Maresia



“O dia mais especial da minha vida - esperei 16 anos para viver esse momento, e como estou feliz, fico até sem palavras!”, diria Lígia, a caçula de uma prole de quatro irmãs, para qualquer um que passasse perto da mesa que sua família subitamente unida ocupava no meio de uma vasta extensão de areia e água salgada, numa manhã ensolarada de sábado. Aliás, ela não só proferiu tais palavras como também as repetiu algumas centenas de vezes, ou para deixar bem claro a grandiosidade de sua surpresa, ou então para tentar convencer a si de que o instante ali era real. A última coisa que pretendia era irritar a mãe...

Em todo caso, nenhuma das mulheres ali reunidas debaixo daquele enorme guarda-sol via qualquer novidade na atitude sarcástica de Lígia, o laço sanguíneo da família que possuía uma perigosa língua ferina, e estava sempre pronta para usá-la; seria bem menos desgastante apenas ignorá-la. Ingrid, com estranha naturalidade, deixava-se absorver pelas palavras transformadoras de Karl Marx, já que qualquer vírgula que encontrasse pelo caminho seria mais interessante e envolvente que a prévia de uma velha discussão entre mãe e filha que se anunciava timidamente; Jacque encontrara uma forma mais criativa de passar o seu tempo exposta às radiações solares: seu corpo ela recobriu de areia, deixando do de fora do caixão de terra apenas a cabeça, protegida por um imenso chapéu de aba circular igualmente imenso, e para os olhos um par de óculos escuros vindouros de alguma loja frequentada pela elite local. Por vezes Jacque soltava expressões de prazer, como “ah, alguma coisa espetou minha bunda, e tá doendo tanto...” (em segredo, também era vítima da ignorância da família). Karina era a única das irmãs que talvez estivesse realmente interessada em saber como acabaria o falatório de Lígia e a mãe - recentemente (surpreendentemente) pseudoengajada nos assuntos familiares -, embora externamente demonstrasse fadiga crescente a cada palavra que ouvisse, apenas para não deixar vazar o sentimento de júbilo que começava a notar em si, graças ao divertimento gratuito que suas irmãs a proporcionavam.

Escondida à sombra da presença de suas netas e de sua filha mais velha, as mulheres mais interessantes de sua vida, encontrava-se Dona Nazaré, que seguia o fluxo atual de antinaturalidade das coisas não se importando com o fato de estar sendo absolutamente ignorada até pelos garçons por quem gritava por favores simples, como ajudá-la a passar o protetor solar nas costas murchas e pelancudas de uma velha de 77 anos de idade. Karina estava ao seu lado, mas preferia descaradamente agir como se não estivesse. Pior para ela, menina ingrata, “o pecado cairia sobre suas costas, e ela iria direto para o inferno sem nem ao menos passar pelo purgatório”.

Paulina, sem dúvidas, era a mais sofredora das seis fêmeas ali. Como se não bastasse o tempo desumano que passava trabalhando - dia e noite, no silêncio viúvo da madrugada, às vezes sem pôr uma migalha na boca, às vezes esquecendo-se inclusive de que seu corpo necessitava de hidratação - ainda tinha o privilégio de ser tratada com hostilidade pela filha mais nova, que diariamente jogava na sua cara a quão desatenta Paulina era como mãe, e como estava cansada de cobrar algum carinho da mesma. Claro que Lígia tinha razão na maior parte do tempo, e todas as outras filhas sabiam disso, e provavelmente compartilhavam da mesma opinião da irmã, contudo escolhiam manter o silêncio. Que argumentos ela usaria para desarmar as acusações da filha? Diria que era tudo coisa da cabeça dela, e que a relação das duas era a mais perfeita de todas? Ou melhor, reverteria o sentimento de culpa para o lado de Lígia, e tentaria convencê-la de que se ela não perdesse tanto tempo tendo atitudes infantis e egoístas de adolescente rebelde, a mãe poderia exalar todo amor que reservava para a filha.

Desculpas esfarrapadas nunca funcionariam com Lígia, e, no final, a infantil pareceria Paulina, uma mãe de 45 anos que inutilmente perdia seu tempo maquinando ideias tolas para justificar a falta que, sabia, fazia para as filhas.

O sol ardia na pele de mármore das garotas, Nazaré lia uma revista antiga que trouxera consigo para passar o tempo, e Paulina observava com teatral interesse o movimento nas águas bravias do mar daquela praia. Nada seria incrementado na disposição de suas filhas em ter conversar com a mãe se Paulina puxasse qualquer assunto para quebrar o silêncio, sendo este, então, o motivo-mor para permanecer na sua, como se não soubesse que as filhas também se sentiam desconfortáveis com o vazio de emoção daquele dia.

O almoço finalmente chegou para aplacar a fome e o tédio de Lígia e suas irmãs. Alguns caranguejos (que, segundo Jacque, eram violentos demais para ela), acompanhados por uma porção pequena de farofa e algum vinagrete, além do indispensável arroz branco que veio numa tigela amarela de vidro.

A refeição veio e se foi, deixando uma preguiça característica nas mulheres daquela mesa.

Lígia estava cansada de olhar para a mãe e dar de cara com seu semblante pouco animado. Paulina tinha que falar alguma coisa, afinal, ela quem havia proposto o dia de lazer na praia, coisa que não fazia com frequência, e isso era o que mais incitava raiva em Lígia. Se ela queria mostrar que era uma mãe de verdade, e que sentia a falta das filhas tanto quanto elas sentiam a sua, então a mãe que se esforçasse para obter pelo menos um sorriso verdadeiro delas. Dela.

- Mãe, eu tava pensando, não quero medicina, não sirvo pra profissão.

- Tudo bem, minha filha, não faça.

