O Papel da Advocacia Solidária na Ampliação do Acesso à Justiça



O PAPEL DA ADVOCACIA SOLIDÁRIA NA AMPLIAÇÃO DO ACESSO À JUSTIÇA  

As Defensorias Públicas, ao cumprirem sua prerrogativa constitucional de assessoramento jurídico dos necessitados, desempenham o relevante papel de ampliadoras do acesso à Justiça no Brasil. 

Não obstante, a demanda de cidadãos sem recursos por serviços de assistência jurídica – seja de natureza consultiva ou contenciosa – é muito superior ao que os quadros das Defensorias (no âmbito federal e estadual) são capazes de oferecer: possuímos, aproximadamente, 2.500 Defensores Públicos no Brasil, para mais de 100 milhões de pessoas que vivem com até três (03) salários mínimos por mês.

Ou seja, muitos brasileiros ficam de fora do nosso sistema jurídico!

Por esta razão, esses brasileiros não conseguem nem mesmo realizar seu direito básico de defender suas pretensões jurídicas, seus direitos.

Na prática, grande parte do povo brasileiro não tem direito a ter direitos, já que não conseguem (i) acessar o Estado-juiz para que tenham reconhecidas suas pretensões (quando precisam ajuizar algum tipo de ação) nem (ii) recorrer a uma assistência jurídica gratuita (quando necessitam de assessoramento especializado).

Em vista disso, os advogados solidários têm muito a contribuir.

1. ADVOGADO: INDISPENSÁVEL À JUSTIÇA

O  acesso à justiça é um direito de todos os cidadãos brasileiros e, para sua materialização,  o advogado tem um papel fundamental, conforme disposto no artigo 133 de nossa Constituição Federal:

“O advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei.”

Na prática, como vimos, o Brasil enfrenta uma demanda por acesso à justiça de proporções homéricas, o que nos impele, ainda mais, a valorizar a atuação solidária dos advogados em prol dos menos favorecidos.

Todavia, não é isso que acontece...

2. SOLIDARIEDADE PROIBIDA

Um dos fatores que concorre para a precarização do acesso à Justiça no Brasil é a proibição expressa da prática da advocacia solidária no país: a profissão de advogado é a única em que o voluntariado é proibido. Noutras palavras, os demais profissionais liberais (que não os advogados) não sofrem restrições dessa monta.

Frise-se o caráter moral da situação em apreço: seria injustificável impedir, e.g., um médico, um psicólogo, ou um psiquiatra de prestar seus serviços gratuitamente às camadas menos favorecidas da população.

Todavia, ao tratarmos dos advogados, criam-se diversos impedimentos para que seus serviços sejam prestados gratuitamente, nas mesmos condições expostas acima.

Isso porque, a partir de uma visão restritiva, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) vem, por meio de seus Tribunais de Ética e Disciplina (TEDs), reiteradamente[1], fixando o entendimento de que o voluntariado é nocivo para a advocacia.

Os TEDs sustentam sua posição  com base em  quatro argumentos:

                                I.       o voluntariado na advocacia “criaria uma concorrência desleal” e geraria “captação de clientela”, pois os advogados com condições de praticar serviços gratuitos acabariam com a demanda dos advogados dativos;

                             II.       a prática do voluntariado “seria desonrosa”, porque  os advogados, após realizarem o devido assessoramento jurídico, devem fazer jus aos honorários (receber pelo assessoramento seria “uma questão de honra”, portanto);

                           III.       praticar advocacia gratuita seria uma “estratégia de marketing das grandes bancas de advocacia que, igualmente, contribuiria para a mercantilização da profissão; e

                           IV.       a advocacia solidária substituiria o Estado na prestação de assistência jurídica aos menos favorecidos.

Pois bem, como veremos a seguir, tais argumentos não subsistem ante uma análise constitucional a respeito da prestação de serviços jurídicos gratuitos aos menos favorecidos.

3. DESMISTIFICANDO OS ARGUMENTOS CONTRÁRIOS À ADVOCACIA SOLIDÁRIA

Repise-se, tais argumentos não tem fundamento  na Constituição Federal de 1988 e são contrariados pela realidade econômica e social da qual faz parte esta grande classe de profissionais.

3. 1. O enorme “gargalo” no atendimento da demanda por assessoramento jurídico dos necessitados

Em primeiro lugar, não procede afirmar que a autorização para a prática da advocacia solidária no Brasil prejudicaria os advogados dativos no desempenho de suas funções ou no seu cotidiano profissional, ou que substituiria o Estado (no caso, as Defensorias Pública) no cumprimento de suas atribuições constitucionais.

