"A BUSCA E APREENSÃO DOMICILIAR REALIZADA POR MEIO COOPERAÇÃO JURÍDICA INTERNACIONAL EM MATÉRIA PENAL"



“A busca e apreensão DOMICILIAR realizada por meio de cooperação jurídica internacional em matÉria penal” 

                        A globalização, a livre circulação de capital e informação, os avanços tecnológicos, as transposições de fronteiras e o repensar do conceito de soberania, todas estas características da nossa sociedade moderna, têm causado uma série de reflexões e angústias aos operadores do direito. Estamos imersos em um ambiente de intensas transformações, caracterizado pela interligação da informação, da economia e da cultura, que compõem o que Manuel Castells[1] denomina de sociedade em rede.

                        Nesse contexto de interação globalizada, nos assalta uma sensação constante de insegurança decorrente, principalmente, do volume de informação a que temos acesso diariamente. Surge, neste passo, uma demanda social normativa com o fito de garantir a segurança desta sociedade moderna e, justamente aqui, as dificuldades de utilizar os instrumentos tradicionais de persecução penal para desarticular a criminalidade moderna e transnacional que se desenvolve com a globalização.

                        Em um mundo com cada vez menos fronteiras, a cooperação jurídica internacional em material penal surge como importante instrumento a ser utilizado pelos Estados no combate à criminalidade moderna. Raúl Cervine e Juarez Tavares[2] definem o instituto da cooperação como “o conjunto de atividades processuais (cuja proteção não se esgota nas simples formas), regulares (normais), concretas e de diverso nível, cumpridas por órgãos jurisdicionais (competentes) em matéria penal, pertencentes a distintos Estados soberanos, que convergem (funcional e necessariamente) em nível internacional, na realização de um mesmo fim, que não é senão o desenvolvimento (preparação e consecução) de um processo (principal) da mesma natureza (penal), dentro de um estrito marco de garantias, conforme o diverso grau de projeção intrínseca do auxílio requerido.

                        No entanto, a própria expressão cooperação jurídica, considerando a sua inegável amplitude, engloba não só a cooperação jurisdicional (envolvendo órgãos judiciais), mas também a cooperação administrativa (envolvendo órgãos administrativos de investigação), entre Estados distintos, que produzem efeitos jurídicos. A cooperação jurídica internacional constitui expressão do valor solidariedade (um dos objetivos fundamentais do Estado brasileiro, previsto no artigo 3º, I, da CF/88) e reflete o princípio da cooperação entre povos para o progresso da humanidade, que pauta nosso Estado nas relações internacionais (artigo 4º, IX, da CF/88), lembrando, ainda, que a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 prevê em seu preâmbulo a cooperação dos Estados para se atingir os fins estabelecidos.

                        Dois são os procedimentos de cooperação jurídica internacional mais comuns para fins de produção ou obtenção de prova, logo os que interessam para a busca e a apreensão domiciliar: a carta rogatória e o auxílio direto.

                        A carta rogatória é o instrumento pelo qual se solicita a prática de diligência à autoridade estrangeira[3], visando não somente garantir a rapidez e eficiência da persecução penal, mas também assegurar os direitos fundamentais tutelados na Constituição Federal e nos tratados internacionais de direitos humanos[4]. De acordo com o seu objeto, a carta rogatória pode ser ordinatória (tem por finalidade a produção de atos processuais, como a citação, a notificação ou a intimação), instrutória (tem por finalidade os atos de coleta de provas) ou executória (visa à prática de atos processuais constritivos)[5].

                        O texto constitucional, após a Emenda Constitucional nº 45, outorga ao Superior Tribunal de Justiça a competência para processar e julgar, originariamente, a concessão de exequatur às cartas rogatórias, nos termos de seu o artigo 105, inciso I, alínea i. Cabe ao Estado rogado, neste passo, realizar apenas o juízo de delibação, sem adentrar no mérito da diligência rogada, restringindo, assim, o direito de o interessado impugnar o pedido na jurisdição rogada. Assinala Antenor Madruga[6] que “o juízo de exequatur, no modelo de delibação, reduz o contraditório e amplia a cooperação jurídica internacional”, com base no princípio da confiança na jurisdição rogante. O juízo de delibação, portanto, não analisa o mérito do pedido, cingindo-se a verificação dos requisitos formais e eventual violação à ordem pública ou à soberania[7]. A carta rogatória é, portanto, o cumprimento de ordem judicial estrangeira, previamente autorizada (delibada) pelo Estado rogado.

                        Já o auxílio direito é a solicitação feita por Estado estrangeiro, despido da condição de juiz, para que a autoridade (judicial ou administrativa) do outro Estado tome as providências e medidas requeridas no âmbito nacional[8]. Assim, é a própria autoridade do Estado requerido que toma a decisão, por provocação da autoridade estrangeira, analisando não apenas as formalidades, mas o próprio mérito da solicitação[9]. Portanto, a pretensão estrangeira (judicial ou administrativa), aduzida por meio do auxílio direto, está sujeita a juízo de revisão de mérito, com contraditório amplo (quando possível), diferindo, assim, do simples juízo de delibação (exequatur da carta rogatória). No Brasil, a competência  judicial para apreciação de pedido de auxílio direto estrangeiro é dos juízes federais, nos termos do artigo 109 da CF/88.

