coloquial, mas dá um toque diferente, expressando com certo estranhamento as idéias e emoções, porém tornando-a mais bela.

Segundo Paes (1997, p.14): “[...] há uma alternância de presença e ausência a que se associam, concomitantemente, sensações de prazer e desprazer”, ou seja, a metáfora traz esta sensação de desprazer quando ocorre o primeiro contato do leitor com as expressões metafóricas causando certo estranhamento e é aí que acontece o desprazer quando a princípio não há compreensão de tal analogia. Já o prazer vem logo em seguida, pois é a identificação dos sentidos atribuídos aos nomes, é a compreensão se realizando, o entendimento da metáfora acontecendo.

 Metáfora é ausência e presença, isto é, ausência remete ao desprazer, pois ocorre quando não se identifica o real sentido da palavra, quando apenas é reconhecido o sentido figurado, dando a impressão de que não há coerência entre a palavra com o resto da frase. E a presença é o contrário, é o reconhecimento do sentido, é a compreensão que nos remete ao prazer, por isso há uma alternância, ora se entende, ora não se entende. É uma alternância do sim/não.

A metáfora é considerada ornamento, realce para elevar o discurso, pois contém a noção do desvio, conforme diz Paes (1997, p. 15) confirmando o dito acima:

Aristóteles introduz [...] duas noções básicas para a descrição do funcionamento da metáfora. Em primeiro lugar, a noção de desvio do “sentido ordinário” das palavras como meio de dar elevação ao discurso; em segundo lugar, a noção de estranheza que tais desvios suscitam: “importa dar ao estilo um ar estrangeiro, uma vez que os homens admiram o que vem de longe e que a admiração causa prazer”.

Então nota-se que a metáfora é uma figura de estilo que tem como finalidade aristotélica o embelezamento da palavra, consequenciando, o desvio que causa a elevação do discurso, tornando-o mais nobre, mais belo e este desvio provoca a estranheza nas expressões, pois desvio remete a noção literal de um desvio da compreensão, dificultando o entendimento.

Dessa forma, surge a redução de desvio que é a facilitação do entender o sentido da expressão metafórica. Reduzindo o desvio, diminuindo a estranheza causada por este, faz com que aconteça com mais facilidade a interpretação real, o entendimento, a decifração do enigma e, consequentemente, o prazer que é, também, a admiração da beleza do discurso causada pela metáfora.

Conforme Moisés (2004, p. 325):

A metáfora não é exclusiva da linguagem literária que tem suas raízes na intenção deliberada de criar efeito emotivo. Ela ocorre da mesma maneira na linguagem falada (tão abundante quanto nos textos literários). A diferença estaria no caráter assumido pela metáfora vulgar cotidiana e a metáfora utilizada com objetivos estéticos. Em geral, a linguagem falada recorre às metáforas mortas ou latentes, quer dizer, metáforas tornadas clichês, vazias de sentido, conhecida como catacrese.

Sendo assim, a metáfora não é um estilo apenas literário, mas também da linguagem coloquial. A distinção está no caráter que é empregado a metáfora, no caso a literatura se utiliza deste estilo lingüístico para dá um toque poético, belo, rebuscado, sem correr o risco de cair no uso corrente, pois existem as metáforas fossilizadas, mortas que são aquelas em que não há mais o enigma, a estranheza e que a expressão metafórica já ganhou sentido próprio.

Portanto, na literatura a metáfora é essencial para a produção de uma poesia bela, com caráter nobre, a fim de que seja visto com bons olhos, com admiração e que a estranheza causada pelas metáforas seja peculiar a produção literária. Nos poemas de Alberto Caeiro nota-se constantemente a presença da metáfora, levando o leitor a buscar a decifração dos enigmas que há em O Guardador de Rebanhos.

 

A OBRA O GUARDADOR DE REBANHOS, ALBERTO CAEIRO E FERNANDO PESSOA

O escritor Fernando Pessoa é muito conhecido pela criação de heterônimos, um deles, considerado o mais importante para o autor é Alberto Caeiro, assim como coloca Moisés (1988, p. 27): “[...] Fernando Pessoa diz que “se há parte da minha obra que tenha um cunho de sinceridade, essa parte é a obra de Alberto Caeiro. [...] Se a observação vale para qualquer heterônimo adapta-se à perfeição a Alberto Caeiro e sua mundividência”.  Por isso Caeiro é tido como mestre dos demais heterônimos de Pessoa, por mais se aproximar das idéias de seu criador, pois cada heterônimo traz uma parte da multifacetada personalidade de Fernando Pessoa.

Alberto Caeiro demonstra ser um poeta simples, de formação fragmentada, pois tem apenas o “primário”, mas isto não é empecilho. O poeta demonstra um enorme interesse em falar da natureza e tem uma visão diferente dos demais heterônimos, “diversamente do Fernando Pessoa “ele mesmo”, em Alberto Caeiro o “eu” estabelece um diálogo, imaginário, com a Natureza, e nisso mora o seu traço distintivo mais relevante”. (MOISÉS, 1988, p. 27).

