Loan e a bicicleta



Normal 0 21 false false false PT-BR X-NONE X-NONE MicrosoftInternetExplorer4

 

           
I

 

            Era uma terça-feira, o dia estava cinza como de costume e, Loan vinha deslizando rapidamente com sua pequena bicicleta, uma caloi cross. Sim, ele a tinha ganhado do irmão, mais novo, e gostava muito de pedalar por aí com ela. Loan seguia absorto, observava o panorama urbano paulistano à sua volta, percorrendo com habilidade a ruela estreita, aquilo que chamamos de ciclovia, estendia-se ao seu caminho, bem colada ao um enorme viaduto. E Loan pedalava com força, cada vez mais, sentia fome e não via a hora de chegar a sua casa para comer aquele almoço delicioso, preparado com muito amor e carinho pela prendada sua mãe.
            Loan era um rapaz magro, baixo, com seus trinta anos de idade; pesava aproximadamente sessenta kilos, tinha lá seus fios brancos, contudo, era atlético, esbanjava jovialidade; tinha acabado de fazer seus exercícios diários no parque municipal de seu bairro e seguia desfilando com sua barba ruiva e seu físico esbelto ao pedalar em grande estilo. Foi quando avistou, um pouco mais adiante, uma cena bizarra, incomum, triste. Saia de uma espécie de buraco estampado na parede lateral do viaduto, um casal; a mulher era mulata, foi a primeira a sair, estava grávida dos seus sete meses, aparentava estar muito suja e maltrapilha. O rapaz saiu logo em seguida do mesmo buraco escuro, vestia-se mal, assim como sua princesa, os dois pareciam estar se desculpando de algo. O príncipe fazia sinais da cruz com a mão, olhava para o céu e parecia estar pedindo benção. Loan vinha pedalando com sua bike, velozmente, e não podia deixar de ver aquela cena. Sentia-se de certa forma culpado por aquilo, sentia que a miséria das outras pessoas também era sua culpa! Questionava isso em seu âmago com tamanha indignação: "como duas pessoas podem estar saindo de dentro de um buraco, sujo, fétido, fazendo sinais da cruz a essa hora do dia? O que havia acontecido para aqueles dois indivíduos, estarem ali, naquela situação desumana, desconfortável e humilhante?" Loan pedalou, passou pelo casal, desviando-se com pressa. Sentia medo, estava acuado e enojado. Subia o forte cheiro de fezes, daquele buraco... Da onde tinha acabado de sair aquele casal, e a mulher estava grávida! E, ninguém, iria fazer nada para ajudá-los, nem ele... Seria inútil tentar e isso não lhe soava justo! Foi logo depois de passar por eles e pedalar incansavelmente algumas quadras, como que fugindo desses devaneios, do cheiro e da situação que acabava de presenciar, foi que Loan, decidiu-se, tentou esquecer, pois, tudo aquilo havia lhe chocado e muito. Daí lembrou novamente do almoço, e, pedalou mais forte em direção a sua casa. Já era mais de meio-dia e ele estava faminto.
            Ao olhar à sua volta, Loan, viu prédios enormes, carros e mais carros passavam e zuniam sem sentido para lá e para cá, incessantemente nas ruas e avenidas. O Céu estava cinzento demais, por causa da poluição. O ar pesava toneladas, chegava carregado; essa era a vida na metrópole no segundo milênio, seria essa a vida que ele tanto sonhara? - Matutava consigo mesmo: - "Como chegamos a isso? Pessoas usando crack e saindo de buracos, na parede, por aí e tudo que está ao meu redor, parece estar se esvairindo." Joan sabia intuitivamente que o mundo sempre foi decadente - "Não sei, prefiro fingir não entender" - finalizava ele seu devaneio lembrando-se daquele belo conto de Dostoiévski, - um sonho de um homem ridículo - e de como sempre as pessoas acabam fugindo das verdades que realmente machucam e com ele não seria diferente. Joan não queria sentir-se culpado, por algo que ele não havia escolhido, por um caminho que não tinha traçado. Ele era apenas mais um nesse mundo hostil, repleto de amargura e miséria. Parou rapidamente, acendeu seu cigarro de cânhamo, deu dois fortes tragos, segurou o máximo que pode, tossiu e seguiu o seu trajeto, exaurindo calma, deixando para trás um enorme rastro perfumado com sua fumaça. Já em casa, deixou a sua bike no lugar "de sempre", à frente do carro do seu irmão mais novo, Lyan, o que havia lhe presenteado com a bike. Eles não se amavam muito.

