METODOLOGIA DE TRABALHO COM PESSOAS EM SITUAÇÃO DE RUA



Metodologia é uma palavra derivada de “método”, do Latim “methodus” cujo significado é “caminho ou a via para a realização de algo”. Método é o processo para se atingir um determinado fim ou para se chegar ao conhecimento. Metodologia é o campo em que se estuda os melhores métodos praticados em determinada área para a produção do conhecimento”.[1] 

Como a metodologia objetiva captar o método a ser utilizado, a partir da adequação ao seu objeto de trabalho, deve pautar-se por princípios e diretrizes consolidadas que possam indicar a forma de conduzir as ações.

Quando nos propomos a definir uma metodologia de trabalho com pessoas em situação de rua no Brasil é salutar nos basearmos nas diretrizes e objetivos propostos pela Política Nacional[2] como ótica que permita a adoção de um padrão de qualidade, segurança e conforto que esteja pautada pelos princípios de respeito e garantia de direitos, enfim, um serviço humanizado e que leve em consideração as condições sociais e culturais deste público heterogêneo.

Ainda que se tenha a clareza que a garantia de acolhida, como uma das seguranças da Política de Assistência Social[3], não tenha corte de renda, sabe-se que ela é demandada prioritariamente pelos segmentos mais pauperizados.

No que se refere às pessoas em situação de rua, a garantia de acolhida pressupõe um conjunto de serviços como habitação substituta (albergues e abrigos) e moradias por tempo determinado (moradia provisória, residências terapêuticas). Além disso, a rotina de atendimento cotidiano deve potencializar o acesso às políticas setoriais (saúde, educação, trabalho, assistência social, cultura, esporte e lazer), e o resgate da autoestima.

Relação profissional x pessoa em situação de rua

Os profissionais tanto atendem às pessoas que se dirigem espontaneamente aos serviços quanto realizam uma busca pró-ativa, visitando os locais onde esta população se localiza com vistas a informá-los de seus direitos e dos serviços ofertados num processo de formação de vínculo que os apoia no caminho de saída de sua situação de rua. Para isso há a necessidade de uma formação específica que os capacite para a abordagem individual e grupal, ao mesmo tempo que potencialize sua sensibilidade para atuar frente os estigmas que recaem sobre estas pessoas.

Ao definir as ações a serem empreendidas, é importante que seja considerado que nunca podemos partir de um “momento zero”.  Profissional ou voluntário, aquele agente da sociedade que se aproxima das pessoas em situação de rua traz consigo a herança das relações que foram estabelecidas em tempos passados.

Dependendo do autor da aproximação, há um diferenciar da natureza da ação ocorrida: o poder público, geralmente, aborda estas pessoas visando sua retirada do local onde sua presença é incômoda à sociedade. Ainda que a linguagem seja aparentemente amigável, estas pessoas conhecem a autoridade de que estes agentes públicos estão investidos e sabe quem vai dar a última palavra, já que estes agentes podem acionar o aparelho repressor contra o qual sua força é praticamente nenhuma.

Por outro lado, é com estes mesmos agentes que estas pessoas podem contar quando precisam resolver necessidades básicas como documentação, moradia ainda que provisória, trabalho ou auxílio social.  Nesta situação a relação de dependência é explícita pois, sob o discurso do direito ou não, estas pessoas serão atendidas se e quando este agente avaliar que isso deva ser feito.

O preconceito de que estas pessoas são irrecuperáveis, afinal sobre eles pesa o estigma da mendicância, faz com que para ser considerado merecedor daquela benesse, precise ter reconhecida sua incapacidade em exercer sua condição de cidadão, numa espécie de cidadania invertida. Alguns profissionais mostram-se condescendentes, e em nome de um projeto de recuperação daquele ser, buscam tutelar estes indivíduos ao mesmo tempo em que lhes oferecem ajuda material.

Muitos daqueles que buscam o cidadão invertido ou o ser em recuperação supervalorizam o auxílio que estão disponibilizando, considerando-o a solução de todos os problemas e por isso esperam que a partir dele estas pessoas devem se reintegrar socialmente, tornando-se autossuficientes da noite para o dia já que lhes foi concedido o “caminho” para a recuperação da dignidade perdida.

