Racismo: Um Crime Sem Rosto



Racismo:
Um crime sem rosto

Um dos apanágios das Ciências Sociais é que esta oferece condições e possibilidades irrestritas a quem quiser se aventurar nos diversos debates com liberdade de emitir opiniões e formulações das mais inusitadas. Não obstante, questiona-se o valor de algumas posições, pois, sem o uso de critérios seletivos,correríamos o risco de cair no relativismo "inconseqüente", anacrônico e abusivo. Vamos acabar com a idéia de que todo pensamento é válido, pois, especificamente neste caso, estaríamos relativizando a história cruenta, excludente e perversa que sofreu a 'raça' negra. A absolutização do relativismo não resolve o problema e sim coíbe ou retarda o verdadeiro enfrentamento da questão.

Lendo texto de Sueli Carneiro, publicado na revista Caros Amigos em julho deste ano, muito me impressionaram os números ali apresentados: o Brasil ocupava, numa pesquisa realizada em 1.999, que mapeava através de dados estatísticos o IDH (índice de desenvolvimento humano), a 79°posição correspondente à média geral em relação ao restante dos países do mundo, mas quando a análise se restringiu a um determinado recorte específico, ou melhor, quando a amostra era a cor da pele, o Brasil passou a ocupar a seguinte posição respectivamente: negros 108° / brancos 49°.

Haja vista a relevância destes dados, não insistiremos muito com eles, porquanto se fazem desnecessários, pois, fácil é observar sua força e veracidade nas páginas policiais ou quando a televisão exibe a cara da pobreza e as condições subumanas das comunidades negras. A África é um referencial extremamente contundente e que, no contexto da globalização, se mostra como um continente desvalido (SEM VALOR). Tanto é assim, recorrendo uma vez mais aos números, que a ONU (Organizações das Nações Unidas), reguladora e responsável por cooptar o discurso de preservação da dignidade e da ética humana, aponta a Europa com o melhor desempenho no uso-fruto dos chamados Direitos Universais do homem (mais de 90%), enquanto o continente africano, composto por 57 países, amarga uma marca inferior a 64% na escala hierárquica de aplicação destes mesmos famosos direitos "universais".

É a partir desta reflexão histórica e da atual realidade do povo negro que surge a necessidade de reivindicar e agregar forças buscando incrementar políticas afirmativas. Estas são, para que fique bem claro, diretrizes que buscam garantir os direitos de grupos ou segmentos sociais que têm suas potencialidades cerceadas e prevaricadas por "determinadas forças ocultas". Neste caso, a prevaricação é histórica e se materializa como representação social em função dos interesses estarem subordinados à ideologia elitista que manipula formas simbólicas para criar ou reproduzir relações de dominação.

A negação do legado cultural africano por parte dos negros é resultado da economia escravocrata e das políticas de enquadramento da época da colonização, além das teses evolucionistas, impunemente transpostas do mundo orgânico para o universo da cultura. A igreja, se valendo de um discurso monoteísta e etnocêntrico, impôs tanto aos aborígines quanto aos negros a rejeição aos seus deuses, costumes e valores. Enxergando, no processo histórico, o principio das desigualdades e preconceitos raciais, teremos a possibilidade de compreender a crise de identidade do negro em nossa sociedade. Espero que não se levantem eufóricos das suas poltronas, afirmando que o problema é estritamente cultural e típico da conjuntura vigente. Isto seria assumir uma postura politicamente inativa, e, não esqueçamos, ser indiferente é ser co-responsável. As diversas manifestações culturais afros são vistas e tratadas de modo pejorativo. A culinária é vinculada, essencialmente, às oferendas dos orixás; a "deuses de influência maligna". Hoje o samba é consensualmente uma arte, mas está projetado no imaginário coletivo ligado mais à pureza de João Gilberto e Vinícius do que aos negros do morro. Estes são evidenciados como pagodeiros, "pretos que gostam de batucadas". Se o negro não se reconhece como afro-descendente, a despeito dos açoites seculares de que foi vítima, é porque foi e esta sendo submetido a um processo de expropriação cultural. A Bahiatursa é um excelente exemplo da apropriação indébita das faculdades culturais e artísticas da etnia negra. O discurso demagógico da baianidade se tornou um negócio extremamente rentável. Nesse contexto, a identidade negra é, mais do que nunca, subsumida ao interesse do capital. Enfim, considerando estes aspectos, o que seria natural identificar-se com seus irmãos de cor, passa a ser uma relação de repúdio e ojeriza, pois o outro idêntico é o reflexo e confirmação de sua condição de pobreza e "inferioridade". O negro perde todos os seus referenciais e só se reconhece, enquanto condição digna e humana, no seu oposto: o branco.

