COISAS QUE MARCAM A NOSSA VIDA



LADY MARINA  - A LEIDINHA

 Uma tarde enquanto eu caminhava pelo parque do Flamengo no Rio de Janeiro, avistei dentro de uma garagem de barcos na marina da Gloria, uma gatinha branca muito frágil, que entre outros animais maiores também disputava uma porção de comida no chão. Só que na disputa pela comida, os outros gatos, fortes e sabidos a empurravam e lhe batiam, e um bichano muito grande atirou-se sobre ela. Travou-se uma briga terrível e a pobrezinha apanhava muito. Assustada ela correu e se escondeu embaixo de um barco velho.

Muito penalizada eu voltei à minha casa, coloquei um pouco de ração num vidro, peguei um travesseiro surrado, coloquei tudo num carrinho de feira e voltei ao parque, mas não encontrei mais a gatinha. Intencionalmente coloquei um pouco de ração no chão, na esperança de que ela aparecesse, e toda a gataria se aproximou para comer. De repente, muito timidamente apareceu também a gatinha branca, que mais uma vez não teve nenhuma chance. Então eu coloquei um pouco de ração na minha mão, estirei o braço e comecei a chama-la carinhosamente mostrando-lhe a comidinha. Era muito tímida e ao mesmo tempo agressiva, como se automaticamente vivesse tentando se defender, mas se aproximou, estirou o pescocinho e começou a devorar os grãozinhos que estavam na minha mão. Era muito magrinha, quase só tinha pelo e ossos, estava faminta e muito machucada. Tinha uma linda pelagem, com apenas uma manchinha cinza nas costas. Percebi que ela tinha um olhinho verde e outro azul, e como era graciosa!

Enquanto comia eu a segurei com firmeza, puxei-a para o lado de fora da cerca de arame e a coloquei dentro do carrinho sobre o travesseiro macio, aonde já havia um punhado de ração espalhado, para ela comer. Não pesava quase nada, era leve como uma pena. Fechei fortemente a tampa do carrinho e rapidamente fomos embora para a nossa casa.

A princípio, mesmo assustada ela continuou a se alimentar. Depois, sentindo-se segura dentro do carrinho, deitou-se sobre a almofada, virou a cabecinha para um lado e começou a cochilar. Estava muito cansada e ofegante, mas mesmo assim, de vez em quando se erguia e olhava para um lado e para o outro como se estivesse vendo aqueles lugares pela primeira vez. Certamente fora levada por alguém e abandonada dentro daquele cercado cheio de gatos estranhos, que também tiveram o mesmo destino, mas que a maltratavam muito. Resolvi em meu coração que de agora em diante eu lhe daria um novo destino, e ela teria proteção, abrigo seguro, alimentação, carinho, família, e mais: um nome!

Anoitecia quando chegamos no novo lar de Lady Marina da Gloria, Leidinha, como seria chamada, aonde ela foi bem recebida e aceita, apesar do olhar meio desconfiado de Seu Xandico, o nosso gato siamês, que apesar da covardia que lhe fizeram, mesmo capado mostrou que era um macho de boa cepa, e não parava de rodear e dar cheirinhos na  linda namorada, de quem sempre teve muitas crises de ciúmes, embora nunca tenha podido assumir pra valer as suas obrigações de marido.

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Não era uma vira-latas, mas um felino SDR, ou seja, sem definição de raça, era uma mistura, falou o veterinário, e a causa do seu raquitismo era a fome, o maltrato e o estresse em que ela vivia. Não era tão novinha como eu pensava;    já era adulta, mas era pequena e curtinha. Tinha varias feridas pelo corpo, causadas pelas unhas e mordidas dos gatos que a atacavam, tinha bactérias nas patinhas e orelhas, e entre outras mazelas um fungo no nariz. E aquele seu olhinho tinha a cor azul porque era vazado e cego.

- Pobrezinha, falei morrendo de pena. Ela ainda tem jeito, doutor? Perguntei.

- Sim, claro, ela só precisa de cuidados, boa alimentação e tratamento. E muito amor! Ela nunca teve nada disso...

E a Leidinha ficou internada por três dias, se alimentando bem, tomando soro e remédio. Quando fui busca-la fiquei surpresa: apesar da magreza estava linda! Tinha tomado banho, seu pelo estava tão branquinho e escovado que dava gosto se ver, e  estava toda perfumada e esperta. Parecia mais uma coelhinha.

Em mais ou menos cinco meses engordou tanto que a barriguinha quase encostava no chão, porque as patinhas eram curtas. Tinha um andarzinho requebrado e faceiro e gostava de pular e correr, por isso mesmo fez valer o carinhoso apelido de coelha, e com  todo aquele sex-appeal, logo tivemos que providenciar a sua castração para evitar maiores problemas, pois estava ficando muito assanhada.