Por vezes, esta pessoa em situação de rua não aceita esta representação negativa de seu modo de vida, não aceita se dizer culpado e prefere abrir mão da ajuda que lhe está sendo ofertada.  Frente a este tipo de reação, o profissional sente-se impotente e vê neste negar-se a ser tutelado mais um sinal de inadaptação, quando na verdade, deveria reavaliar os recursos de que dispõe que, talvez, não sejam os mais adequados àquela situação.

A mediação intersetorial visando uma gestão integrada

Pensar uma metodologia voltada para a ação com este público implica dois movimentos: uma reflexão sobre o trato adequado e outra sobre as especificidades deste sujeito no que se refere a políticas específicas, na medida em que trata-se de um sujeito específico que vai demandar das políticas setoriais a sensibilização e capacitação de seus profissionais, quase como se se constituísse um campo de atendimento diferenciado. Neste exercício optou-se por refletir em âmbito local, ainda que sem perder de vista as políticas nacionais, ou seja, o aspecto global.

Tabela 1 – Necessidades deste sujeito específico (pessoas em situação de rua) em relação às diversas políticas setoriais

Política

Trabalho

Saúde

Habitação

Educação

Segurança

Assistência Social

 

Transver-salidade

Necessidades apontadas pelos usuários

- jornada de trabalho;

- qualificação;

- trabalho para idosos;

- noções de empreendedorismo;

- não ao trabalho infantil.

- atendimento diferenciado (higiene, álcool, drogas);

- doenças específicas;

- retaguarda de saúde.

- albergues e abrigos;

- Moradias provisórias;

- habitação de uso social;

- espaço urbano.

- acesso à escola formal (crianças e adolescentes);

- educação de adultos;

- educação para a cidadania;

- capacitação profissional;

- capacitar em empreendedorismo.

- capacitação das guardas municipais no que se refere à violência contra pessoas em situação de rua.

- conhecimento de direitos;

- respeito aos estatutos da Criança e do Adolescente e do Idoso;

- apoio e não tutela;

- benefícios eventuais e BPCs.

- gênero e sexualidade, inclusive com aceitação das diversas orientações sexuais;

- convivência familiar e comunitária;

A construção destas especificidades dentro de cada política (algumas das quais devem constar de lei para serem permanentes) pede um diálogo intersetorial  nos diversos níveis. 

Em âmbito municipal, uma primeira integração deve envolver Secretários Municipais e Diretores dos diversos Departamentos. Um segundo fórum de discussão buscará o entrosamento entre estes mesmos diretores ou seus gerentes e a direção das Organizações da Sociedade Civil que atuam com estas pessoas em situação de rua.

Por fim, e não menos importante, precisa-se abrir o espaço de troca de experiências e construção de ações conjuntas entre os profissionais e voluntários que atuam diretamente com esta população, pois é neste espaço que as ações irão ganhando concretude.

 

Ainda que se faça necessária a integração entre as diversas políticas, aprofundar estas questões com vistas a uma construção pedagógica demanda um olhar temático no sentido de identificarmos a necessidade de construção destas especificidades dentro de cada política setorial.

A CONDIÇÃO DE TRABALHO DAS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE RUA

O trabalhador livre, para o qual não há trabalho o ano todo, e aquele cuja remuneração não permite atender às mínimas condições para si e sua família, muitas vezes transforma-se naquilo que vem sendo conhecido como pessoa em situação de rua. Além das dificuldades do dia a dia, o estigma que recai sobre elas, as impede de se situar como agentes da sua história.

Entendemos que este segmento – pessoas em situação de rua – se apresenta como uma expressão da questão social, na medida em que é o resultado das imensas desigualdades sociais, nas quais o Brasil é campeão, desenvolvidas a partir da relação capital/trabalho.

Pesquisa Nacional, realizada pelo MDS – Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, em 20074, constatou que 71% das pessoas em situação de rua trabalham. Destes entrevistados, apenas 16% vivem da mendicância (pedidos e achaques), 59% afirmam ter profissão, sendo a maioria dos setores da construção civil, do comércio, de trabalhos domésticos ou serviços de mecânica. 48% destes entrevistados nunca tiveram carteira assinada.

A Política Nacional para a População em Situação de Rua, instituída pelo decreto 7053/2009, em seu artigo 7º, se compromete a

 

“assegurar o acesso amplo, simplificado e seguro aos serviços e programas que integram as políticas públicas de [...] trabalho e renda” (item I); garantindo ainda (item II) a “formação e capacitação permanente de profissionais e gestores para atuar no desenvolvimento de políticas públicas intersetoriais, transversais e intergovernamentais direcionadas às pessoas em situação de rua”.

