Duas vidas, dois destinos



UNIVERSIDADE ESTADUAL DE FEIRA DE SANTANA

O destino de duas crianças, uma marcada pela pobreza a outra pela escravidão, onde só uma tem a possibilidade de realmente vingar.

 

 

 

 

 

 

 

Duas vidas, dois destinos

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Flaviano Santana dos Santos

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Feira de Santana

Outubro / 2010

 

            O conto de Machado de Assis Pai Contra Mãe, vem colocar em evidência uma questão bastante complexa: os limites que se pode chegar para garantir a vida e segurança do próprio filho, mesmo tendo que ir de encontro com a vida de outra criança, que ainda é gerada no ventre da mãe. Não sem ser de propósito, Machado explana esse tema, levando aos limites mais intensos do psicológico de cada personagem os seus atos e ações. Para justificar o ato principal do enredo, o personagem Cândido Neves se guia no pensamento que nem todas as crianças conseguem alcançar o desenvolvimento de suas vidas.

 

- Nem todas as crianças vingam, bateu-lhe o coração. (Capitu Mandou Flores, p. 213)

 

            Para se entender melhor a complexidade desse pensamento é preciso mergulhar no conto Machadiano e verificar todo a subjugação de classes daquela época e o que acarretava no contexto social para cada individuo. Para começarmos a analise, levamos em consideração a condição de “inferioridade social” a qual era submetido o escravo, sendo tratado como objeto de valor financeiro pelo seu Senhor. Para conservá-los em sua posse os escravocratas colocavam ferro ao pescoço, ferro ao pé e a mascara de folha-de-flandres (para tapar a boca e impedir os vícios, como o roubo).

 

“A voz narrativa se volta para o passado próximo e procura lembrar ao leitor as

        formas como eram tratados os escravos, seja para se corrigirem os costumes, seja

               para mantê-los sob a propriedade de seus senhores, evitando a fuga ou recapturando

                              os fujões.” (FONSECA, Aleilton, Con (s) ciência, n°6, 1995)

 

            Mesmo com toda subjugação, os negros não se acomodavam e eram muitas as fugas, criando assim, uma desordem na sociedade erguida em cima do trabalho escravo.

 

Há meio século, os escravos fugiam com freqüência. Eram muitos, e nem todos

                                                          gostavam de escravidão. Sucedia ocasionalmente apanharem pancada, e nem

                                   todos  gostavam de apanhar pancada. (Capitu Mandou Flores, 204)

 

            A partir daí começou-se a oferecer gratificações a quem captura-se os negros fugidos, já que, eram considerados propriedades de grande valor, e a fuga ocasionava prejuízo ao Senhor e desordem social, com risco de chegar a quebra do modelo já estabelecido da economia e sociedade.

 

             Quem perdia um escravo por fuga dava algum dinheiro a quem lho levasse. Punha

                   anúncios nas folha públicas, com sinais do fugido, o nome a roupa, o defeito físico se

                o tinha, o bairro por onde andava e a quantia de gratificação. Quando não vinha a

                           quantia, vinha promessa: “gratificar-se-á generosamente.” (Capitu Mandou Flores, p. 204)

 

            Foi através dessas fugas que se estabeleceu uma nova profissão, a de capturar escravos fulgidos. Ai desemborca a peça fundamental desse conto Machadiano, a figura de Cândido Neves (branco, pobre e livre) como caçador de escravos fulgidos e a outra face dessa sociedade. Essa escolha de Cândido não vem de forma alheatória, ele passa por alguns empregos de oficio como entalhador, caixeiro, fiel de cartório, carteiro, entre outros, sem conseguir se firmar por nenhum.

 

                                “Eis o perfil desse possível trabalhador livre engastado no sistema escravista. O

                                   narrador atribui uma responsabilidade pessoal as escolhas de Cândido, pois é por

                               sua vontade que não persevera nos empregos. Mas ele os deixa não simplesmente

           por falta de vocação para o trabalho regular. Por um lado há a consciência, ingênua

                                        até, de que o aprendizado de certos ofícios é demorado (enquanto a necessidade de

                                     subsistência é premente) e a remuneração é parca, insuficiente. Por outro lado, como

                           não havia uma cultura de trabalho livre, sobrava para este a correlação com o

                                        trabalho escravo, o que lhe transmitia a estigma rebaixante da condição servil.”

                                 (FONSECA, Aleilton, Con (s) ciência, n° 6, 1995)

 

            Para Cândido Neves o que importava era a formação de uma família, mesmo nas condições de trabalhador sem um oficio com ganhos regulares. E o casamento não demorou a acontecer, pois logo que encontrou Clara (órfã, ajudante de costura e criada por Tia Mônica), os dois sentiram que o amor tinha chegado, então Cândido resolve aderir ao oficio de caçador de escravos e firmar o casamento.

 

                               O casamento se deu onze meses depois, e foi a mais bela festa das relações dos

                                 noivos. Amigas de Clara, menos por amizade que por inveja, tentaram arredá-la

                                   do passo que ia dar. Não negavam a gentileza do noivo, nem o amor que lhe tinha,

                        nem ainda algumas virtudes; diziam que era dado em demasia a patuscadas.

                                         ( Pai Contra Mãe, p. 205)

 

Mesmo com o amor entre os dois, ironicamente a tentativa de arredar Clara do casamento tinha sentido, já que, a falta de condições financeiras estalou-se no lar de Cândido, Clara e Tia Mônica, coisa muito comum entre a maior parte das famílias de baixa renda e precisamente demonstrada por Machado nesse conto.

