A PIRÁMIDE



A PIRÁMIDE

 

O automóvel deslizava pela beira do precipício; o caminho, largo e empedrado, era bastante seguro para o trânsito, permitindo a passagem de dois veículos simultaneamente. Era uma manhã ensolarada com um céu límpido e azul claro sem nenhuma nuvem visível. A paisagem de vales e montanhas com aquela represa ao fundo e o caminho serpenteando na descida parecia uma pintura.

Al finalizar uma reta de uns cinqüenta metros o caminho se bifurcava iniciando uma pronunciada curva à direita e uma mais suave à esquerda com inclinação para o vale. Aparentemente esta era a direção a seguir, pois a outra estrada era mais estreita, embora melhor cuidada. Quando olhei pela janela em direção ao caminho secundário vi, no alto de uma plataforma cortada na montanha, duas estruturas piramidais de tamanho considerável. A primeira delas possuía na altura do segundo terço superior uma espécie de círculo de uns três metros de diâmetro, que emitia uma luz ou reflexo que atravessava o céu claro e se perdia no infinito. No centro do que parecia ser um grande espelho, nuvens brancas rodopiavam em torvelinho fazendo com que a luz refletida como que dançasse no ar. O facho formado era paralelo, não se abrindo em cone como deveria acontecer conforme as leis da física. A segunda pirâmide nada tinha de especial, então prestei menos atenção a ela, ao contrário do que aconteceu com a primeira.

Meu tio, que dirigia o carro e que era nosso cicerone nessa viagem explicando cada detalhe das belezas que encontrávamos pelo caminho, disse sorrindo ao ver minha cara de assombro:  “Isso é propriedade particular, creio que de algum sábio ou louco, pois construir um troço desses no meio da montanha, não sei... Bem, pode ser algo relacionado com religiões ou seitas, segundo o que se comenta por aqui. Se vocês quiserem podemos tentar uma visita”.

O carro estava parado no meio do cruzamento; virei para o banco traseiro e olhando para minha esposa e minha mãe, que nos acompanhavam na viagem, inquiri com meu olhar e com uma expressão típica de quem é curioso por natureza, a opinião delas, e ante o assentimento mudo e cúmplice de ambas disse a meu tio:  “Então vamos lá!”.

Enquanto meu tio virava o volante do automóvel à direita e colocava o veículo em movimento, disse calmamente: “Se tivermos sorte e permitirem a visita, eu deixo vocês e retorno pela tarde para buscá-los. Ali eu não entro por nada do mundo!”. Concordamos com isto e nos dirigimos em direção da primeira pirâmide, à do facho de luz, a qual tinha chamado poderosamente nossa atenção.

A única abertura visível da construção era uma grande porta de folhas duplas,  de madeira maciça avermelhada e lustrada parecendo com as portas de antigos castelos medievais. A meia altura, do lado direito, uma argola de bronze com cabeça de leão fazia as vezes de botão de campainha. E justamente isso foi o que fiz; desci do carro e bati à porta. Alguns instantes depois um jovem vestindo um uniforme azul claro abotoado até o pescoço com botões dourados, finalizando num colarinho estilo Mao, muito educadamente perguntou o motivo de haver chamado.

“Gostaríamos de visitar esta pirâmide” -disse eu, com tom de humildade- “Tal vez o proprietário o permita; somos somente nós três e gostaríamos de observar o fenômeno do facho de luz refletido no alto”.

O jovem que parecia o mordomo disse então, delicadamente: “Não creio que seja possível; dificilmente recebemos visitas por aqui, e o motivo apresentado como pretexto parece-me mais mera curiosidade do que real necessidade; de qualquer forma irei consultar o proprietário pois ele é quem decide”

Alguns minutos depois voltou, e com a face ruborizada pelo mau momento e seu provável desapontamento, disse que o proprietário já estava esperando por nós e que tinha preparado um coquetel de boas vindas. Nos fez entrar a uma ampla sala ricamente decorada, com tapetes orientais de diversas origens, quadros de pintores raros e famosos, móveis de muito bom gosto que acompanhavam o ambiente sofisticado e um grande espelho emoldurado sobre uma das paredes, o que parecia prolongar o ambiente. Havia uma grande escadaria de mármore branco no meio da sala, que ao mesmo tempo servia de divisória para outra sala pouco menor, que parecia de jantar, pela grande mesa e as numerosas cadeiras que ali se encontravam. Apesar da estrutura ser piramidal por fora, nada denotava no interior qualquer inclinação das paredes. Chamou profundamente nossa atenção o fato de não haver janelas para o exterior, nem lustres ou candelabros que iluminassem a sala, porém, uma difusa a agradável claridade permitia enxergar todos os detalhes como se fosse de dia. Muitas pessoas, tanto homens como mulheres, todos vestidos iguais ao que parecia o mordomo, completavam o quadro.