 

Mas, quais os aspectos que deveriam ser tratados de maneira diferenciada quando nos propomos a assegurar trabalho e renda para estas pessoas em situação de rua?

 Limites das pessoas em situação de rua

Quando se chega à situação de rua perde-se os mais elementares direitos: sentar-se em bancos das praças;  utilizar-se de serviços públicos como banheiros; andar pelas ruas das cidades; entrar em restaurantes, ainda que se tenha o dinheiro para a refeição... tudo lhe é negado.

O modo destas pessoas se relacionarem com outros segmentos da sociedade deixa clara uma exigência de submissão. Quando se diz que  serviços, como saúde e educação, são direito de todos e dever do estado, pessoas em situação de rua não estão incluídos neste “todos”.

São homens, mulheres, com idades que vão da infância à velhice numa estranha gama de combinações. Trabalhadores sazonais se alternam com desempregados, com doentes crônicos muitos dos quais com transtornos mentais.

A visão de que pobreza é fracasso pessoal leva à banalização da miséria e insensibilidade quanto à situação vivida por estas pessoas. Outra ótica aponta que estas pessoas são inaptas e perigosas já que a miséria é terreno onde germinam os mais variados tipos de crimes; este entendimento parece desconsiderar que muitos dos crimes em nossa sociedade tem outro tipo de autor.

O estigma que lhes é imputado, pouco a pouco vai sendo introjetado e começa-se a achar normal as pessoas nos tratarem com nojo, medo e até mesmo que falem de nós como se não estivéssemos ali... Se mesas e cadeiras não reagem, porque “essa gente” o faria.

Mais que a origem geográfica ou profissional, o que é preciso levar em conta é a trajetória de perdas: pernoitar na rua quando faltou o dinheiro para a pensão deve ter sido o primeiro momento... Ao se alternarem os dias, pernoitando em qualquer canto, estas pessoas vão se isolando da sociedade e vai levando-as a se organizarem em bandos já que entre iguais dificilmente se  é roubado ou agredido já que alguém sempre vigia e logo vai se desenvolvendo uma malha de pertença. Pouco a pouco, começa-se a se acostumar a não ter para onde ir, e a ser olhado por estranhos.

Com ar cansado, a roupa mal arranjada e arrastando uma sacola com todos os seus pertences, estas pessoas veem aumentada a dificuldade em conseguir trabalho. Má aparência, sem endereço de referência... no olhar desconfiado já se pode antecipar que a resposta será um não. Mais uma vez a rejeição.

Exploração do contexto local

A construção de alternativas para estas pessoas passa por uma estratégia profissional onde trabalhadores sociais e voluntários precisam apropriar-se do seu espaço de vida e sobrevivência destas pessoas em situação de rua. Quais as possibilidades latentes no  território em que atuamos?

Como construir um diagnóstico municipal que nos leve a conhecer as oportunidades ofertadas e os nichos possíveis para implementação de ações de inserção profissional de pessoas em situação de rua.

O entendimento de que, num primeiro momento, estes trabalhadores precisam de jornadas reduzidas, ainda que o quantum pago também seja menor, levou a alternativas conhecidas como Frentes de Trabalho que alia a necessidade de trabalhos “braçais” à necessidade de postos para pessoas com fragilidades operacionais.

Exemplo disso é o Programa Frentes de Trabalho de São Paulo, que é gerenciado pela SERT – Secretaria Estadual de Relações do Trabalho, e oferece oportunidades a pessoas em situação de rua.numa parceria com o Fundo social e com as Secretarias de Estado.  Agricultura, Recursos Hídricos/DAEE, e Meio Ambiente tem aberto vagas  para pessoas selecionadas pelas Prefeituras. Numa parceria com a Prefeitura do Município de São Paulo, este mesmo Programa vem fornecendo trabalhadores para as Frentes de Albergue Municipais da cidade de São Paulo.

Nesta proposta,  as pessoas trabalham seis horas diárias de segunda a quinta e na sexta recebem capacitação em relação ao serviço que prestam nas áreas da limpeza, conservação e manutenção de órgãos públicos como pedreiros, pintores, marceneiros, num resgate de suas habilidades profissionais anteriores. Uma parcela destes trabalhadores tem sido efetivada, ao término do período de nove meses em que a bolsa-auxílio é concedida.