 

           “Trata-se de um casamento de pobres, com festa e jubilo, mas juntando nada

  com nada e somando as necessidades de subsistência. E ademais, casal

       formado é sinônimo de filho, mais necessidades a prover.” (FONSECA,

                      Aleilton, Com (s) ciência, n° 6, 1995)

 

Mesmo atravessando dificuldades financeiras (provocada pela concorrência no negocio de pegar e escravos fugidos e a própria escassez de fuga de escravos), o casal decide ter um filho, nesse momento a figura de Tia Mônica toma uma importância singular na trama.

 

              “O narrador deixa entrever a visão pratica com que ela hierarquiza a situação as

                                situações de acordo com seu interesse: primeiro que se garanta logo o marido

a Clara, e só depois vem a preocupação com a pobreza do casal.” (FONSECA,

      Aleilton, Com (s) ciência, n° 6, 1995)

 

            Mesmo após as advertências de Tia Mônica a respeito de ter um filho, das condições financeiras não favoráveis, o casal acaba sendo contemplado com a gravidez de Clara. O menino vai crescendo na barriga da mãe e no nono mês de gravidez vem o despejo da casa onde moravam de aluguel, sem ter para onde ir, Cândido Neves é obrigado aceitar morar de favor nos fundos de uma casa de uma mulher rica, moradia está arranjada pela habilidade e astúcia de Tia Mônica. Sem ter condições de se manter e manter sua família, Candido Neves passa pelas piores humilhações que um homem pode ter: não poder prover o sustento de sua família, tendo que ouvir a voz racional de tia Mônica falando para ele deixar o bebê na roda dos enjeitados e assim a criança se salvar da fome.

 

                                                    O pai, não obstante o acordo feito, mal pode esconder a dor do espetáculo. Não

Quis comer o que tia Mônica lhe guardara; não tinha fome, disse, e era verdade.

                                    Cogitou mil modos de ficar com o filho; nenhum prestava. Não podia esquecer

                                                        o próprio albergue em que vivia. Consultou a mulher que parecia resignada. Tia

Mônica pintara-lhe a criação; seria maior miséria, podendo suceder que o filho                                     achasse a morte sem recurso. (Capitu mandou flores, p. 210)

 

Com muito pesar e resignação Cândido partiu em direção a Santa Casa para deixar seu filho, porém tem que se abrir espaço para dizer como funciona a roda dos enjeitados.

 

                   “Coube às Santas Casas implementarem outro sistema de auxilio comum às

                   principais cidades coloniais. Junto à  parede lateral ou frontal do imóvel,

                               pertence ao hospital a roda dos expostos. Dispositivo bastante difundido

                             em Portuga, a Roda consistia num cilindro que unia a rua ao interior da

                                       Casa de Misericórdia.

                    ...As câmaras e as casas de misericórdia atuavam lado a lado, mais

                                    apresentavam diferenças marcantes. Nos locais onde funcionavam as Rodas

           hospitalares não havia como excluir as crianças do auxilio. A Roda funcionava

                                     dia e noite, e qualquer um, furtivamente ou não, podia deixar um pequerrucho

                              no cilindro sem ser notado ou muito menos incomodado. (História das

  mulheres no Brasil, DEL PRIORE, Mary, 2004, p. 191)

 

Mesmo sabendo que o seu filho ia ter um futuro mais garantido do que com ele,

Cândido leva a contra gosto seu filho em direção a roda dos enjeitados, o que se ver nesse trecho do conto é um fino traço de crueldade em o pai ter que se desfazer de seu filho. No caminho a crueldade se transforma em tensão ao Cândido ver uma negra passar andando, a mesma que ele viu no jornal com o pedido de captura e recompensa a quem o fizer. Assim, sem demora a Cândido deixa o filho em casa do farmacêutico e não demora a capturá-la, mesmo com os pedidos da negra Arminda para não levá-la ao seu dono.

 

   - Estou grávida, meu Senhor! Exclamou. Se vossa senhoria tem algum filho, peço

    -lhe pelo amor dele que me solte; eu serei sua escrava, vou servi-lo pelo tempo

que quiser. Me solte, meu Senhor moço! (Capitu mandou flores, p 211)

 

            Nesse momento da história se dar o enlace final. A negra Arminda subjugada pela sua condição social, não tem voz, nem vez, já Cândido também vitima da sociedade capitalista, não tem outra escolha, ou entrega Arminda, ou deixa seu maior tesouro nas mãos de estranhos. Sem pestanejar Cândido entrega Arminda nas mãos de quem é seu dono de direito perante a sociedade, não importando sua condição de mãe.

 

                                               Arminda caiu no corredor. Ali mesmo o senhor da escrava abriu a carteira e tirou

os cem mil réis de gratificação. Cândido Neves guardou as duas notas de cinqüenta

                                                mil réis, enquanto o senhor novamente dizia à escrava que entrasse. No chão, onde

                                          jazia, levada de medo e da dor, e após algum tempo de luta a escrava abortou.

(Capitu mandou flores, p. 212)

           

Nesse final de conto vem a reflexão de Cândido que nem todas as crianças vingam, e é colocada de propósito por Machado, para mostrar ao mesmo tempo a ironia que uma vida perdida garante a outra vida e a crueldade da perda da vida e do próprio Cândido que se ver obrigado por todo o contexto social a entregar Arminda mesmo que resulte na morte do filho dela. O que Machado mostra nesse conto é toda uma subjugação social, resultante da mal distribuição de renda e de uma cultura totalmente opressora.

 

 

 

NOTAS

 

DE FERNANDES, Rinaldo, Capitu mandou flores, 2008

 

DEL PRIORI, Mary, História das mulheres no Brasil, 2004, p. 191

 

FONSECA, Aleilton, Com (s) ciência, n°6 1995

 

 

 

 

 

 

 

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Autor: Flaviano Santana Dos Santos


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