Fogo e Gelo na obra "Jane Eyre"



                  UNIVERSIDADE ESTADUAL VALE DO ACARAÚ-UVA

                 ALUNA-GILMARA CRAVEIRO DE VASCONCELOS

                 DISCIPLINA- LITERATURA INGLESA IV

                        

                     Fogo e Gelo na obra  “ Jane Eyre ”

                                                                                                       

                                     Introdução   

    Entre os célebres romancistas ingleses do período vitoriano, figura Charlote Brontë (1816-1855), não apenas como referência para tradição literária inglesa, mas também inscrita na lista de autores canônicos da literatura ocidental, juntamente com suas duas irmãs Emily e Anne. Destacando-se entre elas não somente por ter sido a que mais viveu, mas também por ter sido a precursora e grande incentivadora no sentido de escrita e publicação das obras da família.

    Autora de romances aclamados e considerados clássicos, tendo como pseudônimo Currer Bell, Charlotte conseguiu total notoriedade e fama após ter publicado sua mais célebre obra, Jane Eyre, tida como a mais importante e apontada como responsável pela projeção de seu nome em todo mundo, é  também  a obra a ser analisada neste trabalho  com intuito maior de confrontar as diferença de personalidades existente entre os personagens centrais,  tão opostos que podem ser comparados a gelo e fogo.

   Apesar de ter um poder de ação bem nítido, e uma carga de romance considerável, o destino e o misterioso se fazem presentes nessa autobiografia fictícia, que é considerada por muitos como sendo uma alusão a vida da autora, ou pelo menos em alguns trechos, da vida que ela gostaria de ter tido, assim como escreve Cavendish:  “Algumas interpretações atuais de Jane Eyre consideram esta personagem como um dos lados da personalidade de Charlote Brontë como ser humano.”(Cap. VI, p.63)

    Embora não tenha se comprometido contundentemente com movimentos sociais ou estéticos de sua época, como era visto entre autores, Charlote Brontë viveu e reproduziu em suas obras o contexto histórico a qual pertencia, absorvendo uma carga expressiva de influências do Romantismo europeu, onde a classe social superior deixava de ser aristocracia através de riqueza adquirida por seus descendentes, vivendo um momento histórico, onde a burguesia alcançava cada vez mais status elevado na sociedade por conta das riquezas acumuladas através do trabalho, embasado aqui por Sandra Vasconcelos: “Sem ignorar, portanto, seus antecedentes, o romance surgiu em cena

como uma forma histórica para dar conta de um novo conteúdo social.” (A ascensão do Romance, p.11)

    Porém, embora seja reconhecida como um tempo de grande prosperidade e liberdade no âmbito político e religioso, a Era Vitoriana se faz controversa quando mantém ,mesmo que de forma velada, uma conduta social rigorosamente comedida, rígida e inflexível, influenciada por questões religiosas e econômicas o que se opõe totalmente ao arrebatamento emocional romântico.

    È neste cenário Vitoriano (1847) controverso que Jane Eyre é publicado, onde Charlote Brontë se propõe a romper com a tradição de comportamentos comedidos femininos,como ressalta Cavendish:“ Ambas criaram heroínas que chocaram a sociedade utilitarista e vitoriana de sua época e questionaram as limitações do universo que lhes era imposto.”( cap.III, p.35)

    Tendo como protagonista uma humilde órfã, cuja trajetória será marcada por sua luta no sentido de se encontrar na sociedade e ao mesmo tempo satisfazer seus anseios femininos repletos de desejos carnais,  assim defendido por Cavendish:

 “Esse quarto, cheio de compartimentos secretos, dotado de solenidade quase religiosa, onde um espelho devolve a Jane sua imagem de prisioneira culpada pelo crime de crescer numa adolescência conturbada pelas paixões internas que lhe vinham do interior...” ( A voz embargada p. 69)

 Nessa luta por satisfazê-los, confrontando suas convicções morais, Jane Eyre denota sua atemporalidade com a coragem de enfrentar não somente a opinião de um povo, mas principalmente, de enfrentar a sua própria consciência imbuída de valores completamente discordantes de sua ânsia afetiva.

  

 Fogo e Gelo como símbolo de caracterização dos personagens centrais

Fogo e gelo são aludidos recorrentemente na obra Jane Eyre. O primeiro representando  as paixões, raiva, e espírito ardente feito chama de Jane, enquanto o último simboliza as forças opressivas tentando extinguir dela essa vitalidade.