Capacitação Profissional

No nosso entendimento, a metodologia mais adequada para a qualificação e requalificação profissional destas pessoas em situação de rua deve objetivar que eles assumam seu papel de sujeitos sociais, num processo de construção coletiva do conhecimento, que articule teoria e prática,  e tendo como diretrizes a valorização das experiências acumuladas, a leitura de mundo garantindo-se a estes educandos a construção de sua autonomia.

Estratégias de capacitação na ação: exemplos de ação possíveis

No município de Santo André, entre 1999 e 2007, a proposta de Frente de Trabalho Estadual  teve um tratamento diferenciado, recebendo o nome de GTIS – Geração de Trabalho de Interesse Social. Os trabalhadores contratados pelos mesmos nove meses foram capacitados para atuar em jardinagem e limpeza hospitalar e foram capacitados nestas funções e em princípios de cooperativismo, tendo criado duas cooperativas quando os contratos terminaram. Estas cooperativas vem prestando serviços a municípios do entorno e com isso o trabalho temporário ganhou status de permanência.

Com objetivo semelhante – garantia de trabalho – o Projeto Oficina Boracea, que foi implementado no município de São Paulo de 2001 a 2004, fez parcerias com Sindicatos Patronais e de Trabalhadores nas áreas de limpeza e hotelaria e criou frentes de trabalho municipais, chamadas de Bolsa Trabalho, onde pessoas em situação de rua foram contratadas para atuar na higienização de Albergues e nas tarefas de lavagem e passagem de roupas dos Albergues e Abrigos da Cidade.  Capacitados e monitorados pelos Sindicatos, quando estes trabalhadores estavam “prontos para o mercado”  eram encaminhados para as vagas existentes na cidade.  Processo semelhante na área da alimentação foi possível pela criação de um Restaurante Escola que era responsável pela alimentação de todos os usuários do Projeto.

Numa parceria do Projeto Oficina Boracea com uma grande empresa que tem em postos de gasolina seu mercado de trabalho, foram capacitadas pessoas em situação de rua para realizar naquele mesmo espaço um trabalho de lavagem e limpeza dos carros.  Capacitados, uniformizados e identificados como uma ação social daquela empresa, este grupo de trabalhadores foi bem recebido pelos proprietários dos carros e com isso concretizou mais esta forma de trabalho que foi formalizada numa Cooperativa de Trabalhadores.

Tradicionalmente, a indústria da Construção Civil requer trabalho intensivo e a maior preocupação de seus dirigentes é a capacitação e fidelização dos trabalhadores.  Numa parceria com este setor, no Projeto Oficina Boracea, foi criado um campo de treinamento, capacitação e formação de mão de obra especializada que, num segundo momento, foi aproveitada nas empresas daquele setor.

Outro caminho, sempre promissor é o de Empresas com Responsabilidade Social que abrem espaços em suas frentes de trabalho para atuar no resgate destas pessoas. Um exemplo delas é a empresa que cuida da limpeza do Metrô de São Paulo e que vem admitindo algumas destas pessoas para atuarem no período noturno.

O grande desafio é conseguirmos sensibilizar gestores públicos e privados para que olhem para dentro de seus espaços de trabalho e identifiquem quais os nichos que poderiam se abrir para acolher algumas poucas pessoas em situação de rua.

Reciclagem de material reaproveitável

O Projeto Reviravolta – coordenado pelo Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos -  busca contribuir para que a população em situação de rua que busca inserção social e de trabalho, organize sua vida pessoal e tenha acesso a políticas públicas de inclusão social, para dar uma reviravolta em suas vidas. Nele são realizadas oficinas de cidadania e educação ambiental que busca desenvolver potencialidades e resgatar a autoestima e a esperança. Num segundo momento, estas pessoas são encaminhadas a Núcleos escola onde aprendem experiências concretas de geração de renda como, por exemplo, a separação de material reciclável que os habilita a serem incorporados numa Cooperativa de Material Reciclável da cidade – a Coopere.

 

ACESSO A SERVIÇOS DE SAÚDE POR PESSOAS EM SITUAÇÃO DE RUA

 

A Constituição Brasileira, em seu artigo 196 define

“a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.

Na análise de políticas setoriais no Brasil, é consenso o entendimento de que a  Política de Saúde é exemplar quando se analisa os avanços obtidos e a capilaridade entre os diversos serviços, principalmente após a implantação do SUS – Sistema Único de Saúde.

Desde a década de 90, inúmeras são as estratégias adotadas no país visando a reorganização do modelo tradicional de assistência à saúde que até então estava orientado para a cura de doenças e um uso indiscriminado de assistência hospitalar.