                        Embora não possua expressa previsão constitucional, a vigência do pedido de auxilio direto se justifica a partir de tratados internacionais e acordos bilaterais que o preveem expressamente. Ressalta Fábio Romazzini Bechara[10] que “a gênese do instrumento do auxílio direto está evidentemente associada à ineficiência das cartas rogatórias, notadamente pelo fato de que as medidas de caráter executivo solicitadas sempre foram consideradas atentatórias à soberania nacional. A partir do instante que a autoridade nacional passa a agir por provocação da autoridade estrangeira tendo plena autonomia e controle sobre o mérito e formalidades do pedido, escusa-se do recurso à soberania como argumento de autoridade para impedir a cooperação.

Ao comparar os juízos de delibação e de revisão, Antenor Madruga[11] anota que “o conceito de delibação, ao restringir o espaço de contraditório no julgamento do exequatur de cartas rogatórias, é construído principalmente no interesse da administração da justiça estrangeira, em favor da cooperação jurídica internacional e em detrimento do interesse do indivíduo alcançado pela medida, cuja defesa é restrita por esse modelo. O conceito do juízo de revisão, por outro lado, é o que mais atende aos interesses individuais contrários à pretensão do Estado rogante, pois amplia espaço de contraditório. Ao juízo de revisão é dado se voltar aos fatos e ao mérito da pretensão estrangeira, à luz de todo ordenamento jurídico do foro e não apenas sob a parte deste ordenamento que expressa a soberania e a ordem pública.

                        Por sua vez, a diligência de busca e apreensão, como meio de obtenção de prova, é, conforme assinalado por João Mendes de Almeida Junior[12], medida policial e de instrução. Assim, pode ser realizada tanto na fase investigativa que procede a propositura da ação penal quanto no transcorrer da instrução criminal, com a ação penal já inaugurada. A diligência de busca e apreensão, quando realizada no âmbito domiciliar, depende de prévia autorização judicial em razão do consagrado direito fundamental de inviolabilidade do domicílio (artigo 5º, inciso XI, da CF/88), inviolabilidade esta que remonta, inclusive, ao direito romano. Conforme os ditames constitucionais, a busca e apreensão domiciliar somente poderão ser realizadas durante o dia e por determinação judicial (mandado de busca e apreensão).

                        Considerando o que já foi até aqui exposto, é certo que existe a possibilidade da realização de diligência de busca e apreensão domiciliar por meio de cooperação jurídica internacional em matéria penal, seja ela feita por carta rogatória ou por auxílio direto. Todavia, por envolver restrição ao direito fundamental de inviolabilidade do domicílio (amplamente reconhecido e constitucionalmente tutelado), é sempre necessária, no Brasil, a prévia autorização judicial, tanto para que a prova eventualmente obtida no exterior seja considerada lícita dentro do nosso ordenamento jurídico quanto para que a diligência solicitada por Estado estrangeiro seja realizada em território nacional.

                        Descortina-se, nesse passo, a possibilidade dos órgãos de persecução penal nacionais pleitearem diretamente ao Estado estrangeiro, por meio de auxílio direto, a busca e apreensão a ser realizada no exterior. Portanto, é possível que a Autoridade Policial ou o Parquetier solicitem ao Estado estrangeiro, por meio de auxílio direto, a realização de diligência de busca e apreensão, cabendo à Autoridade Judicial estrangeira requerida realizar o juízo de revisão do pedido aduzido. Importante ressaltar, entretanto, que esta prova obtida no exterior deverá sujeitar-se aos requisitos (constitucionais e legais) estabelecidos em nosso ordenamento jurídico, de modo que o pedido de auxílio direto deverá preencher os mesmos pressupostos exigidos para que a medida seja deferida aqui no Brasil, sob pena de ilicitude da prova. Em outras palavras, a prova obtida no exterior, ainda que com a autorização judicial estrangeira, será judicialmente apreciada (material e formalmente) mais uma vez quando de sua internação no Brasil, antes de ser considerada lícita e produzir os efeitos jurídicos esperados (como elemento probatório).

                        Desta forma, ainda que seja possível aos órgãos de persecução penal do Estado, Polícia ou Ministério Público, requerer ao Estado estrangeiro a realização de busca e apreensão domiciliar por meio de auxílio direto, entendemos ser mais prudente que o pedido seja aduzido ao Poder Judiciário nacional, evitando, assim, que eventual prova obtida no exterior, apenas com autorização judicial do Estado requerido, seja posteriormente considerada inválida pelo Poder Judiciário que irá apreciar a causa (nacional).    