Mas, apesar do estardalhaço, esta não é a primeira vez que se aplica política afirmativa neste país. A obrigatoriedade percentual de mulheres nos partidos políticos é um excelente exemplo. Mas a história ainda nos oferece outras boas instâncias deste mecanismo legal, apesar de às vezes abusivo e contraditório no seu teor moral, resguardando privilégios, como foi o caso da Lei do Boi, através da qual se reservou 30% das vagas para os filhos de fazendeiros ingressarem no curso de Agronomia e Medicina Veterinária. Aqui cai por terra a reivindicação desesperada de que o acesso à universidade deve ser um investimento meritocrático. Quando se apela ao mérito, ouvimos que o "interesse" é preservar a qualidade de ensino, o "alto nível acadêmico". Porém o professor, salvo algumas exceções, finge que ensina e o aluno finge que aprende. Então não há consistência neste argumento, pois se o negro evadir da escola (reivindicamos alojamentos, bolsa-auxílio, alimentação e acompanhamento pedagógico), contribuirá mais do que aqueles que lá permanecem imersos neste jogo de mascaras em que ludibriar e se adaptar às exigências do docente e às brechas da instituição é pura arti(manha).

Além do mais, sabemos que a escola de nível médio, tanto a privada quanto a pública, não prepara os alunos para a universidade. A escola pública de 2° grau, devido a problemas estruturais, e a escola particular junto com os pré-vestibulares, por estarem inseridos na lógica de mercado. Os famosos macetes são a tônica nesta competição. Portanto, de modo geral, as universidades recebem alunos de conhecimentos parcos e inconsistentes, imaturos no desenvolvimento de suas potencialidades cognitivas. Hoje ha a coerção para que os alunos entrem e saiam cada vez mais cedo da universidade. A especialização passou a ser uma exigência imprescindível. O interesse e formação específica não vão de encontro à idéia de universo, já que se mostra como um direcionamento unilateral? O conhecimento, as ciências, as diversas áreas do saber são fragmentadas, portanto não se inter-relacionam dentro desta perspectiva mercadológica. Então, cabe nos perguntar: temos acesso, realmente, à universidade? Parece-me que não. Porém, por outro lado, receberemos um diploma que nos credencia a concorrer e a lutar por melhores condições de vida. O anseio a esta ascensão econômica e social é legítimo e irrefutavelmente inquestionável.

É lamentável que os grupos e associações negras ainda não tenham se organizado em um sistema de redes com integração econômica, social e política, que priorize a escalada de representantes legítimos aos escalões mais altos da sociedade. Espero que não seja interpretado como puro e simples estimulador de emulações vazias, mas principalmente movido por um desejo de isonomia e equidade social. Se fugirmos da infantilidade, analisando a catástrofe violenta das ações humanas, é compreensível e racional que o discurso prime pelo estabelecimento de redes particulares de negociações e inter-relações entre as comunidades negras. Mascarar a apartheid existente não é só reacionário como também exterioriza a falta de ética na pretensão desumana de manutenção de suas regalias. É preciso que estes mecanismos canalizadores das aptidões de etnias negras se concretizem para redirecionar os dividendos a um núcleo comum, favorecendo o desenvolvimento e valorização do negro. Não se pode admitir, como no caso da imagem depreciativa das baianas e do produto de seu trabalho, a acusação fundamentada em interesses falsos e altruístas, como o zelo pela saúde pública. Pois se a TV comercial estivesse preocupada com a coletividade, teria, antes de exibir os acarajés supostamente contaminados com coliformes fecais (?), pensado no desequilíbrio da micro-economia doméstica da família destas vendedoras carentes.

A contra-argumentação mais comum que se ouve a esta postura é que não se pode importar o modelo norte americano de apartheid para o Brasil em vista à nossa formação cultural peculiar. O modelo de segregação, realmente, não precisa importar, já está dado. O que se pretende é vislumbrar uma experiência que alcançou êxito. Ou Paulo Freire na África e no Chile não obteve sucesso com sua metodologia educacional? Pelo que me consta, nem Chile nem África é Brasil.