A ótica atual privilegia a prevenção e constrói diagnósticos a cada dia mais precisos quanto a diagnósticos que permitam o entendimento das dinâmicas de vida de todos os segmentos da população.

Ainda que já sejam conhecidos vários estudos a respeito das especificidades na organização dos serviços de saúde no atendimento de pessoas em situação de rua, este segmento ainda não ganhou o status de um sujeito específico que demande definições em relação à suas condições peculiares de saúde, higiene e precariedade.

Segundo CARNEIRO JR (1998), “o ato de perceber-se doente é influenciado pela cultura, pelo trabalho e pela renda”. Sentir-se doente é fazer a leitura do nosso próprio corpo, identificando sinais incômodos que precisam ser modificados para que voltemos à nossa sensação de bem estar. “Para os que dependem de seu trabalho para viver, ou até mesmo para sobreviver, os sinais de doença podem ser abafados” (BERLINGUER, 1988, apud CARNEIRO JR, 1998).

Pesquisa Nacional, realizada pelo MDS e já citada neste trabalho, informa que

 

 “29,7% dos entrevistados afirmaram ter algum problema de Saúde. Entre os problemas mais citados, estacam-se hipertensão (10,1%), problema psiquiátrico/mental (6,1%), HIV/Aids (5,1%) e problemas de visão/cegueira (4,6%)”.

 

A mesma pesquisa, informa, ainda que

 

Dos entrevistados, 18,7% fazem uso de algum medicamento. Postos/centros de saúde são as principais vias de acesso a esses medicamentos. Daqueles que os utilizam, 48,6% afirmaram consegui-los por esse meio. Quando doentes, 43,8% dos entrevistados procuram em primeiro lugar o hospital/emergência. Em segundo lugar, 27,4% procuram o posto de saúde”

 

Na análise de CARNEIRO JR, 1998,

 

 “nos atendimentos aos moradores de rua, ocorridos em 1996 no Centro de Saúde-Escola Barra Funda (CSEBF), verifica-se que a percepção de estar doente é expressada em situações emergenciais e a concepção de doença é relacionada ao ‘ficar fraco e não poder trabalhar’ ".

 

Dos dados coletados na Pesquisa Nacional, pode-se depreender que ao menos em parte as situações de perda da saúde podem ter sua origem na precariedade da alimentação, já que 19,0% informa não conseguir alimentar-se todos os dias, ainda que o parâmetro seja apenas uma refeição. 79,6% informam conseguir fazer ao menos uma refeição por dia, e dentre eles 27,9% compram comida com seu próprio dinheiro.

Quando estas pessoas se dirigem aos serviços de saúde, suas principais demandas são serviços de enfermagem – curativos por problemas vasculares nos membros inferiores e para ferimentos provocados por agressões físicas. Demandam, ainda alojamento e alimentação.

Na pesquisa realizada por CARNEIRO JR (1998),

 

os principais diagnósticos médicos constatados no atendimento ao grupo pesquisado foram: dependência alcoólica, doenças pulmonares (tuberculose dentre elas) e úlceras e/ou dores nos membros inferiores”.

 

Dificuldades no acesso aos serviços

Pensar nas dificuldades de pessoas em situação de rua, no acesso a  atendimento de saúde demanda uma reflexão a respeito de alguns aspectos:

Recusa de atendimento em serviços de saúde: A higiene precária, apontada como motivadora da omissão no atendimento, muitas vezes em situações de extrema gravidade, sugerem a necessidade de uma reflexão acerta do estigma e dos preconceitos que os acompanham poder permitirem entrever uma certa inabilidade dos profissionais de saúde no trato com estas pessoas.  A resposta mais usual é o encaminhamento ao Serviço Social para que este dê conta da higienização prévia ao atendimento, mesmo em situações em que esta demora possa ocasionar riscos para esta pessoa em situação de rua. Conforme Pesquisa Nacional MDS,

 

Os principais locais utilizados pelas pessoas em situação de rua para tomar banho são a rua (32,6%), os albergues/abrigos (31,4%), os banheiros públicos (14,2%) e a casa de parentes ou amigos (5,2%). Os principais locais utilizados pelas pessoas em situação de rua para fazer suas necessidades fisiológicas são a rua (32,5%), os albergues/abrigos (25,2%), os banheiros públicos (21,3%), os estabelecimentos comerciais (9,4%) e a casa de parentes ou amigos (2,7%)”.