Já imagens de gelo e frio, frequentemente aparecem em associação á paisagens áridas ou paisagens do mar, simbolizam desolação, solidão, ou até morte.

“ Desses reinos brancos como a morte eu formava uma ideia própria: sombria, como todas as ideias mal compreendidas que pairam difusas no cérebro de uma criança, mas estranhamente impressionante.” (Cap 1)

 As temperaturas congelantes de Lowood,por exemplo, os jarros de água congelados que cumprimentam as meninas toda manhã, espelham o sentido de exílio psicológico de Jane. Ou ainda, quando após o casamento interrompido com Rochester, Jane descreve seu estado de mente:

“Uma geada de Natal tinha passada no meio do verão: uma tempestade de branca de dezembro tinha girado sobre junho; vitrificando com gelo as maças maduras, neve esmagando as rosas florindo; num campo de feno e num campo de milho estendia um manto congelado... e o bosque, que doze horas atrás balançava cheia de folhas e fragrâncias como alamedas entre os trópicos, agora espalhadas, desperdiçadas, selvagens, e brancas como as florestas de pinhos no inverno da Noruega. Minhas esperanças estavam todas mortas...” (Jane Eyre, Cap. 26)

O fogo aparece como uma metáfora, com Jane associada á imagens de fogo, brilho, e calor, onde ela faz um comparativo de sua mente:

 “ Um monte de urzes em chamas, vivas, devoradoras, teria sido um grande símbolo de minha mente quando acusei e ameacei a Sra. Reed; o mesmo monte, negro e devastado depois de mortas as chamas, teria representado de modo igualmente apropriado minha condição subseqüente, quando meia hora de silêncio e reflexão me mostraram a loucura de minha conduta, e a melancolia de minha odiada e odiosa posição. (Jane Eyre, Cap 4)

Esse fogo simboliza a emoção irresistível das personagens, é retratado durante o livro para encapsular a paixão crescente de personagens específicos. Jane Eyre possui o fogo como simbolismo predominante, isso é claramente mostrado através de sua personalidade apaixonada e ao mesmo tempo “inflamável”, o primeiro exemplo lúcido dessa força de personalidade é quando num ímpeto de fúria, ela bate em John Reed, seu primo, num momento em que as mulheres não deviam desafiar os homens. Mais um exemplo do inferno quente interno de Jane é quando ela grita com Sra. Reed, sua tia, expondo individualismo sólido, e mais adiante quando o clérigo St. John Rivers a propõe casamento e ela firmemente recusa, citando ausência de amor como sua racionalização.

 “ Mas como sua esposa — sempre a seu lado, e sempre reprimida, sempre contida — obrigada a mantera chama de minha natureza continuamente baixa, forçá-la a arder intimamente, e nunca externar um grito, mesmo que a chama aprisionada consumisse uma entranha após outra — isso seria insuportável.” ( Jane Eyre, Cap. 34)

Contrariamente, quando Rochester, está em torno de Jane ela se sente bastante diferente. Jane deixa sua paixão consumí-la.

“Eu sabia — ele disse — que você me faria bem de alguma forma, em algum tempo: vi-o em seus olhos quando primeiro a contemplei; a expressão e o sorriso deles não — tornou a parar — não prosseguiu depressa — causaram prazer ao mais íntimo de meu coração por nada. As pessoas falam de simpatias naturais; já ouvi falar de gênios bons, há grãos de verdade na fábula mais desenfreada. Minha querida salvadora, boa-noite! Havia uma estranha energia em sua voz, um estranho fogo em seus olhos.” ( Jane Eyre, Cap. 15)

O fogo e o gelo simplesmente agem como um simbolismo entre os dois personagens principais que tem estes elementos dentro das suas personalidades: Edward Rochester (fogo) e St. John Rivers (gelo), apresentados através das suas emoções e ações. Embora, Edward Rochester pareça frio no início do livro, seu verdadeiro caráter de fogo é revelado no decorrer da trama enquanto o conhecemos melhor, já St. John Rivers, que só é apresentado nos últimos capítulos, desempenha um papel fundamental em contraste á Rochester por meio de sua personalidade gélida.

Durante o livro todo o contraste entre Edward Rochester e St. John Rivers se torna mais eminente e mesmo tendo personalidades opostas, eles são colocados pela autora como tendo um ponto comum que se faz  notável no decorrer da trama, a forma com a qual os dois vão ganhando diferentes nuances baseadas em suas atitudes, fazendo com que o leitor conheça a real personalidade de ambos , que difere totalmente do que havia sido apresentado como primeira impressão.