Não estou a defender a idéia de guetos ou seguimentos sociais vivendo em locais exclusivos e fechados. Mas é que se, favelas, palafitas, alagados não são fechados é, sim, praticamente, exclusividade das moradias negras. Além disso, não podemos perder de vista, em momento algum, queoracismo no Brasil é distinto, por ser difuso, do racismo institucionalizado da África do Sul e dos Estados Unidos. Se lá os atos e relações racistas são "naturalizados", aqui se configura, ou melhor, não se configura não se explicita. Ora se manifesta; ora não. Ademais se apresenta sob diversas formas, obedecendo quase sempre a um código moral sinuoso e obscuro que inculca e impossibilita a compreensão do fenômeno pelas suas vítimas, dificultando a percepção de seus anseios ou exigências. Tal código é simplesmente desorientador. As ambigüidades deste código mascaram a construção social do racismo, sobrepondo a diversidade à desigualdade. Esta ambigüidade decorre do próprio embaraço de conceituar o que é racismo e dissociá-lo da teoria c1assista. A complicação realmente existe daí motiva-se o comportamento omisso e as atitudes preconceituosas que dificilmente serão apontadas como crime. É este código que legitima a prática perversa de uma sociedade que aborta socialmente o nascimento de uma criança negra. Aqui vale uma reflexão: que sociedade desenvolvida é esta em que uma criança de sexo feminino e negra, nascida no Nordeste do país, "lugar tão sem sorte", já pertence a uma intersecção onde coabitam miséria, pobreza e sofrimento?

Uma preocupação séria que realmente se precisa estar atento diz respeito às manobras e interesses da ideologia neoliberal, pois ela incentiva e promove políticas compensatórias às camadas mais carentes da população, com o intuito de aplacar as críticas à estrutura montada por sua lógica societária excludente. Não obstante, tomando o devido cuidado de não confundir exclusão, através de práticas racistas, com o discurso classista que enfatiza as relações antagônicas das classes sociais, é preciso mesmo perceber que políticas afirmativas estão sendo promovidas por organismos internacionais, como o FMI e o Banco Mundial, com a suspeita deste último transferir fundos ao Ministério da Educação no afã de desviar a atenção da pressão pelo ajuste nas desproporções e desníveis econômico-sociais, causados pelo novo paradigma das relações fabris entre empregador x empregado. Neste contexto, surge um novo trabalhador que é obrigado a se reciclar constantemente, e, desse modo, estar empregado é responsabilidade individual sua, eximindo o estado e empresas privadas do seu papel. O desemprego estrutural assume proporções enormes e absurdas, fazendo do trabalhador um joguete desamparado já que está em franco andamento um processo de flexibilização das leis trabalhistas, terceirização, subemprego, informalidade, em fim, toda espécie de trabalho precário que aparenta criar um campo de contradições e antagonismos capazes de desencadear um processo de reivindicações mais concretas.

Se aperceber das crises decorrentes do sistema é imprescindível, porém enfatizá-las como únicas responsáveis por concessões e conquistas de um movimento ativo politicamente seria, além de uma análise superficial da questão, negligenciar ou mesmo anular os atores sociais engajados no processo, aqueles que, através de abnegações e instrumentos legais, impulsionam as mudanças, pressionando de baixo para cima. Contudo, sabendo que os conflitos atuais não geram este campo de contradições e antagonismos capazes de proporcionar maiores turbulências sociais, é importante ter em vista que a conquista das cotas, o direito a um tratamento discriminatório a fim de aproximar os desiguais, aparece, propositalmente, pintado com cores populistas e paternalistas. Então, cabe ao discriminado inserido no âmbito acadêmico (e também os que lá não conseguiram entrar) tomar para si o pensamento e advertência de Milton Santos: "o fato de ser negro e a exclusão correspondente acabam por me conduzir à condição de permanente vigília".

Uma indagação muito comum é porque as cotas não contemplam os mais encarecidos, de pele clara, que estudaram na escola pública. A resposta é tão óbvia quanto patente e inquestionável é a existência do racismo. Pois se a política das cotas se estendesse, indiscriminadamente, a brancos e negros economicamente desfavorecidos, estaríamos esvaziando o sentido político desta medida e, nublando a verdadeira percepção do problema, desde que a educação iria, mais uma vez, assumir o falso papel tão conhecido de redentora de todos os males sociais. Isto levaria à enganosa assertiva de que o problema a enfrentar não é o racismo e sim colocar em funcionamento uma educação ampla, gratuita e de qualidade.