 

 

Dificuldades no atendimento ambulatorial pela ausência de retaguarda de moradia de modo a garantir a medicação na hora certa e o repouso. Pelo que se observa em São Paulo, há uma norma não escrita que define que o Centro de Acolhida que encaminhar alguma destas pessoas para atendimento de saúde deve garantir vaga em Albergue quando da alta do paciente.  Tendo em vista a dificuldade que isso acarreta, em virtude da ausência de vagas fixas para estas situações, o que acaba ocorrendo é o não encaminhamento mesmo que o serviço de acolhida identifique a necessidade de atendimento pelo serviço de saúde.

Outra dificuldade é em relação ao despreparo de muitos dos profissionais em relação ao trato com pessoas em situação de rua. Inúmeros relatos apontam atuações desastradas que vão desde a tentativa de coleta de sangue para exames de pacientes em estado quase comatoso pelo excesso de álcool ou drogas ocasionando reações agressivas deste (im)paciente.

Resistência a alguns tipos de medicação injetável. Falta de informação adequada ou lembrança de situações anteriores leva algumas destas pessoas em situação de rua a recusarem-se alguns tipos de medicação.

Ausência de documentação civil, e perda constante dos cartões de atendimento. A precariedade de vida nas ruas provoca inúmeros casos de extravio de documentos civis e de cartões de atendimento de saúde (cartão SUS).

Enquanto não for definida uma diretriz de atendimento que prescinda do documento de identidade – exigido para fornecimento do cartão SUS – profissionais sociais que atuam na área da saúde tem  dificuldades para garantir o atendimento destas pessoas em situação de rua.

Novos Experimentos ou a necessidade de revisão das regras estabelecidas

Um das inovações experienciada no início deste século foi a do Projeto.Oficina.Boracea que entre outras ações intersetoriais construiu uma proposta de atendimento de Saúde de pessoas em situação de rua que tinha como ponto de partida equipes de Agentes Comunitários de Saúde com vivência em situação de rua que eram orientados por enfermeiros, médicos e outros profissionais do Centro de Saúde Escola Barra Funda.  Programa do Governo Federal, sendo implementado em vários municípios do país tem este mesmo desenho e é conhecido  como Consultório de Rua.

Com a mudança de orientação da Política de Saúde Mental no Brasil,  e com a criação das Redes CAPS – CAPS Infantil, CAPS Adulto, CAPS Álcool e Drogas e CAPS Saúde Mental,  houve uma aproximação de equipes da Saúde envolvidas com estes serviços e as pessoas em situação de rua.

Há experiências muito exitosas e outras ainda precisando ser revistas, principalmente no que se refere aos processos de desintoxicação e à discussão da proposta de Redução de Danos em confronto com algumas práticas que ainda pregam a abstinência total.

Um reflexo da implantação da Política Antimanicomial tem sido a ampliação, na situação de rua, de pessoas vindas dos manicômios.  A proposta antimanicomial propõe o retorno dos pacientes às suas famílias já que foi constatada a validade da convivência familiar na recuperação da saúde destas pessoas, além de ser um direito destes homens e mulheres o estarem no convívio com seus parentes e amigos. A dificuldade de muitas famílias, no entanto, no reabsorver estas pessoas acaba por expulsá-los, abrindo caminho para a vida em situação de rua.

Dentre as demandas mais significativas, consideramos ser necessária a garantia de PAD – Programa de Atendimento Domiciliar voltado para o acolhimento institucional. 

A necessidade de uma capacitação permanente dos profissionais de saúde, em especial as equipes de Urgência e Emergência no que se refere ao trato com esta população, e a necessidade de busca ativa em especial no controle de doenças como Tuberculose[4], DST/AIDs e nas campanhas de vacinação, parecem indicar a necessidade de tratar estas pessoas em situação de rua como um público específico no âmbito da saúde.

 

 

ESTRATÉGIAS DE MORADIA PARA PESSOAS EM SITUAÇÃO DE RUA

 

Dentre os Direitos e Garantias Fundamentais expressos  na Constituição Federal queremos destacar aqui o artigo 5º que, em seu caput, coloca “Todos são iguais perante a lei, sem distinções de qualquer natureza...”

A maioria das pessoas, no entanto, não atenta para o fato destas pessoas em situação de rua serem cidadãos com os mesmos direitos e deveres que todos os outros brasileiros, e, com isso, não é escândalo quando a própria sociedade, através de seus órgãos de repressão atenta contra aquilo que está contido no item XI deste mesmo artigo.