            N’o Guardador de Rebanhos, o escritor vem tratar das coisas naturais, do espontâneo, fazendo uso de comparações metafóricas por toda a obra, para ele o poema tem tudo haver com essas características, o poema verdadeiro, segundo ele, é justamente este, que passa naturalidade, espontaneidade, simplesmente surge, é algo inexplicável, pois é sentido e não pensado.

.           O autor critica em alguns de seus poemas, o fato do poema ser para alguns autores, algo ensinável, aperfeiçoado ou até mesmo trabalhado, para ele este tipo de poema não transmite verdade, por ser algo artificial.

            Há uma característica importante do escritor presente em seus poemas, que é a ausência de rimas, isto se dar, provavelmente, pelo fato de Fernando Pessoa ser um autor modernista e seu heterônimo ter herdado tal característica.

            Fernando pessoa considera Alberto Caeiro o mais importante dentre seus heterônimos, obviamente pelo fato deste assemelhar-se a ele, visto que ambos possuem bastantes características comuns, tornando assim o Guardador de Rebanhos uma obra fascinante.

 

ANÁLISE DE ALGUNS FRAGMENTOS DE O GUARDADOR DE REBANHOS QUE APRESENTAM METÁFORAS

                        Nos poemas de Caeiro, destacam-se palavras que demonstram comparações metafóricas. Alberto Caeiro (heterônimo) é um poeta muito ligado à natureza, talvez este seja o motivo pelo qual surgem essas comparações, geralmente envolvendo o ser humano e a natureza, isto se dá por toda a obra.

Toma-se como exemplo o poema I em que o poeta apresenta-se como pastor, como poeta natural, olhando sempre para os elementos da natureza com ingenuidade.

Eu nunca guardei rebanhos,

Mas é como se os guardasse.

Minha alma é como um pastor,

Conhece o vento e o sol

E anda pela mão das Estações

A seguir e a olhar.

Toda a paz vem da Natureza sem gente

Vem sentar-se a meu lado.

(O Guardador de Rebanhos, 2006, p.I)

 

Nota-se que há presença de metáfora, quando o poeta se coloca como pastor, pastor que nunca guardou rebanhos, mas é como se os guardasse, porque ele conhece a natureza na sua real naturalidade. Vale observar que natureza está com inicial maiúscula, atribuindo um valor absoluto, significando dessa forma, de que ela é mais do que se vê, natureza se sente.

Quando Caeiro fala em rebanhos, refere-se aos poemas naturais, que simplesmente fluem oriundos de um poeta puro, pois Caeiro acreditava que fazer literatura precisava pensar e não apenas sentir, portanto, não era essa a sua intenção, fazer literatura “Não tenho ambições nem desejos/ Ser poeta não é uma ambição minha/ É a minha maneira de estar sozinho.” (O Guardador de Rebanhos, 2006, p. I). Contudo, mesmo assim houve expressividade literária, fazendo uso de metáforas ingenuamente.

Percebe-se em algumas expressões, mesmo ingênuas que apresentam termos metafóricos:

Quando me sento a escrever versos [...]

Escrevo versos num papel que está nos meus pensamentos,

Sinto um cajado nas mãos

E vejo um recorte de mim

No cimo dum outeiro,

Olhando para o meu rebanho e vendo as minhas idéias,

Ou olhando para as minhas idéias e vendo o meu rebanho,

E sorrindo vagamente como quem não compreende o que se diz

E quer fingir que compreende. (O Guardador de Rebanhos, 2006, p.I)

O poeta diz que escreve versos no papel que está em seus pensamentos, há uma contradição se ele não é a favor do uso do pensamento, como ele pode se utilizar do pensamento para retirar seus versos? Fica o enigma, o mistério. Observa-se no poema IX, em que o poeta diz: “Sou um guardador de rebanhos./ O rebanho é os meus pensamentos/ E os meus pensamentos são todos sensações.” (O Guardador de Rebanhos, 2006, p.14).

Portanto, se percebe que o eu poético explica dizendo que os seus pensamentos são todos sensações, se no poema I ele diz que retira dos pensamentos as ideias, conclui-se que há a utilização de uma metáfora em que o poeta retira de seus sentidos as idéias (poemas) e não, literalmente dos pensamentos, pois seus pensamentos sãos todos sensações.

 Nota-se a presença da metáfora quando menciona a palavra cajado referindo-se ao poder que o cajado pode dar ao pastor em comandar seu rebanho, fazendo com que o próprio poeta se veja. Com isso, entende-se que o poeta se sente como um pastor com o poder nas mãos quando escreve os poemas, assim como o pastor quando está com o cajado tem o poder de comandar seu rebanho.

Estas metáforas fazem alusão ao poeta e sua obra composta por poemas em que expressam seus sentimentos, idéias e emoções, quando Caeiro diz que olhando para o seu rebanho e vendo as suas idéias ou olhando para suas idéias e vendo seu rebanho, o poeta refere-se a sua produção, em que quando ele olha e vê o que já fez nem ele mesmo o compreende.