A dificuldade em definir qual a nossa cor é um dos argumentos principais recorrentes à negação do racismo. É deste embaraço que, através de manipulações ideológicas, encorpa-se o mito da democracia racial. Se não há negros nem brancos legítimos, além da ciência ter dissecado e provado a incongruência do conceito de raça em termos biológicos, afirma-se haver, simplesmente, uma apartheid social. É através desta retórica sofista que se procura ocultar que raça é um conceito eminentemente político, e que falar de mestiçagem como igualdade racial é se render à indiferença deste eufemismo descarado e torpe. A mestiçagem, além de não ser sinônimo de igualdade, é, antes sim, prova de subjugação sexual das mulheres negras aos "apetites" dos senhores brancos. Este abuso ainda é muito freqüente atualmente, pois a mulher negra não se enquadra nos cânones estéticos ocidentais, mantendo atualíssimo o que escreveu Gilberto Freire: "as brancas são boas para casar, enquanto que as negras são boas para f...".

Aqueles que se opõem às políticas afirmativas, ou, especificamente contra as cotas, se tranqüilizam em nossa formação estritamente religiosa e familiar. Exaltam-se numa espécie contrita de agradecimento a Deus, pois talvez a religiosidade e as relações familiares típicas do brasileiro, a nossa cordialidade, tão conhecida quanto louvada, possam ser empecilho a uma medida sine qua now (eles não sabem!?), pois, é consenso que nossos representantes governamentais não demonstram de modo nenhum querer reformular as bases educacionais, a não ser por falsas representações numéricas. Então cabe aos negros, que não podem nem devem esperar quietinhos, reivindicar mesmo a implantação de tais medidas que poderão desencadear um processo de reestruturação educacional, já que a política econômica atual prima pelo atendimento inconteste às exigências mercado lógicas. Com a entrada na faculdade de indivíduos supostamente despreparados e incapazes, o estado terá que se movimentar ou, então, deixará que a universidade vá à bancarrota? Se ela ruir é porque não se cultiva cultura neste país, e não devido ao acesso de quem almeja conhecer e ser (re)conhecido.

Realmente é impossível negar que as relações domésticas da Casa-grande e Senzala não estejam consolidadas no ser brasileiro, além de Sérgio Buarque de Holanda se mostrar inquestionável em sua análise psíquico-social do comportamento desta gente. O entanto, um texto não é só o que ele diz, mas também o que ele oculta. Esta lacuna deixada por Sérgio Buarque é preenchida por João Reis e Eduardo Silva, através do livro Negociação e Conflito: a resistência negra no Brasil escravista. Nesta obra, as relações, longe de se travarem em clima neutro, cordial, realizam-se numa tensão cotidiana em que negociar a estabilidade social se dava num campo de equilíbrio de forças. Os senhores concediam para melhor governar, enquanto os negros pediam e aceitavam para melhor sobreviver, prova de um conhecimento apurado de como se adequar às malhas do sistema de dominação em que estavam inseridos.

Estar atento a esta abordagem é importante, pois, para entender determinadas concessões, as manumissões, o aumento da brecha camponesa, é imprescindível não perder de vista a dicotomia vivida pelo escravo, posicionado nos dois extremos da ação: encarnando a figura guerreira, idílica, heróica de Zumbi (o treme-terra) e a postura "covarde'", passiva, de Pai João.

A busca por uma compreensão crítica das contingências do negro frente aos mecanismos de colonização que se perpetua ainda hoje em nossa sociedade, desligada da acomodação de leituras pedagógicas elitistas, constitui o objetivo principal deste artigo. Por isso faço votos que o mesmo tenha servido para alargar os horizontes e pensar o negro não mais como coisa que se domina, mas como um agente histórico importantíssimo na formação deste país.

REFERÊNCIAS

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JAQUES, Maria da Graça Correa. Livro texto. Psicologia Social Contemporânea. 3ª ed. Petrópolis. Vozes, 1999. Pág. 262.

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REIS, João José. Negociação e Conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo. Companhia das letras. 1989. Pág. 151.

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SCHWRCZ, Lídia Maritz. O Espetáculo das Raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil. 1870-1930. São Paulo: Companhia das letras, 1993. Pág. 283.

VALENTE. Ana Lúcia. Oportunidades Educacionais Oferecidas, reivindicações esvaziadas? Cadernos Penesb. 2001.


Autor: ivan santana


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