“a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial.”

Estas pessoas em situação de rua, seja por este ou aquele motivo, chegaram a uma condição em que não tem garantido o  seu direito de morar, e no entanto, é esta uma das condições que faz de cada um de nós um ser humano.

Todos os animais moram, e muitos, como o João de Barro, constroem suas casas como abrigo e proteção. Para os homens e as mulheres, morar é mais do que isso. É na moradia que expressamos nossas identidades e construímos nosso modo de viver.     

O morar humano é cultural. A forma de morar define o status, a classe a que se pertence. Na privacidade do lar nos banhamos, mantemos relações sexuais, comemos como temos vontade, brigamos e nos alegramos sem interferências de terceiros e ainda organizamos a nossa ordem e a nossa desordem como queremos. Morar é uma extensão do nosso próprio jeito de ser.

No privatizar o espaço público reconstroem na rua a casa que não conseguem ter. Na medida em que se alternam os dias, o pernoitar em qualquer canto faz com que essas pessoas sejam expulsas do contato com a sociedade que as estigmatiza. Este e outros fatores vão dificultando que consigam mudar a precariedade da sua condição de vida.

Quem está na rua acaba não tendo nem os mais elementares direitos. Não pode  sentar-se numa praça,  andar ou se  locomover. O mínimo do mínimo lhe é negado. São expulsas até quando estão dormindo debaixo das marquises ou no meio das praças. São totalmente destituídos de qualquer espaço. O entendimento de que pobreza é fracasso pessoal leva à banalização da miséria e à insensibilidade quanto à situação vivida por essas pessoas. O máximo que ocorre é a repulsa, ocasião em que se busca distância desses seres. As pessoas em situação de  rua, na verdade, impedem-nos  de fechar os olhos à deterioração da nossa sociedade.

Dentre as Seguranças previstas na Política de Assistência Social voltada para pessoas em situação de rua, destacamos três  que devem ser afiançadas a todas estas pessoas:  A segurança de acolhida, a segurança de convívio ou vivência familiar, comunitária e social e a segurança de desenvolvimento de autonomia individual, familiar e social.

Os serviços de acolhimento para pessoas adultas e famílias em situação de rua devem atentar para demandas diferenciadas e, portanto, objetivar responder a necessidades como (1) abrigamento institucional, (2) acolhimento imediato e emergencial, (3) moradia subsidiada,(4) retaguarda para situações de saúde, (5) residências terapêuticas.

Cada um destes tipos de equipamentos tem suas especificidades, mas há algumas características que devem ser garantidos em todos eles e que vão compondo um “padrão de qualidade” que passa pela definição da capacidade de atendimento; pela ambientação que deve ser aconchegante e agradável, pela manutenção de uma infraestrutura funcional e pelo fornecimento de serviços e suportes que garantam o acesso à higiene, ao descanso e a outras necessidades cotidianas.  O atendimento deve ser personalizado e individualizado visando conhecer a história de vida destas pessoas e apoiar a construção de um projeto de vida que fortaleça vínculos familiares, comunitários e sociais.

 

 

TIPO DE EQUIPAMENTO

FINALIDADE

CAPACIDADE

OBSERVAÇÕES

ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL

Abrigo Institucional

Acolhimento provisório, inserida na comunidade, com características residenciais e ambiente acolhedor.

Máximo de 50 usuários por unidade, sendo 4 pessoas por quarto

Atendimento individualizado e especializado;

Abordagens coletivas para fortalecimento de vínculos sociais.

Casa de Passagem

[principal característica é a transitoriedade]

Acolhimento imediato e emergencial para famílias ou pessoas do mesmo sexo.

Recepção 24 horas, com equipe em todo o período para realização de estudos de caso

MORADIA SUBSIDIADA

Repúblicas

[aceitação de novos definida de forma participativa entre usuários e equipe]

Proteção, apoio e moradia subsidiada

10 usuários por República

Organizada em sistema de autogestão ou cogestão visando autonomia e independência dos moradores;

Os próprios usuários mantém e organizam a limpeza da casa

Hotel Social

[hospedagem em hotéis ou pensões]

Apoio para maiores de 18 anos,  em processo de reinserção social, com autonomia financeira

Período aproximado de 90 dias

Suporte para construção da saída de albergues;

Supervisão técnica e plano individual de atendimento visando autonomia.