No caso esta metáfora do rebanho e do cajado remete uma estranheza, mas se buscar compreender o caráter do poeta consegue reduzir o desvio, decifra-se o enigma e passa a sentir prazer, chegando à compreensão. Há um embelezamento, esse poema é a presença e ausência da metáfora é um constante sim e não, pois pode ser essa interpretação ou não.

Conforme Paes (1997, p.17):

[...] coloca Aristóteles os “enigmas bem feitos”, os quais lhe parecem “agradáveis” por ensinarem “alguma coisa” através de “expressões novas” onde o pensamento é paradoxal”. Nele coloca também os “jogos de palavras” pelo seu “efeito de surpresa” mercê do qual “a expectativa do ouvinte é lograda”. A sensibilidade dos nossos dias está bem mais perto do paradoxal e do enigmático que do ático senso de moderação e de clareza postulado na Arte poética.

 

Portanto, esta é a função da metáfora, apresentar dentro da literatura como enigmas bem feitos, que são aquelas metáforas que não são indecifráveis, mas também não deixam de causar certa estranheza, ausência e presença por serem metáforas novas que não caíram no uso corrente, virando sinônimos de outras palavras. A metáfora é um jogo de palavras em que a cada decifração do enigma há um aprendizado e, consequentemente, a sensação de prazer e admiração.

Já no poema VI visa comparar o “humano com o natural”, enfatizando o uso de palavras como “verdor” e “rio” em substituição de possivelmente, juventude e o lugar para onde iremos após a morte ou esperança, neste caso há uma transposição de uma espécie para outra.

Pensar em Deus é desobedecer a Deus,

Porque Deus quis que o não conhecêssemos,

Por isso se nos não mostrou...

Sejamos simples e calmos,

Como os regatos e as árvores,

E Deus amar-nos-á fazendo de nós

Belos como as árvores e os regatos,

E dar-nos-á verdor na sua primavera,

E um rio aonde ir ter quando acabemos!...  

(O Guardador de Rebanhos, 2006, p. VI)

 

            Alberto Caeiro é um poeta que preza as sensações, acreditando apenas no que sente e no que ver e dessa forma desprezando o pensamento, ele busca dissociá-lo das sensações. Por isso, quando Caeiro coloca “Pensar em Deus é desobedecer a Deus/ Porque Deus quis que o não conhecêssemos/ Por isso se nos não mostrou”, deixa bem claro a sua intenção, o poeta acredita apenas no que ver, e que, se não vemos Deus então para que pensar nele? Já que o pensamento modifica a realidade. Deus não se mostrou para os homens, então pensar nele é desobedecê-lo, pois as coisas são o que são e não o que pensamos sobre elas.

 Dessa forma, Caeiro tenta enxergar a natureza com pureza, sem a intervenção de nenhum conhecimento científico que possa modificá-la.

Portanto, a metáfora encontra-se presente, mesmo de maneira bem sutil, em toda a obra, trazendo de certa forma o embelezamento dos poemas.

 

 

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A pesquisa feita apresenta um estudo sobre a metáfora presente na obra O Guardador de Rebanhos. Este trabalho tem como objetivo principal atingir aos alunos da disciplina de Teoria da Literatura II, pois o artigo apresenta discussões feitas, em sala, pelo professor.

As discussões sobre a metáfora foram feitas logo no início deste trabalho, a fim de que o leitor se familiarize com o assunto, dessa forma compreendendo a noção de metáfora. Logo em seguida, foi apresentado brevemente a obra e seus autores, Fernando Pessoa/ Alberto Caeiro (heterônimo) com a pretensão de o leitor entender que tipo de obra está sendo trabalhada, quem é o autor e quais suas peculiaridades. E, por fim, relacionou a discussão acerca da metáfora ao Guardador de Rebanhos que é o objetivo primordial deste trabalho, intencionando a constatação da metáfora presente na obra.

Portanto, o desenvolvimento deste trabalho contribuiu de certa forma, para um melhor entendimento sobre o texto “A pedagogia da metáfora” de José Paulo Paes e o pensamento de Aristóteles em relação a esta figura de estilo, que é considerada ‘mãe’ de todas as figuras de linguagem. Sem maiores pretensões, espera-se que este artigo sirva de estudo para outros estudantes de Letras.

 

 

REFERÊNCIAS

ARISTÓTELES, HORÁCIO, LONGINO. A Poética Clássica. (Tradução direta do grego e do latim por Jaime Bruna). 7ª ed. São Paulo: Cultrix, 1994.

MOISÉS, Massaud. Dicionário de Termos Literários. 12ª ed. São Paulo: Cultrix, 2004.

_______________. O Guardador de Rebanhos e Outros poemas. São Paulo: Cultrix, 1988.

PAES, José Paulo. Os perigos da poesia e Outros ensaios. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997.

PESSOA, Fernando. Poemas completos de Alberto Caeiro. São Paulo: Martin Claret, 2006.


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