A Sombra da Noite



A noite caía pesada sobre as ruas estreitas da pequena cidade interiorana. Apesar de não haver nuvens, a presença de estrelas era muito escassa; parecia que uma sombra densa abaixava lentamente à medida que os minutos transcorriam. E essa sombra também se refletia no ânimo das pessoas, pois o movimento dos transeuntes se tornava cada vez menor.
Por uma dessas vias, caminhando calmamente pela estreita calçada, um rapaz perdia-se em seus pensamentos tumultuados; afinal, não tivera um dia de que gostaria de se lembrar. Resolvera voltar a pé para casa apesar da distância relativamente considerável, e a certa altura admitia já que havia feito uma boa escolha, pois as passadas eliminavam gradativamente as piores memórias de sua mente. No entanto, uma só lembrança ele não conseguia esquecer: a ameaça, sutil e velada, que um amigo lhe fizera ao pé do ouvido no final de uma discussão em um bar.
Isso o intrigara muito a princípio, porém não mais do que sua inesperada e surpreendente resposta: "Pois não demore, senão eu o mato primeiro!". Essas palavras ecoavam ainda em sua mente, assim como o barulho que as acompanhara: uma batida forte e seca feita com seu punho direito fechado numa mesa próxima. A repetição desse ruído passou então a se seguir a cada passo que dava, e de tal modo se tornava nítido que parecia às vezes ficar um pouco para trás de seus pés.
"Espere um pouco", pensou, sem no entanto interromper a caminhada; por um rápido instante achou que estaria sendo seguido, mas não ousou olhar para trás; e tomado por um efêmero sentimento de coragem continuou seguindo em frente com firmeza. Porém, ao ter novamente a sensação de que ruídos de passos estivessem lhe seguindo, por muito pouco resistiu à vontade de se virar e ver realmente quem ou o que perturbava sua caminhada solitária. Apurou os ouvidos ao máximo tentando diferenciar o barulho de seus próprios passos daqueles que supunha estar lhe acompanhando, o que por um momento foi-lhe um tanto difícil, uma vez que ambos pareciam se sobrepor em muitos momentos. "Devo estar delirando", pensou, sentindo o suor pingar de suas mãos já trêmulas.
Olhando para a frente, e depois para os lados só com os olhos, sem mover a cabeça, certificou-se de que estava completamente só naquela rua. Procurou recordar se havia atravessado algum cruzamento, onde qualquer pessoa poderia tê-lo visto e seguido desde então; mas tinha a certeza de que a rua por onde andava era por demais extensa, sem esquinas, e isso não teria sido possível. "Mas que coisa!" De repente percebeu que o trecho mais à frente era mal iluminado e, coincidentemente ou não, teve a ligeira impressão de que os passos atrás estavam se acelerando em sua direção; sentiu o mesmo suor aquecer-lhe agora o peito, que se arqueava numa respiração cada vez mais ofegante e evidenciava as batidas mais fortes e rápidas de seu coração desesperado. Por algum motivo desconhecido seu punho direito começou a doer com intensidade. Acelerou as passadas. "Meu Deus, mas assim demonstro meu pânico!". Daria tudo por uma esquina onde pudesse virar e sair correndo mas, nada! Notou que havia chegado à escuridão que tornava aquela parte do percurso ainda mais sinistra. Sentiu a coisa que o seguia aproximar-se rapidamente. Sem saber por quê, a frase que dissera a seu amigo voltou-lhe à mente: "Pois não demore, senão eu o mato primeiro!" E então, pela primeira vez naquela noite, ocorreu-lhe quem realmente poderia ser aquela pessoa que estaria seguindo-o.
Quase correu, e aproveitando que - finalmente! - se encontrava abaixo da luz débil de um velho poste, reuniu toda a coragem que um descaso a qualquer coisa ruim que pudesse vir a acontecer - inclusive a morte - e virou-se abruptamente, perdendo o fôlego.
Seus olhos se esbugalharam, não acreditando no que viam.
Não havia ninguém. Mas na calçada, uma sombra - a sua - projetada pela luz do poste parecia ter vida própria e fazia movimentos que a princípio ele não conseguia entender. Estático, aterrorizado, viu o braço da sombra se arquear lentamente até apontar para si mesma, como que incitando-o a olhar para seu próprio corpo. Como num pesadelo, abaixou lentamente os olhos e percebeu que suas mãos e sua camisa estavam cobertas de sangue; então, em poucos segundos, uma rápida sucessão de imagens veio à tona depois de represadas por um forte trauma: a discussão no bar, uma ameaça, a resposta, a visão turva, a falta de controle, sua mão direita segurando uma faca e desferindo golpes e mais golpes violentamente fazendo jorrar uma grande quantidade de sangue e, por fim, a faca sendo fortemente cravada com um estrondo numa mesa.
Ele havia matado o seu amigo.


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