Em um canto da espaçosa sala, sentado num sofá alto de couro marrom, em frente a uma pequena mesa redonda de centro, um homem vestido de cinza escuro, com os mesmos detalhes dos outros, botões dourados e colarinho tipo Mao, deixou o grosso e envelhecido livro que estava lendo e o cachimbo que fumava, em cima da mesinha redonda, e com um largo sorriso na face, fazendo gestos com os braços abertos como se quisesse abraçar-nos a todos, pediu para entrarmos e compartilhar com ele a velada.

De estatura mediana, nem gordo nem magro, parecia ter uns 58 ou 60 anos pela prata de seus cabelos e seu porte juvenil; a profundidade do seu olhar, no entanto, denotava a antiga sabedoria dos mestres, aparentando ter ultrapassado os dois séculos...

“Sei que estão curiosos por saber acerca do ´espelho´ que se encontra no alto da pirâmide” -disse logo no início-. “Imagino, ou melhor sei, que vossa curiosidade não é vã, mas provém de uma busca interior, de uma necessidade de alcançar um objetivo espiritual. Já tinham me avisado de vossa visita, então preparei um aperitivo e um almoço antes de entrar direto no assunto”.

Sem saber o que pensar nem o que dizer, aceitamos o convite. Meu tio tinha ido embora e não havia outra alternativa a não ser conhecer o enigma, apesar do frio que percorria nossa espinha, especialmente a da minha mãe, que a pesar de gostar de mistérios, tinha pouca disposição para enfrentá-los.

Foi servido um vinho tinto de categoria superior, corretamente conservado em adega durante muitos anos, pelo sabor e a aroma que se desprendia da larga taça de cristal em que foi servido. Sem temor a ser soberbo, conheço bastante de vinhos e este era espetacular! Inclusive minha esposa, que não bebe quase nada, tomou duas taças. O acompanhamento foi de canapés com algum molho de delicada textura e sabor que não consegui reconhecer e não me atrevi a perguntar.

Trocamos algumas reflexões e idéias com o anfitrião enquanto éramos servidos permanentemente por algumas das pessoas que havíamos visto ao entrar. Todos trabalhavam em alguma tarefa, em silêncio e ordem, sabendo cada um o que deveria fazer. O silêncio era total, salvo uma música de fundo que parecia brotar das paredes, suave e formosa que deixava um sentimento de paz e tranqüilidade nos ouvintes.

Perguntei ao proprietário se este grupo pertencia a alguma seita ou grupo religioso, ou se eram empregados uniformizados cumprindo seu papel. Ele fez como se não tivesse ouvido e continuou a falar em outro assunto; pelo menos essa foi a minha impressão.

Passada uma hora, mais ou menos, o proprietário nos convidou a passar à sala de jantar, indicando previamente um lavabo para lavar-nos. Assim que acabamos entramos na sala, onde uma mesa com aproximadamente quarenta lugares estava servida. As cadeiras de espaldar alto forradas de cetim branco, combinavam com o ambiente sóbrio; a mesa com toalha branca bordada estava ricamente decorada com louça inglesa, jogo de taças de cristal entalhado, talheres de prata e centros de mesa com flores naturais frescas que aromavam o ambiente. Jarras de sucos naturais e de água, garrafas de vinho tinto e branco já abertas completavam a mesa. Por trás de cada cadeira estavam distribuídas as pessoas da casa, menos a cabeceira e três lugares ao lado. Foi me oferecida a frente da mesa como homenagem especial, sem que soubesse por que; à direita sentou-se o proprietário e em frente a ele minha esposa. Minha mãe ficou ao lado dela.

Todos estavam em pé eem silêncio. Amúsica de fundo continuava a tocar. O proprietário disse alguma coisa em idioma desconhecido e, logo após, todos se sentaram. Quatro pessoas serviam o almoço e ofereciam permanentemente vinho, sucos e água. O que comemos não tem importância, pois o diálogo que se seguiu foi por demais importante para lembrar de cardápios.

O proprietário começou dizendo: “Como podem ver, as pessoas que aqui moram não são empregados, e se o fossem não seriam mais bem tratadas em qualquer lugar do mundo. Isto, porque temos uma idéia de humanidade que ultrapassa os limites do racional. Em relação ao que eles fazem aqui é muito cedo para falar desse assunto, mas para adiantar alguma coisa lhes direi que são voluntários no trabalho e aprendem uns dos outros a filosofia de vida”.

 Após a salada e a entrada de frios, constituída por queijos de variados tipos, veio o prato principal, servido em suntuosa bandeja de prata coberta com um tampo semicircular arrematado por um leão que servia de alça. Pensei comigo: “Outra vez o leão!”. Não foi servida carne vermelha; em seu lugar uma ave que parecia faisão ou algum galináceo diferente estava no meio da bandeja, fatiado e arrumado no lugar, guarnecido com vegetais. Mais tarde, a sobremesa, com variadas e deliciosas frutas frescas da estação, e finalmente o tradicional cafezinho preparado na mesa. Durante a refeição ninguém falava, porém todos acompanhavam atentamente as nossas conversas. Nem o clássico barulho dos talheres se fazia ouvir.

“Bem” -disse o anfitrião- “Está na hora de continuar a explicação. Convido vocês a passar ao andar superior para que possam ver o segredo do facho de luz. Como já lhes foi informado poucas pessoas vem por aqui, a pesar da curiosidade reinante em torno do povoado”.