Quis o destino que um outro gatinho viesse para a nossa casa, o Bill. Esse era bem nascido, tinha dois meses e logo cresceu muito, para desespero daquele que já se julgava marido da linda gatona branca. Só que pra nenhum dos dois ela dava a mínima, não queria era nada, pois já estava de coração fechado para o amor desde aquela operação que lhe fizeram na clínica. E lá eu tive que levar o outro gato macho pra castrar também, só assim a gente teria sossego em casa, ainda mais por causa dos ciúmes do siamês, que era bom de briga, e  nas suas crises passava o dia rosnando, ameaçando sair no tapa. 

Brancas nuvens por muito tempo, família tranqüila, mas lá vem o destino outra vez com uma das suas. E chegou o Pelucinho, um bichano persa lindão de cor bege, um verdadeiro gatão, pra mais uma vez atiçar os ciúmes do siamês. Troca de olhares e cheirinhos furtivos aconteceram de montão com a chegada do gatão, mas pra sorte do maridão, o belo concorrente, coitado, não era de nada. Também era eunuco!

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Infelizmente ninguém escapa da crueldade do destino, pois tudo que começa tem fim. Nós tínhamos uma família de quatro lindos felinos que conviviam  em santa paz, mas começamos a perceber que a coelhinha, a essa altura já com treze anos, apesar de seu grande apetite, estava  emagrecendo. Vivia deitada embaixo de uma mesinha na cozinha e de vez em quando botava a língua pra fora, tossia e ficava muito cansada, ofegante mesmo. Já não brincava nem corria junto com os seus três amigos.

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Na clínica, o mesmo veterinário que cuidou dela antes, foi taxativo. Mostrando-me a radiografia, falou:

- Não tenho boas notícias não. Infelizmente é câncer no pulmão, e em estado bem avançado, mas com  medicamentos e quimioterapia...

Realmente a notícia foi muito chocante, foi como se nós duas, eu e minha filha,  tivéssemos levado uma pancada na cabeça; não podíamos acreditar. Mas me refazendo do impacto, falei com convicção:

 - Não, não, doutor. Seria apenas para prolongar a vida da bichinha por alguns meses, não é mesmo?

- Sim, mas muitas vezes o paciente apresenta uma boa resposta ao tratamento. Faz-se o possível, e no mínimo conseguimos que vivam mais um pouco, e com menos sofrimento.

 - Não. A Leidinha já tem muita idade, é muito frágil e não vai suportar. Isso só iria prolongar inutilmente o seu sofrimento, e ela já sofreu muito antes, o senhor sabe. Nós a amamos e queremos evitar que ela sofra mais, por isso decidimos que tudo termine agora, enquanto ela ainda não está sentindo muitas dores e ainda consegue respirar e se alimentar.

Ela permanecia deitadinha sobre a mesa fria de alumínio, na sala de atendimento médico. Com a cabecinha apoiada na minha mão, bem quietinha, parecia estar entendendo  resignada aquela nossa conversa, em que a sua família acabava de decidir e autorizar o médico a por fim ao seu sofrimento e à sua vida. Olhava para a sala com um olharzinho perdido como se estivesse longe, bem distante dali. Quem sabe ela estaria vendo passar diante dos seus olhinhos uma retrospectiva da sua vida, que já  estava se aproximando do fim. De repente fechou os olhos, como se tivesse adormecido.

 - Se a senhora está mesmo decidida...

E percebendo a nossa tristeza, disse: ela não sofrerá coisa alguma, não sentirá dores nem entrará em agonia. Morrerá dormindo. Mandarei fazer uma medicação letal que será colocada no soro, numa dosagem superior ao que ela pode suportar. Será tudo rápido. Ela adormecerá profundamente e não acordará mais.

Um funcionário a levou para o andar de cima e não a vimos mais. Sem despedidas. Foi melhor assim.

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Já era noite quando nós saímos silenciosamente da clínica, tristes, com os corações pesados e até mesmo com um certo sentimento de culpa. Sabíamos que estávamos sendo responsáveis pela morte daquele animalzinho querido, que nos deu tantas alegrias convivendo conosco por tantos anos, desde aquela tarde longínqua em que eu a encontrei abandonada naquela garagem de barcos.

Entramos no carro sem trocar nenhuma palavra. Quando chegamos em casa parecia que tínhamos deixado um pedaço de cada uma de nós naquele hospital. Ficou tudo tão triste sem ela, um vazio tão grande embaixo da mesinha na cozinha, onde ela viveu seus últimos dias deitada sobre aquela toalha listrada...

Mas como no circo, o espetáculo da vida também continua. E ficaram os outros três para alegrarem a nossa casa: Seu Xandico - o siamês, já com dezoito anos, o Bill e o Pelucinho, que também teriam as suas histórias de vida pra contarmos depois, e a cada partida uma saudade.

 Autora: Junia - 2012

 

 


Autor: Junia Pires Falcao


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