Partida



O vento soprando sequer provocava frio, apesar de ser madrugada. Olhei ao redor, os olhos se fecharam momentaneamente, como se se negassem a enxergar o que não queriam. Mas eu tinha que ir. Fechei o portão: dois ou três passos; e lá estava a rua que − sombria e silenciosa − combinava com meu lento palmilhar, trôpego da ressaca, triste também, diante daquele panorama vazio, sem vida.

Havia cães deitados no asfalto. Indispostos, sonolentos, nem sequer latiam. Fitavam-me indiferentes e voltavam a dormir, baixando suas cabeças lentamente à medida que ia me afastando.

A ocasião me recordava − e eu não queria aquela lembrança triste − de que ali chegara há apenas dois dias, e já ia partindo nessa mesma madrugada. Mas era necessário ir.

Tudo ao redor sussurrava repetida e pausadamente um adeus, que não suporto pronunciar nem tampouco ouvir. Eu, que não queria ir-me embora dali e sequer pensara naquela possibilidade antes, caminhava para outro lugar naquele exato momento, embora sentisse que caminhava sem razão de caminhar, que meus passos eram inúteis e sem sentido. O que me ofereceria a cidade? O que encontraria lá? Não dava para saber, e talvez nem fizesse questão disso.

Vinham-me à memória as recordações daqueles dois dias. A praia, papai, mamãe, meus irmãos, os amigos... as coisas que fiz... as saudades que matei... tudo me vinha ao pensamento simultaneamente. Fazia silêncio então. Nem um cantar de cigarra. O som cadenciada de meus passos era a única coisa que ouvia.

Que faria eu para agüentar tanto tempo longe dali? E lá estava eu fazendo o que juraranunca fazer: lá estava eu pensando no futuro, traçando planos; lá estava eu partindo de casa... não para longe; porém para onde ia já era distante o suficiente para me deixar deprimido. Ficaria longe não por muito tempo também, mas o tempo suficiente para que a tristeza me contaminasse por completo.

Tanto já caminhara, meio perdido em meus pensamentos, que nem percebi que já havia chegado à praça, que já amanhecia, que o céu já estava clareando, que o sol surgia já no horizonte por entre as mangueiras, dourando as nuvens e brilhando e aquecendo mais e mais...

O olhar foi em direção ao terminal. O ônibus não havia chegado ainda. Pouca gente o esperava. Será que atrasaria?

Absorto, sentei-me num banco entre algumas pessoas. As preocupações que me atormentavam nos últimos dias me voltaram, e com tal intensidade, que não percebi o passar do tempo nem a chegada do ônibus. Martelavam-me e a idéia fixa de ficar um tempo sem voltar ali − sem passar uns fins-de-semana ou quem sabe alguns meses ali − , e também a resolução tomada de que mudaria meu comportamento: duas promessas que não sabia se poderia cumprir; contudo, que tentaria, tentaria! Seria difícil no começo, mas aos poucos iria acostumar-me. Veria a família e os amigos apenas de quando em quando; e quanto ao comportamento, eu o remodelaria lentamente, detalhe por detalhe. Porém, será que queria realmente as coisas acontecendo dessa maneira? Não gostava de mim assim como eu era? Por que seria diferente, então? Quem sabe no fundo não gostasse de minha maneira de agir , de tomar decisões pensadas e repensadas − uma mania minha para evitar o erro e o medo de cometê-lo diante de pessoas que depositaram em mim toda a confiança do mundo? Não, não... Eu realmente não sei. Não era bem isso que eu queria mudar... era? Acho que...

Bruscamente despertei-me da absorção. Era uma campainha. Eram seis horas e o ônibus já ia partir. Num momento, já estava dentro dele, sentado numa poltrona à janela. Restava apreciar a paisagem, até que o sono me conduzisse a um outro mundo.

Mas num repente algo começou a sufocar-me o peito, e a respiração tornou-se arfante; pensei que sofreria uma espécie de ataque... E aí uma lágrima, uma só lágrima, porém de um choro miserável e sigiloso , escorregou então por meu rosto, já denotando em mim talvez uma saudade precoce. Consegui ainda balbuciar um a d e u s... antes de minhas pálpebras já pesadas guilhotinarem as imagens ao meu redor.

Lá fora o sol de inverno já aquecia a manhã.


Autor: Alcir de Vasconcelos Alvarez Rodrigues


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