CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO E IDEOLOGIA: OLHARES SOBRE A CARTA DE UM RETIRANTE



CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO E IDEOLOGIA: OLHARES SOBRE A CARTA DE UM RETIRANTE

 

Genilson Dias¹ 


Resumo: Tendo por objeto de análise uma carta retirada do filme Central do Brasil, do diretor Walter Sales, tratando esta do desencontro de um casal de retirantes, que deixa sua região de origem - o Nordeste brasileiro - em busca de melhores condições de vida no sul do país, o presente artigo percorre uma trajetória reflexiva acerca das condições de produção, embasadas em Pêcheux e de Ideologia em Althusser, buscando entender as razões e as circunstâncias que propiciaram a produção desse discurso. Assim, encontrados os subsídios teóricos necessários podemos depreender a complexidade dessa construção discursiva, cuja constituição é composta de fatores sociais, ideológicos, históricos, políticos e éticos que proporcionaram a edificação dos nossos olhares. 

Palavras-chave: Condições de Produção; Ideologia; Retirantes; Jesus.

A HISTÓRIA EM CENA 

Em meados do século XX, o Brasil sofreu com várias crises econômicas, sociais, o que acabou acarretando um grande quadro de êxodo rural. Os brasileiros daquela época, em busca de melhoria de vida, se deslocavam de suas cidades para os centros urbanos do país, gerando assim o aumento do desemprego, analfabetismo, entre outros problemas sociais nessas regiões.

            Desde 1929, o país apresentava altas taxas de inflações, então com a entrada de Getúlio Vargas na presidência e a elaboração de programas que reverteram essa situação econômica, inicia-se o processo de modernização no país.

            Em 1956 Juscelino Kubitschek, assume a presidência com o lema de fazer o Brasil cresce “cinqüenta anos em cinco. Tentando contornar a situação econômica, JK dissemina o Plano de metas, que visava à modernização do país e o desenvolvimento da indústria de base, com investimento na construção de estradas, hidrelétricas e o aumento da extração de petróleo, tudo com o objetivo de transformmar o Brasil, num país industrializado. E em 1960 o governo inaugura a nova capital, Brasília.

            Diante essas mudanças, tal como a industrialização caótica no centro do país, a ausência de reforma agrária e com a decadência da inflação, devido os grandes imprestimos, intensifica assim a migração, principalmente dos nordestinos para a região central do Brasil.

            Esses migrantes começaram a luta pela sobrevivência, sofrendo  desigualdade social, violências, anafabetismo e desemprego, assim o filme “Central do Brasil’ dirigido por Walter Salles, retrata essa realidade tão injusta do nosso país, retratando a peregrinação do  nordestino em busca de melhores condições de vida, abandonando dessa forma seus lares, e familias favorencendo assim, as aglomerações nos centros do país.

O filme Central do Brasil inicia-se em uma estação de trem na qual mostram pessoas de todos os tipos e lugares do Brasil. Este retrata a vida de Dora, uma professora aposentada que tenta ganhar a vida escrevendo carta para analfabetos, e a de Josué, um garoto pobre de oito anos de idade, que passa por grandes sofrimentos. Como a morte de sua mãe na cidade do Rio de Janeiro e tem o desejo de  encontrar o pai no Nordeste.

Central do Brasil representa a realidade de milhões de brasileiros que não sabem ler nem escrever, mas que se comunicam através de outras pessoas. Deste modo, a história trata de personagens analfabetos, que por não possuírem escolaridade, dependem de um escrevedor para estabelecerem seus atos comunicativos, revelando assim a situação da educação em todo o país, com altos índices de analfabetismo.

Outra realidade retratada no filme é a da família de Jesus, pai de Josué, que vivia uma situação de pobreza e de analfabetismo, situação esta impregnada pelo sistema capitalista, pelo mundo de competição do mercado de trabalho, pela luta de sobrevivência e pelos problemas socioeconômicos. Entretanto, Josué buscava uma melhor condição de vida, e tinha esperança de um dia poder rever sua esposa Ana, pois, desencontraram-se durante uma peregrinação para o sul do país

Jesus é o retrato fiel do retirante nordestino, que ao chegar à cidade grande, depara-se com uma difícil condição de sobrevivência, decorrente do fluxo migratório de nordestinos para o sudeste do país, que contribui para o aumento do número de pobreza nestes centros urbanos.