II

            Lyan era mais jovem que Loan, quatro anos, era mais forte e mais alto que o irmão e adorova impor-se. Achava-se maioral por ser assim, o mais provido de força da casa, comia na ponta da mesa, já se via como o herdeiro, o homem da casa, caso o Pai viesse a falecer. Era másculo e gostava de se exibir, quase sempre, ficava sem camiseta desfilando pela casa, ria alto, muito alto! Ha-ha-ha, quase sempre quando as pessoas já tinham se recolhido e estavam prestes à dormir, como isso era impertinente. Loan detestava o jeito evasivo e imperioso do irmão, ambos tinham o temperamento forte, não costumavam levar desaforos para casa, herança do temperamento explosivo do Pai. Loan havia surrado seu irmão quando eram mais jovens, meninos, ainda crianças; aconteceu algumas vezes, embora Loan já tivesse se arrependido profundamente e chegou até humilhar-se, chorando, pedindo-lhe perdão, em determinada ocasião; Lyan parecia ter perdoado, mas naquelas, essas agressões na infância, tinha lhe traumatizado um pouco, buscava inconscientemente vingança, uma oportunidade de passar aquilo à limpo. E claro, hoje ele era mais forte e sabia que podia intimidar o irmão com sua corpulenta violência. Todavia, eles viviam razoavelmente bem, em harmonia, desde que, Loan não discordasse absolutamente em nada com seu irmão fortão. Loan evitava muitas vezes o contato, sabia que eram muito diferentes, um do outro e, que a rudeza de espírito do irmão, era algo que definitivamente ele queria longe de si. Porém, moravam debaixo do mesmo teto, tinham que se respeitar, ou, se aturar, por "respeito" ao bem-estar da casa e dos pais.
            Os pais de Lyan e Loan, estavam em casa. Eram pessoas de meia-idade, distintas, muito bonzinhos, pais prestativos e muito atenciosos, estavam sempre a servir os filhos como Reis, como príncipes! Tudo na boca, tudo prontinho. Roupa lavada, conta paga, comida fresca no prato, nunca faltou nada. Mas, quando os dois irmãos resolviam se atacar, esquecia-se de tudo isso!  - São ingratos! - esbravejava a mãe, quando acontecia de brigarem.

III

            O almoço estava pronto, saborosamente pronto. Arroz e feijão, legumes cozidos, ovos fritos, farinha e pimenta. O suco de laranja tilintava na jarra, tudo apetitosamente preparado para os filhos. A mãe prezava por uma alimentação de qualidade e adorava cozinhar bem. Loan foi o ultimo a comer, estava com muita fome e queria esquecer toda aquela miséria que havia presenciado na rua. Os pais já haviam terminado suas devidas refeições, junto do irmão que havia saído e acabava de retornar. Lyan havia chegado, com seu carro acompanhado do mau-humor, veio direto ao irmão que se alimentava calmamente na cozinha e "pediu" em um tom de voz inquisidor: - Você poderia colocar sua bicicleta do outro lado? Lá, de frente ao meu carro, está a me atrapalhar, já é a segunda vez que ela tomba em meu carro, quando estaciono. - Loan, olhou calmamente para o irmão e pensou consigo mesmo. "Meu carro? E eu, que entro pela porta do passageiro, sempre, só para que ele possa entrar e sair do seu carro com comodidade ( ambos os carros ficavam em paralelo na garagem e o espaço não era lá muito grande), para que ele venha agora com esse papo furado." e respondeu - Bem, você podia deixar seu carro um pouco mais para baixo Jão*, pois dai ela não cairá no seu carro, basta não encostar nela, simples. - O irmão parrudão, se sentiu ofendido com a resposta e logo proferiu. - Jão é o caralho!”- Loan ainda com a boca ainda cheia de arroz, mastigou: - Vai tomar no seu cu! - vociferando com raiva, já perdendo o controle; ele estava comendo e não queria ter que começar uma briga, uma situação tão desagradável. Mas, mal sabia ele que essa briga já havia começado e há muito tempo! O irmão marombadão não ficou contente com o que ouviu isso feriu seus másculos músculos e seu orgulho, esse impropério causou-lhe ódio e sentiu vontade de dizimar o irmão de uma só vez, ali mesmo, na frente dos pais! Levantou os ombros e falou que estava somente pedindo e que era melhor que o fizesse! Deixando explicito o clima de ameaça e imposição. Mas, Loan não era muito fácil de lidar também e respondeu que, a bike, estava bem onde estava para ele e, que a garagem era de ambos. Foi quando Lyan perdeu a linha e começou a chingá-lo agressivamente. Loan levantou da mesa, estava ainda com os talheres nas mãos. Lyan chingou-o de bundão! Loan, já de pé. Retrucou com fúria - Está tentando me intimidar? Sua vontade aqui agora é uma ordem? Jamais! Bundão, é?...vem aqui pegar o bundão! - Gritava e batia em sua própria cara, desafiando a valentia do irmão mais novo. O maioral não se conteve, nesse ínterim, os pais de Lyan e Loan já se encontravam em desespero, ora tentando segurar um, ora tentando controlar o outro. Mandavam, imploravam que se calassem, queriam cessar aquela briga horrível. Era uma vergonha aquela gritaria. O que pensaria os vizinhos? Foi nesse instante que Lyan escapou escorregando com ímpeto do bloqueio do pai, que o segurava e implorava para parar e voou na direção do pescoço de Loan. Os seus olhos resplandeciam ódio e sangue, era o reflexo da maldade, da vingança, brilhando em suas pupilas. Loan viu nesse instante nos olhos do irmão, toda a miséria humana, inclusive a sua que se refletia. Toda a animalidade do instinto estavam ali, exuberante, pulsante e insaciável. Sabia, naquele exato momento, que seria ferido se não fizesse nada para se defender... e com os talheres ainda na mão, levantou sua faca na direção do irmão, em forma de defesa, como um reflexo. Para-se tudo, os olhares de ambos entrecruzaram-se e, naquele milésimo de tempo, transluzia, neles, a mais profunda e degradante decepção, a mais profunda miséria humana, que refletia também em seus pais.


Jão* - Gíria usada por moleques de rua, geralmente maloqueiros ou vagabundos. Algo similar a "mano", ou "cara".

 


Autor:


Artigos Relacionados


Minha MÃe Pariu Um Pc

Um Fantasma Inesperado

Uma Viagem Inesquecível

VocÊ E Seu IrmÃo

Aí, Ele Foi Para O Mundo...

Folhas Ao Chão

Marta