COLÉGIO PRIMÁRIO



COLÉGIO PRIMÁRIO 

Era uma tarde de verão, no fim de fevereiro, quando decidi recorrer ao seminário de minha cidade natal para pedir colaboração na empreitada que estava levando adiante. Sabia que havia pelo menos quatro padres e dez seminaristas esperando pela minha proposta, mesmo sem eles saberem disto.

Chamei minha companheira para irmos juntos, e de passo mostrar-lhe a arquitetura do prédio onde tivesse cursado meus estudos primários; não havia mudado tanto desde minha saída, em 1962.

Entramos pela porta principal e logo à esquerda, no hall de entrada, estava a diretoria, hoje funcionando mais como secretaría para receber visitas, já que a escola tinha entrada por outra porta lateral e estava separada do resto do seminário.

Nos atendeu um jovem seminarista, beirando os 20 anos, vestindo uma batina preta desabotoada no colarinho, o que indicava além do calor, que não havia tomado os votos sagrados. Solícito, perguntou o motivo de nossa visita, e quando transmitimos o que nos levava ao seminário abriu a boca, pasmo, como que não entendendo a nossa proposta.

Nos convidou a passear pelo jardim enquanto falava com o superior da ordem (se tratava da Ordem de Dom Bosco) e pediu para que não entrássemos nas dependências reservadas, mesmo sabendo que eu era um ex-aluno e conhecia as instalações de memória. Ao sair ao pátio interno passamos pelo saguão onde duas escadas laterais levavam ao piso superior, às salas de aula e de reuniões, e que agora serviam de aposentos aos seminaristas. No corredor superior, em frente aos quartos, dois banheiros de cada lado das escadas serviam aos seis quartos e à sala de reuniões.

Não subimos porque o seminarista foi claro no tocante a não bisbilhotar por aí. Continuamos até o pátio, chagando ao corredor que separava o edifício do jardim, em toda sua volta. Em frente, uma gruta com a imagem de Maria Auxiliadora, inaugurada em 1959, deixava cair pelas beiradas jatos pequenos de água que se juntavam em um laguinho ao pé da virgem. Ao fundo, um campo de futebol com o mato crescido por falta de uso, completava o quadro.

Pelo lado direito, seguindo pela varanda interna, chegava-se ao salão que antes servia de dormitório para os internos, quase cem na época, cujas camas arrumadas lado a lado, com seu armário metálico em cima, abrigavam os alunos de outras cidades.

Antes de chegar ao salão dormitório, outro salão que servia de refeitório, com mesas e bancos compridos, com sua janela comunicante para a cozinha, e o púlpito onde ficava o sacerdote que cuidava da ordem e, eventualmente, os internos liam alternadamente, trechos de algum livro espiritualista. Ao lado, uma sala menor, medindo aproximadamente vinte metros quadrados, abrigava toda sorte de brinquedos para os recreios e o horário de lazer depois do almoço e à tarde.

À direita da gruta, quase em frente, um quarto superior accessível por uma pequena escada de madeira, situava-se o hostiário, lugar onde se fabricavam as hóstias, que por sinal durante vários anos ficou aos meus cuidados. Além do quarto, uma entrada lateral dava acesso ao salão de teatro e, posteriormente, ao cinema da cidade, onde os alunos realizavam regularmente gincanas de ciência, história, geografia e religião.

Logo a seguir, situava-se a entrada lateral da igreja, que acessava o fundo da mesma pela parte inferior, e o coral e o campanário subindo as escadas de pedra.. No coral, um órgão velho encostado na parede do fundo relembrava os anos de cantoria de salmos e músicas sacras; um mais novo, um pouco gastado pelo dedilhar do músico de ocasião, estava postado no centro da sala.

Tudo isto falei para minha companheira, certo de que não me enganava em nada na descrição do local. Não entramos em nenhum dos sítios citados, mas tudo foi confirmado depois por um seminarista, na hora da conversação.

Imbuídos nestes pensamentos quase que não ouvimos o apelo do primeiro interlocutor que encontramos e que fora a chamar o superior. Disse que haviam marcado uma reunião com todos na sala de reuniões que ficava no piso superior e nos convidava a entrar. Dentro do recinto, uma mesa central com quatro sacerdotes e duas laterais com cinco estudantes em cada uma esperavam nossa chegada. Duas cadeiras situadas em frente ao palco para acomodar-nos e uma terceira, mais atrás, abrigaria o seminarista que nos chamou, confirmando a hipótese de que seriam dez alunos, embora na realidade contássemos onze.

Sentamos-nos e logo um dos sacerdotes do grupo central perguntou o motivo da visita. Disse que alguma coisa havia sido adiantada a ele, mas que gostaria de ouvir de nossas bocas toda a historia. Disse ainda que havia convocado uma reunião com todos porque achava muito pertinente o assunto e queria que todos participassem. Depois de exposto tudo diriam o que poderiam fazer.

Comecei contando que tínhamos um ônibus itinerante que realizava ações sociais em bairros periféricos da cidade, levando um pouco de conforto para a saúde da população, notadamente nas áreas da medicina, odontologia e análises clínicas. O voluntariado que atendia este projeto estava há muito tempo engajado e às vezes, por força do tempo, faltavam ao compromisso. Pensamos então em uma alternativa mais prática que seria a de disponibilizar como voluntários aos seminaristas dessa ordem para ajudar nos misteres desse projeto.

Sentíamos onze pares de olhos atônitos olhando fixamente para nos. Um silêncio se fez, quebrado logo depois por um badalo do sino da igreja, tocado por um ajudante de limpeza que fazia as vezes de coroinha, faxineiro, tocador de sino, mensageiro e qualquer outra atividade necessária na igreja. Um suspiro do superior, homem alto e de cabelos brancos, aparentando uns sessenta anos, nos tirou do marasmo. Disse imediatamente que não era costume os seminários assumirem qualquer tarefa externa ao claustro e que nosso pedido era um tanto estranho já que não havia entre eles nem médicos, nem dentistas, nem analistas que pudessem realizar a tarefa.

Quando tive a oportunidade de falar, lhes comuniquei que na idade média, como eles melhor do que eu sabiam, os sacerdotes eram um pouco de tudo, e que por força do hábito se transformavam em profissionais das mais diversas áreas. Se não soubessem a teoria a compensavam com a prática, o que muitas vezes dava em nada, já que a prática sacerdotal na idade média era mais inquisidora do que voluntária...

Nesse momento me pareceu que por trás da mesa central se levantava um fogo nos chamando para entrar em seu interior. Ao que tudo indica, a inquisição continuava, mesmo nestas épocas de beatitude declarada...


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