A aparência física de Edward Rochester e St. John Rivers é também descrita com notável discrepância. No primeiro encontro com Rochester Jane observa  

“Tinha um rosto moreno, com traços severos e uma fronte pesada: os olhos e as sobrancelhas unidas pareciam irados e frustrados naquele momento; ele já passara da juventude, mas ainda não chegara à meia idade; teria talvez uns trinta e cinco anos.” ( Jane Eyre, Cap. 12).

Nesta introdução ela mostra um Rochester de aparência fria. Entretanto, uma vez que a luz do fogo ilumina seu rosto ela enxerga além das suas características ‘não tão bonitas’. Com mais observação, durante a trama é revelado que Rochester possui o calor do fogo dentro de si.

Em contraponto, logo a primeira vista, é inevitável perceber o quanto St. John é provido de beleza física “era jovem” (Cap. 29), diferente de Rochester:

 — talvez de vinte e oito a trinta anos —, alto, esbelto; o rosto atraía o olhar; era como um rosto grego, de linhas muito puras, um nariz bastante reto, clássico; boca e queixo inteiramente atenienses. (Jane Eyre, Cap 29)

Mas, a quentura das caraterísticas físicas de um homem não reflete o que está verdadeiramente dentro dele.Com base na opinião pessoal de Jane ela“ Tinha uma reverência e uma veneração teóricas pela beleza, a elegância, a galanteria, o fascínio (...)”  (Jane Eyre, Cap 12)  nessa visão, poderia  concluir-se que Jane prefere as características ‘puras’ de St. John comparado ás características ‘austeras’ de Rochester, mas Jane sabe bem o que lhe apetece e aqui reitera:

se encontrasse essas qualidades encarnadas em forma masculina, teria sabido instintivamente que elas não tinham nem podiam ter simpatia com qualquer coisa em mim,e as teria afastado como se afasta o fogo, o raio ou qualquer outra coisa brilhante mas antipática ( Jane Eyre, Cap. 12)

A frieza e rigidez St. John é estabelecida através de comparações com gelo e rocha fria. Jane escreve:

 “ Aos poucos, foi adquirindo sobre mim uma influência que me tirou a liberdade mental; seus louvores e atenções eram mais restritivos que sua indiferença. Eu não podia mais falar ou rir livremente quando ele estava por perto, porque um instinto irritantemente importuno me lembrava de que a animação (pelo menos em mim) lhe era desagradável. Eu estava tão consciente de que só as expressões e ocupações sérias eram aceitáveis, que em sua presença todos os esforços para apresentar ou exercer outras expressões e ocupações se tornavam vãos; caí sob um gélido sortilégio. Quando ele dizia "vá", eu ia; "venha", eu vinha; "faça isso", eu fazia. Mas não amava minha servidão; muitas vezes desejei que tivesse continuado a ignorar-me.” ( Jane Eyre,Cap. 34)

Parte da personalidade é como agimos com a emoção de afeição. Jane presencia dois tipos diferentes de afeição em St. John e Rochester, sendo que este  é muito associado ao fogo por ter uma ‘febre’ de desejo. Em um nível, este “fogo” é o fogo Romântico de paixão que eventualmente toma conta de Rochester e Jane. Essa descrição física o mostra escuro em complexão, talvez simbolizando que ele foi “queimado” pelas suas paixões. Sua paixão pode também ser vista na sua figura com o fogo estranho no seu olhar e com “as chamas e luzes nos seus olhos”, que simbolizam o quanto ele, assim como Jane, busca paixão. Entretanto, os olhos de St. John são “grandes e azuis” ( Jane Eyre, Cap. 29), representando a profundidades sem fim do gelo.

St. John se nega a viver uma paixão verdadeira com Rosamond, dispondo-se a mantêr distancia do mundo, incluindo a forte emoção da paixão, para realizar seu “dever santo”. Pode ser notado que Rochester de fato possui o amor de paixão através do simbolismo de fogo. St. John, entretanto, parece ser desprovido da lareira fogosa de paixão.

Deste razoamento pode ser determinado que Jane não será afetada negativamente pela paixão de Rochester, entretanto, com St. John, ela claramente terá sua “chama interna” apagada;o fogo vivo  de sua alma congelado e imobilizado. Rochester sabe da necessidade de Jane por fogo na sua vida, mesmo que ela ainda não perceba.  “ Está com frio porque está só: nenhum contato acende o fogo que há em você.” (Jane Eyre, Cap. 19) Mas St. John não sabe, e nem se importa com essa necessidade de Jane por fogo e paixão na sua vida. Jane sabe que como sua esposa ela sempre será restringida, e sempre averiguada , o que não dá a independência e identidade que ela busca.