Levantamos todos da mesa e nós três nos dirigimos em direção da escadaria de mármore seguindo o anfitrião. Não pude deixar de reparar em um jogo de xadrez que se encontrava em cima de um armário encostado na parede da sala de visitas; era o do tipo tradicional, porém com o dobro do tamanho, uns dez centímetros de altura. Ao ver um traço de admiração em meu rosto o proprietário disse: “Vejo que gosta de xadrez; vou mostra-lhe outro jogo que possuo e que está guardado para ocasiões especiais”.

 Abriu então a porta de outro armário e retirou de dentro dele uma caixa de couro grande; ao abri-la deixou à mostra trinta e duas peças de xadrez do mais puro marfim, brancas e pretas, simbolizando o que deveria ser uma uma batalha entre cristãos e mouros, finamente entalhadas e do tamanho de um palmo de mão aberta. Delicadamente as colocou em cima da mesa para que pudéssemos apreciar toda sua beleza. Não entrarei em detalhes para descrever as raras e formosas esculturas, obra de algum mestre na arte de entalhar marfim; somente direi que fiquei apaixonado pelo jogo e não tentei disfarçar minha admiração, o que causou uma visível satisfação no anfitrião.

Seguimos para o andar superior e nos encontramos com outra porta de folhas duplas, similar à da entrada. Novamente, estava claro mas não se observavam janelas. Ao abrir, uma visão pouco comum nos deixou estarrecidos; no centro da uma sala não muito grande, um enorme órgão medieval deixava escapar o som que sempre ouvíramos  e que não sabíamos de onde vinha; à frente, um homem baixo, de cabelos loiro-escuros e encaracolados, com um grande bigode da mesma cor, tocava incansavelmente belas melodias. Do centro do órgão, devido provavelmente à vibração das notas musicais em escalas adequadamente tocadas, surgia um feixe de luz radiante que se dirigia a uma janela circular e se projetava para fora.

Por trás do instrumento musical, uma mesada de madeira grossa com várias protuberâncias metálicas dispostas aos pares, estava sendo percutida com um grande carimbo de madeira com empunhadura de metal fundido com forma de leão, por outro sujeito, mais alto e magro que o primeiro. O som parecia o de um carrilhão de relógio, aumentando ou diminuindo a amplitude conforme a saliência golpeada. Isto formava no espaço de vibração do órgão um vórtice em redemoinho que simulava uma dança da luz.

“Então era isto o que víamos lá fora!” -Exclamei com surpresa ante o sorriso enigmático dos três da casa-. “Suponho que haverá uma explicação para isto, já que é algo totalmente diferente daquilo que costumamos ver. Nunca soube que a vibração de notas musicais pudesse ser transformada em luz ou energia radiante”.

“Mas pode” -disse o anfitrião- “Tudo é vibração, e se entramos em sintonia com ela podemos descobrir coisas maravilhosas. Vocês já ouviram falar do fenômeno de ressonância?. Isto significa que quando algum evento vibra na mesma faixa de comprimento e freqüência de onda de outro, o segundo começa a vibrar em ressonância com aquele. Por isto é que alguns grupos, principalmente orientais,  utilizam diversos mantras vocalizados a fim de despertar vibrações especiais na comunicação espiritual. Também grandes místicos na história da humanidade se valeram deste fenômeno para provocar feitos tidos como milagres na época”.

À medida que falava, sentado em frente à mesa com protuberâncias em lugar do outro que golpeara anteriormente, batia freneticamente as saliências provocando sons maravilhosos que se somavam aos do órgão. Olhava alternadamente para o ruivo do instrumente e para nós, sorrindo sempre, e variando as notas em cumplicidade com o outro, provocando novas danças luminosas e multicoloridas no ar; a energia parecia jorrar com mais força através da janela circular, e se espalhava ao mesmo tempo dentro da casa dando a impressão que era de dia.

Muitas perguntas circulavam pela minha mente e não sabia qual formular primeiro; isto foi percebido pelo proprietário porque falou antes que eu pudesse abrir a boca, dizendo que tudo viria a seu tempo, para não me preocupar com elementos intranscendentes, já que as respostas às minhas dúvidas não iriam aclarar nada nessa ocasião. Devíamos, segundo ele, aguardar as revelações que viriam depois.

Mesmo assim, minha curiosidade era maior do que o pretenso silêncio, então arrisquei perguntar quem era ele e o que fazia naquele lugar.

Um forte golpe na última saliência da mesada me trouxe de volta à realidade...

Acordei sobressaltado pulando da cama; os últimos traços de luz se esvaíram na escuridão do quarto. Eram as quatro e vinte da madrugada...


Autor:


Artigos Relacionados


Como Preparar Uma Mesa Para Um Jantar Formal

Arquivos Mentais Abertos

O Chugo E O Cavalo

Encontro Com O Fundador

O Ter E O Ser Se Coadunam?

Stonehenge

Tem Um Bicho Debaixo Da Minha Cama