O filme é uma impressionante viagem à realidade do Brasil, que revela  as disparidades sociais, a maior  concentração de renda em mãos de uma minoria em detrimento de uma maioria, o aumento da pobreza, da miséria, a situação precária que se encontrava a educação do país naquele período, fazendo com que nós, brasileiros, nos atentemos  a essa realidade gritante.

À LUZ DA TEORIA

Torna-se necessário, trazer à baila as concepções de Ideologia e Condições de produção, essa inserida no campo da Análise do Discurso. A primeira perpassando as idéias da perspectiva teórica francesa em Althusser, e a segunda trazendo uma abordagem a respeito das condições de produção na perspectiva de Pêcheux.

Althusser teve como ideal metodológico descrever o funcionamento da Ideologia e fazer uma reformulação de seu conceito, vigente nas idéias de Karl Marx. Althusser trouxe a tona o conceito de aparelhos ideológicos do Estado, estes agem através de dois mecanismos: Aparelhos Repressores, tais como a polícia, o Exército, o governo, etc. e Aparelhos Ideológicos, que são a família, a religião, a cultura, etc.

            Para Brandão (2004, p.23) parafraseando Althusser, o Estado “intervém ou pela repressão ou pela ideologia, tentando forçar a classe dominada a submeter-se às relações e condições de exploração”. Nessa relação desigual, quem não segue os preceitos ideológicos dos dominadores não goza dos “bens oferecidos” pelo Estado, ficando à margem da sociedade enquadrada, assim, perpetuando sua condição de dominado.

            Com isso, a ideologia dominante faz uso desses símbolos ideológicos – funcionando através deles – para perpetuar sua dominação, propiciando um contexto adequado à reprodução alienante, de práticas não contestadas pelos submetidos a essa ideologia. Dessa forma, torna-se quase inconcebível visualizarmos alguém, ou alguns, lutando contra o poder do Estado, até porque, a ideologia dos dominadores consegue impregnar no inconsciente coletivo a idéia de que as coisas são assim e é para o bem de todos.

            Nessa perspectiva, o presente teórico aborda o conceito de “ideologia em geral” e com isso levanta algumas hipóteses. Na primeira, ele diz que “a ideologia representa a relação imaginária de indivíduos com suas reais condições de existência” (ALTHUSSER apud BRANDÃO, 2004, p. 24), entendendo esse imaginário como a relação do homem com a realidade de sua vida, daí podendo ocorrer a deformação do concebido como real.

            Na segunda formulação, Althusser fala que a existência da ideologia só se dar porque os aparelhos ideológicos, onde os sujeitos praticam seus atos, que consequentemente são moldados por ela, assim, para o autor as práticas só existem inseridas em uma ideologia. Na outra hipótese, Althusser expõe: “a ideologia interpela indivíduos como sujeitos” (ALTHUSSER apud BRANDÃO, 2004, p. 25) e esses últimos são reconhecidos em práticas ou ações controladas pelos aparelhos ideológicos.

            Passemos então, a abordar o pressuposto teórico das idéias de Pêcheux, contidas no universo da Análise do Discurso e centrando nossa atenção às condições de produção discursiva.

            Pêcheux defende a idéia de que os sentidos de um determinado discurso não estão presentes apenas nos signos lingüísticos e nos textos, mas no relacionamento destes com o exterior e com as condições em que são produzidos, não dependendo, portanto, somente das intencionalidades dos sujeitos.

            As condições de produção englobam a situação, os sujeitos e a memória na produção dos discursos. Dessa forma, o analista de discurso vai procurar “pistas que ele aprende a seguir para compreender os sentidos aí produzidos, pondo em relação o dizer com sua exterioridade, suas condições de produção” (ORLANDI, 2005, p. 30). Essas, por sua vez, são divididas por Pêcheux em dois sentidos: sentido estrito e sentido amplo.

            No primeiro, as condições se dão no contexto imediato, ou seja, todas as forças momentâneas que age para a criação de um discurso, quando falamos em forças, estamos falando dos fatores (circunstâncias), tais como: o (s) autor (s); o tempo; o (s) local (s); o (s) objeto (s); etc. Já no segundo, as condições de produção engloba o contexto sócio-histórico e ideológico, ocorrendo então num contexto amplo. Este é, portanto a “forma de nossa sociedade, com suas Instituições... no modo como elege representantes, como organiza o poder, distribuindo posições de mando e obediência” (ORLANDI, 2005, p. 31).