Ela percebe ainda que St. John não a amará, e mais que isso, que destruirá seu espírito caso ela escolha casar com ele. Com Rochester ao seu lado, ela estará á vontade, e Jane começa compreender que “Eu estava com um igual — alguém com quem podia discutir —” (Jane Eyre, Cap. 34) quando estava junto de Rochester.

O fogo para Jane e Edward, serve de força positiva mesmo quando é destrutivo, como quando Bertha ateia fogo às cortinas de Mr. Rochester “ Línguas de chamas lambiam em torno da cama, as cortinas ardiam. No meio do incêndio e da fumaça, o Sr. Rochester jazia estendido imóvel, num sono profundo”. (Jane Eyre, Cap. 15) e por fim a Thornfield Hall.

No primeiro dos incêndios Bertha traz Jane e Mr. Rochester a um relacionamento mais íntimo:

 — Quê! — exclamou. — Está me deixando, já, e dessa forma?

— O senhor disse que eu podia ir.

— Mas não sem se despedir; não sem uma ou duas palavrinhas de reconhecimento e boa vontade; não, em suma, dessa maneira curta e seca. Ora, a senhorita salvou minha vida... arrancou-me de uma morte horrível e excruciante! E passa por mim como se fôssemos estranhos um para o outro! Pelo menos apertemo-nos as mãos.

Estendeu a mão; eu lhe dei a minha; ele a tomou primeiro numa, e depois em ambas as suas.

— A senhorita salvou minha vida, tenho prazer em ter uma tão imensa dívida consigo. Não posso dizer mais nada. Nada mais seria tolerável para mim na condição de credor de tal obrigação; mas com a senhorita, é diferente... não sinto o seu favor como nenhum fardo, Jane.  ( Jane Eyre, Cap. 15)

Enquanto o segundo destrói Thornfield e leva à morte de Bertha, libertando Rochester  de seu passado acorrentado:

Era uma mulherona, de longos cabelos negros; nós os víamos flutuar contra as chamas, com ela ali de pé. Eu vi, e muitos viram, o Sr. Rochester subir pela clarabóia no telhado: ouvimos que gritava "Bertha!" Vimos que se aproximava dela; e então, madame, ela berrou e deu um salto, e no instante seguinte estava estatelada no calçamento.

— Morta?

— Morta! Sim, morta como as pedras sobre as quais se espalhavam seus miolos e seu sangue. ( Jane Eyre, Cap. 36)

E mesmo quando o fogo cega Rochester  “— Está totalmente cego — ele disse afinal. — Sim, totalmente cego, o Sr. Edward.” (Jane Eyre,Cap. 36) o incidente ajuda Jane a perceber que ele  agora pode ser dependente dela e apagar qualquer dúvida  sobre a desigualdade no seu casamento.

Conclui-se então que tanto Jane quanto Edward possuem fogo dentro de si, e mesmo cego Edward necessita do clarão das chamas, numa comparação ao calor da amada “— Sim; sempre quer que se tragam velas, à noite, embora esteja cego.” (Jane Eyre, Cap. 37)  conspirando sempre á favor do  equilíbrio delicado que faz manter viva a chama da paixão . Como seu marido, Rochester continuamente alimentará o fogo da sua alma e não a deixará morrer. Seu fogo a fascina e dá a ela um novo significado de vida . Pela primeira vez em toda sua existência, Jane sente o amor verdadeiro, e de alguém que ela ama também. Ao mesmo tempo, Jane aquecerá Rochester, com o calor de sua alma apaixonada e cuidadosa, mostrando que juntos viverão em harmonia.

Embora Brontë não sugira que os caracteres associados com gelo são totalmente malignos ou antipático, fica claro através de suas palavras nessa obra, a importância do amor ardente como a chave para a felicidade pessoal

Bibliografia

WANDERLEY, Márcia  Cavendish, A voz embargada: Imagem da Mulher em Romances Ingleses e Brasileiros do Século XIX, 1* ed. São Paulo: Editora da universidade de São Paulo, 1996.

VASCONCELOS, Sandra Guardini. Dez lições sobre o romance Inglês do século XVIII. São Paulo: Boitempo,2002.

 


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