                         Aliás, até por envolver direito fundamental amplamente reconhecido em âmbito mundial (inviolabilidade do domicílio), mais prudente seria que o pedido de diligência de busca e apreensão a ser realizada no exterior sempre passasse por um duplo filtro judicial, evitando, com isso, posterior anulação da prova. Sob este prisma, entendemos ser mais seguro para a higidez da persecução que a diligência de busca e apreensão seja judicialmente autorizada pelo Estado requerente e, posteriormente, ratificada (formal e materialmente) pelo Estado estrangeiro requisitado, por meio de pedido de auxílio direto, assegurando, desta maneira, a lisura da prova obtida, bem como que o Estado estrangeiro não se utilize do recurso à soberania como argumento de autoridade para inviabilizar a cooperação jurídica requerida.

                        É certo que o procedimento ora aventado  - duplo filtro judicial em casos de busca e apreensão domiciliar no âmbito penal das cooperações jurídicas internacionais - é mais trabalhoso. Entretanto, evitará o posterior reconhecimento de nulidade da prova, a anulação de processos inteiros, a realização de diligências inúteis e a escusa do Estado estrangeiro lastreada em um suposto atentado à soberania nacional. Mas, principalmente, este é o procedimento que melhor resguarda os direitos e garantias fundamentais, no caso específico a inviolabilidade do domicílio e a tutela da intimidade e vida privada do cidadão, merecendo, também por esta razão, ser adotado.

 

 

BIBLIOGRAFIA

BECHARA, Fábio Romazzini. Cooperação jurídica internacional em matéria penal: eficácia da prova produzida no exterior. São Paulo: Saraiva, 2011.

BRAZ, Mário Sérgio A. “Imunidade de jurisdição e negativa de exequatur a cartas rogatórias passivas” Revista Forense, v. 100, n. 376, p. 431, nov./dez. 2004.

CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede – tradução: Roneide Venâncio Majers; atualização para a 6ª edição: Jussara Simões – (A era da informação: economia, sociedade e cultura; v. 1). São Paulo: Paz e Terra, 1999.

CERVINI, Raúl; TAVAREZ, Juarez. Princípios da cooperação judicial penal internacional no protocolo do Mercosul. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.

DIPP. Gilson Langaro. “Carta Rogatória e cooperação internacional. In: BRASIL. Manual de cooperação jurídica internacional e recuperação de ativos. Cooperação em matéria penal. Brasília: Secretaria Nacional de Justiça, 2008.

MENDES DE ALMEIDA JUNIOR, João. O processo criminal brasileiro – volume II. 2ª edição augmentada.  Rio de Janeiro: Francisco Alves & Cia., 1911.

NOGUEIRA JUNIOR, Alberto. “Qual o futuro para as cartas rogatórias em ações penais contra crimes de lavagem de dinheiro? Ligeiras observações sobre as decisões judiciais proferidas no caso propinoduto.” Revista de Processo, São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 30, n. 126, p. 251, ago. 2005.

 


[1] CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede – tradução: Roneide Venâncio Majers; atualização para a 6ª edição: Jussara Simões – (A era da informação: economia, sociedade e cultura; v. 1). São Paulo: Paz e Terra, 1999.

[2] CERVINI, Raúl; TAVAREZ, Juarez. Princípios da cooperação judicial penal internacional no protocolo do Mercosul. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. P. 51

[3] BECHARA, Fábio Romazzini. Cooperação jurídica internacional em matéria penal: eficácia da prova produzida no exterior. São Paulo: Saraiva, 2011. P. 51.

[4] NOGUEIRA JUNIOR, Alberto. “Qual o futuro para as cartas rogatórias em ações penais contra crimes de lavagem de dinheiro? Ligeiras observações sobre as decisões judiciais proferidas no caso propinoduto.” Revista de Processo, São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 30, n. 126, p. 251, ago. 2005.

[5] BRAZ, Mário Sérgio A. “Imunidade de jurisdição e negativa de exequatur a cartas rogatórias passivas” Revista Forense, v. 100, n. 376, p. 431, nov./dez. 2004.

[6] http://www.conjur.com.br/2011-jul-13/auxilio-direto-carta-rogatoria-diferenca-nao-rotulo

[7] Nesse sentido: “Questões de mérito não comportam apreciação em sede de carta rogatória, ficando o exame a cargo da Justiça rogante.” (STJ, AgRg na CR 733/IT, Trecho da ementa. Rel. Ministro CESAR ASFOR ROCHA, CORTE ESPECIAL, julgado em 19/12/2005, DJ 10/04/2006 p. 106).

[8] DIPP. Gilson Langaro. “Carta Rogatória e cooperação internacional. In: BRASIL. Manual de cooperação jurídica internacional e recuperação de ativos. Cooperação em matéria penal. Brasília: Secretaria Nacional de Justiça, 2008. P. 32.

[9] BECHARA, Fábio Romazzini. Cooperação jurídica internacional em matéria penal: eficácia da prova produzida no exterior. São Paulo: Saraiva, 2011. P. 54/55.

[10] Ob. Cit. P. 55.

[11] http://www.conjur.com.br/2011-jul-13/auxilio-direto-carta-rogatoria-diferenca-nao-rotulo

[12] MENDES DE ALMEIDA JUNIOR, João. O processo criminal brasileiro – volume II. 2ª edição augmentada.  Rio de Janeiro: Francisco Alves & Cia., 1911. P. 49.

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