RETAGUARDA DE SAÚDE

Casa de Cuidados

Apoio a pessoas em convalescença, mas com alta hospitalar.

50 usuários, máximo de 4 por quarto

Acompanhamento por equipe de saúde, em especial quando houver medicação controlada.

Residências Terapêuticas

Apoio para pessoas que estão sendo acompanhadas por  CAPS, em serviço intensivo.

10 usuários por unidade

Indicação clínica e acompanhamento por equipe de saúde.

Segundo a proposta da Política Nacional para a população em situação de rua, estes serviços devem garantir a estes usuários: (1) ser acolhido em condições de dignidade e respeito, (2) ter sua identidade, integridade e história de vida preservadas, (3) ter acesso a alimentação em padrões nutricionais adequados e adaptados a necessidades específicas, (4) ter endereço institucional para utilização como referência tanto na solicitação de documentação pessoal como na reconstrução de vínculo com seus familiares, (5) ter acesso a espaços próprios e personalizados; (6) ter suporte na solicitação de documentação civil e orientações sobre seus direitos e como acessá-los, (6) ser escutado, podendo expressar seus interesses e construir possibilidades na construção de estratégias de sobrevivência.

Focando a construção do processo de saída das ruas, estes serviços devem estar ligados em rede com outros serviços, em especial os CRAS e CREAS, e através deles com programas de Moradia Popular, Movimentos Sociais e Populares e outros.

Uma das dificuldades que vem sendo encontrada nestes serviços diz respeito ao perfil das pessoas atendidas. Pessoas idosas que estão há muitos anos em situação de rua, muitas vezes, não se adéquam nem em Abrigos de Idosos e nem em espaços de Acolhimento Institucional como os acima descritos, havendo a necessidade de se personalizar este atendimento ainda mais.

O Projeto.Oficina.Boracea tinha como subprojeto um Abrigo de Idosos com este perfil e, apontando a necessidade deste grau de especialização quando se desenha o serviço a ser prestado. 

Outra dificuldade que vem sendo apontada, e ainda em estudo para construção de caminhos, diz respeito à Orientação Sexual. O público LGBT – Lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros também pode estar em situação de rua e somente a reestruturação dos espaços de acolhimento podem dar conta do atendimento personalizado que estes casos requerem.

CONSIDERAÇÕES  FINAIS

Este artigo pontuou algumas questões a respeito das políticas de trabalho, saúde e moradia, mas a demanda das pessoas em situação de rua é muito mais do que isso. Precisamos acabar com as situações de preconceito que avilta e, em alguns casos, gera violência contra eles.  Em muitas situações, estas pessoas tem seus direitos negados e sente na pele a repressão policial que, em nome da ordem e da defesa da cidade busca excluí-los uma vez mais.

Um outro aspecto, ainda não citado neste artigo,  é relativo à  Cultura, Esportes e Lazer para pessoas em situação de rua.  Muitos destes homens, em suas infâncias e adolescências, fizeram parte de grupos de futebol, ou de outros esportes – alguns, até mesmo, tiveram vida profissional nestes campos, e quando se buscou incentivar este aspecto de suas vidas, pudemos chegar a um Campeonato de Futebol interalbergues que foi o maior sucesso.  Na cidade de São Paulo, há vários Centros Esportivos a disposição dos paulistanos,  e o acesso à natação teve como efeito colateral um cuidado com a saúde já que para partilhar a piscina era necessário estar em dia com o atestado fornecido pelo médico. 

Atuar junto a pessoas em situação de rua requer entendê-los como seres integrais e assumir o compromisso na luta pela garantia de padrões de qualidade no atendimento, entendendo-se que este é um grupo heterogêneo em termos de faixa etária, de gênero, de condições de escolaridade e renda, mas ainda assim, são brasileiros que tem um passado vinculado à classe trabalhadora e desejam uma sociedade melhor e mais justa como cada um de nós.


[1] www.significados.com.br/metodologia

[2] O Decreto 7053/2009 traçou as bases para a Política Nacional para Pessoas em Situação de Rua.

[3] Nesta leitura, a Assistência Social garante cinco  seguranças a todas as pessoas: acolhida, convívio, equidade, travessia e rendimento.

[4] Dados do Ministério da Saúde apontam uma incidência de Tuberculose entre a população em situação de rua 67 vezes maior do que a que é encontrada no restante da população.


Autor: Maria Magdalena Alves


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