            Entendendo então, as condições de produção como acontecimentos que condicionam a produção do discurso, este não pode e não deve ficar restrito apenas aos seus aspectos simbólico, textual e linguístico, ou seja, ao visível, mas transcendê-lo rumo ao não visto no discurso, a exterioridade e assim depreender, apropriar deste objeto.

UMA BREVE INTERPRETAÇÃO

 

Passamos agora a fazer a análise do objeto em questão, levando em consideração as concepções expostas anteriormente. Nosso objeto – a carta de Jesus a sua esposa – será analisado através dos pressupostos teóricos de Althusser, este no aspecto ideológico e de Pêcheux com suas idéias de Condições de produção.

Percebemos que, na condição de dominado pelo sistema ideológico dos dominadores, Jesus é um sujeito que se deixa submeter aos aparelhos ideológicos da classe dominante, uma vez que aceita sua precária condição de existência como algo natural, assim ele diz “Me perdoa, É o seio dessa vida”, nesse caso, Jesus é explorado ideologicamente pelo Estado. Dessa forma, o emissor da carta aceita a perpetuação de sua condição, não lutando contra o poderio do Estado e acredita que este existe para o bem coletivo.

Os indivíduos envolvidos nesta carta têm uma visão limitada em relação as suas condições de vida (cf. Althusser), sendo assim, eles não vêem a ideologia que os envolve. No seguinte trecho Jesus expõe: “Ana, to pensando se eu fico um mês no garimpo antes de voltar aí”. Assim, dá para depreender que Jesus aceita ser explorado no garimpo, acreditando ser essa a sua única condição de existência, ou seja, essa é a sua opção, dada pelos dominados.

Levando em conta que as práticas sociais só ganham existência dentro de uma ideologia, os envolvidos neste contexto são guiados pelo sistema ideológico empregado pelos favorecidos, assim suas ações e atitudes são de pessoas pertencentes à classe dos desfavorecidos. Em “que tu já deve ter voltado, e conseguido achar essa casinha nova” demonstra o quanto são indivíduos que dirigem suas práticas em torno daquela visão de mundo, visão de que pobre “não tem vez”.

Já em relação à produção do discurso de Jesus, há questões que extrapolam ao lingüístico, por isso, questões como a sua classe social, a sua região de origem, o seu analfabetismo não podem ser descartadas. Então, devem-se considerar as condições de produção no sentido estrito, contexto atual e no sentido amplo, ou seja, seu contexto sócio, histórico e ideológico.

Dessa forma, as condições de produção no contexto imediato desse discurso são: o desencontro do casal “eu to aqui no Rio de Janeiro procurando ocê”; a necessidade de dar notícias “deixei o Moisés e o Isaías tomando conta das coisas”; procura por um escrevedor; linguajar “ocê”; o tempo “me espera que eu volto”; a carta; etc. Tudo isso foi o que propiciou a produção deste discurso, ou seja, os fatores e as circunstâncias para a construção da carta.

 Por outro lado, partindo para as condições no sentido do contexto sócio-histórico e ideológico, então teremos: a família “aí vai ficar todo mundo junto”; a vida agitada das grandes cidades; o êxodo rural “antes de voltar aí pra casa”; relacionamento a dois “só mais uma olhada em ocê”; a condição de nordestinos; etc. Neste aspecto, o autor do discurso não percebe – ou percebe em parte – todos esses fatores, mas age conforme suas necessidades momentâneas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

Portanto, esses foram os nossos olhares sobre a carta de Jesus à sua esposa Ana, sendo assim outros olhares poderão penetrar neste discurso, até porque as percepções numa construção discursiva não se esgotam, está sempre aberta a novas análises. Neste foram feitas uso de apenas duas maneiras de encarar o objeto discursivo, outras podem ser lançadas. Ao considerar que, ao produzir determinado discurso o sujeito se lança numa esfera social, histórica, filosófica e ideológica, seu discurso sempre será recheado de múltipas vozes, e estas não são fáceis de serem esmiuçadas em um único estudo. Por isso, esta empreitada não está totalmente acabada, mas apenas esboçada, então – retomando – o presente objeto aceita outros olhares. 

REFERÊNCIAS:

BRANDÃO, Helena H. Nagamine. Introdução à análise do discurso. 2 ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2004.

ORLANDI, Eni Puccinelli. Análise do discurso: princípios e procedimentos. 6 ed. Campinas, SP: Pontes, 2005.

 

¹Graduando em Letras Vernáculas pela Universidade do Estado da Bahia – Campus VI – Caetité/BA.


Autor: Genilson Dias


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