- Quero fazer artes plásticas, paga pra mim?

- Pago, sim.

-Ah, lembra daquele pintor que te falei?

- Pintor... Não, qual?

Poderia ter sido aquele um riso gostoso de ouvir, porque Lígia não precisou esforçar-se para que ele saísse perfeitamente nítido. Todavia, um breve detalhe o tornava um som afiado e incisivo - que parecia querer atingir o ponto vital de Paulina -: Lígia riu com ironia, e sabia que não era a única a ter consciência disso.

- Não sei... – Lígia baixou a cabeça e murmurou: - Não importa, não, esquece.

- Ei, filha... – Paulina sentiu a mágoa na voz da caçula, e estava pronta para se redimir, mas foi interrompida na mesma hora por Lígia, novamente despreocupada:

- Nós seis podíamos fazer uma viagem ao redor do mundo, né, mãe?

- Claro, por que não agora? Tá pronta?

- Valeu, mãe, aprendendo a ser irônica! – Karina se intrometeu, rindo, divertida com a troça da irmã e a reação da mãe.

- Tal mãe, tal filha – lembrou Ingrid, sem se dirigir a ninguém em especial, aparentemente exausta com o diálogo monótono, ou com a impossibilidade de concentração para terminar aquele pequeno capítulo do livro.

Dona Nazaré, majestosa e austera, abaixou a revista que cobria sua face enrugada-porém-sensual, e resolveu externar seus pensamentos.

- Gigi, minha filha, o sarcasmo tá inserido no sangue das “De Oliveira”, é nossa habilidade inata e irremediável.

- Eita!,quanto exagero, mamãe.

- Odeio que me chamem de Gigi, vó – reclamou a primogênita de Paulina, Ingrid.

- Pois então para de agir como uma Gigi retardada, e larga essa porcaria – Jacque tirou de supetão o livro das mãos da irmã, que se pôs sobre os pés na areia quentíssima tão logo se deu conta da direção para a qual Jacque corria, com seu exemplar de A Sagrada Família, Ideologia Alemã nas mãos descuidadas.  Correu para resgatar seu único entretenimento.

- Ah, mãe, tive uma ideia, por que a senhora não dá uma mesada de 200 reais pra cada uma de nós? – Lígia sugeriu, em meio à confusão de gritos de Ingrid, e das gargalhadas histéricas de Jacque, agora próximas às residentes do guarda-sol.

- É demais, diminua o valor.

- Vai negar dinheiro pra filha agora, mamãe?  - provocou Lígia, com seu inseparável sorriso de deboche estampado na cara.

- Eu não disse que não daria o dinheiro, só não tenho condição de dar tanto pras quatro todo mês.

- Ingrid não precisa, já tem como se sustentar.

- A vovó aqui não tem, princesa. – retrucou Nazaré de pronto. -  Se fosse depender dessa aposentadoria vocês todas podiam dar adeus mais cedo pra anciã aqui. Sobrevivo como posso com meus negócios escusos... – esfregou as mãos uma na outra, como quem finaliza um trabalho árduo, e reergueu a revista que estava a ler à altura dos olhos.

- Não seja mal agradecida, vó.

- Não seja mal agradecida, Lígia – rebateu Paulina.

- Eu não sou. Só pedi um pouco mais de dinheiro, preciso sobreviver.

-E o que eu pago pra você já não é o suficiente?

- Não, na verdade é muito pouco!

Paulina conhecia o espírito ardiloso da filha, sabia que Lígia escondia cartas na manga e que se fosse preciso usar suas palavras para causar impacto ela o faria sem pesá-las na balança do tato humano, bem como já o estava fazendo ao trazer à superfície suas angústias como uma filha que, para chamar a atenção da mãe, precisava fingir que seus anseios consumistas sobrepujavam sua necessidade de carinho e atenção maternos. Lígia bradava em silêncio por Paulina, mas era muito orgulhosa para pedir com gentileza aquilo que procurava.

Karina fez-se de surpresa às palavras da irmã, e, silenciosamente, fitou a expressão da mãe.

Era início de uma sensação profunda de mágoa o que Paulina sentia, mas era de importância vital que não demonstrasse o estrago que o golpe que Lígia desferira havia feito no seu coração. Aquela conversa estava com seus dias contados, na verdade, vivera mais do que o necessário.

- Bem, minha filha, se é pouco pra você, não posso fazer mais nada...

- Como nunca faz.

- O que você quer?  O que, Lígia, você quer mais de mim? – Seus esforços foram imperfeitos – uma lágrima caiu involuntariamente. Paulina mordeu o lábio inferior, e não desabaria.

- Quero que me compre um...

- CALADA!

Lígia encarou a mãe com os olhos vidrados, assustados, atemorizados. Assim também estavam Karina, Nazaré, e metade dos banhistas que possuíam ouvidos e não eram surdos. Paulina revoltou-se com o mundo, não só com a filha, e, de repente, nada ao seu redor fazia sentido, ela só desejou correr ao encontro do mar salgado como seu choro, e ser capaz de se afogar sem ter consciência da morte. Fora de si, com a respiração ofegante, já não tinha estrutura para abarcar toda emoção que Lígia a obrigara a acumular na alma.

Determinada a exigir que sua filha se portasse direito, e que enfim pedisse desculpas pelo mau comportamento, Paulina foi contrariada pelos seus instintos maternos, aquiesceu, e sua ira apagada como uma centelha submetida ao poder das águas de uma cachoeira, quando recebeu os braços trêmulos de Lígia ao redor do seu pescoço.

Com a voz embargada pela mudança operante em todo seu sistema, e lágrimas encharcando os ombros da mãe, Lígia declarou:

- Eu te amo, mãezinha.

 


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