Isto porque:  

                                I.       acreditar que as pessoas de um modo geral “se sentem bem” em não pagar por serviços prestados por um advogado, é desconsiderar que tal situação denuncia a falta de recursos dos indivíduos (situação pela qual ninguém se orgulha). Em outras palavras: as pessoas não procuraram assistência jurídica porque são aproveitadoras, mas porque não tem condições financeiras para pagar por serviços de tal natureza, o que ocorre com milhões de brasileiros.

                             II.       desconsidera-se que, no Brasil, como em qualquer outro país de renda média, e, com o agravante de ser uma nação extremamente desigual, a população carente por serviços de assessoramento jurídico é enorme. Ou, como acertada e ironicamente argumenta o Ministro Gilmar Mendes que, no Brasil, não há “pobres suficientes para todos os advogados”.

A título de ilustração, a Tabela 1 indica a composição das faixas de renda da economia brasileira.

Tabela 1 – Estratificação social do Brasil

 

Como se pode observar, grande parte dos cidadãos se localiza nas faixas baixa classe média e massa trabalhadora: são indivíduos que, ainda que menos abastados, consomem, trabalham, moram em algum lugar, têm famílias, se aposentam, etc., e, por esta razão, podem necessitar de assessoramento jurídico quanto a seus direitos do consumidor, trabalhistas, habitacionais, previdenciários (dentre muitos outros), ainda que não tenham recursos para tanto. 

3.2. A liberdade do advogado posta em xeque

Em segundo lugar, a profissão de advogado, como qualquer outra exercida no país, exige remuneração. Ou seja, ainda que, historicamente, o que se deva a advogados, após a prestação de serviços de assessoramento jurídico, sejam “honorários”, trata-se apenas de uma maneira mais elegante de dizermos “preço devido”. Todo advogado tem o seu preço e isto não deve ser causa de vergonha, pois, como os serviços jurídicos são personalíssimos, dependem em grande parte da reputação e do sucesso alcançados pelo advogado ao longo de sua trajetória profissional. Isto não impede, como é prática corriqueira em escritórios, que os valores sejam negociados e que sejam feitos abatimentos de preço.

O que foge à nossa compreensão é a vedação estabelecida pela OAB aos casos em que, diante de situações em que a falta de recursos do cliente é patente, o advogado seja proibido de praticar sua profissão livremente.

Nós, advogados, não podemos optar, livremente, por não cobrar pelos nossos serviços, ainda que aqueles que nos procurem sejam menos favorecidos.

Não seria mais honroso e compatível com a profissão deixar ao arbítrio dos advogados decidir pela prestação de serviços gratuitos nos casos em que verificar a absoluta falta de recursos de seu cliente e sua necessidade por assessoramento jurídico?

3.3. A prática da advocacia solidária como responsabilidade social dos escritórios

Em terceiro lugar, o crescimento da economia brasileira levou à formação e à consolidação das grandes bancas de advocacia no Brasil. Desde os anos 1990, com as privatizações, com a solidificação do mercado de capitais nacional e com a internacionalização das empresas nacionais, a demanda por serviços jurídicos especializados não parou de crescer.

Isto não significou, porém, que os escritórios menores (ou, ainda, aqueles com “perfil de governança familiar”) tenham perdido espaço. Ao contrário, o crescimento da economia beneficiou e vem beneficiando, o mercado de serviços jurídicos como um todo, inclusive dos escritórios menores.

Nesse processo de internacionalização do campo jurídico, sobretudo por influência das grandes bancas de advocacia dos Estados Unidos e da Europa, os grandes escritórios brasileiros, no Estado de São Paulo, vêm se comprometendo em dedicar algumas horas à prestação de advocacia voluntária às entidades do terceiro setor (única situação em que a prática de advocacia solidária é permitida, nos termos da Resolução Pro Bono da OAB/SP[2]).

Tal prática vem sendo enxergada (negativamente) como uma estratégia de marketing dos grandes escritórios, a qual seria ainda mais difundida se o voluntariado fosse autorizado indiscriminadamente e fomentado pela OAB.  

No entanto, tal raciocínio desconsidera que:

                                I.       tal prática é muito saudável para a advocacia, pois gera junto aos escritórios uma competição, via de regra, com escritórios de perfil semelhante em sede de trabalhos sociais, solidários.

                             II.       como consequência, verifica-se  a formação de uma imagem positiva dos escritórios que realizam advocacia solidária. Ou seja,  a quantidade de horas que tais escritórios dedicam à advocacia solidária será positiva tanto para os escritórios, que poderão se promover como “socialmente responsáveis”, como para a sociedade, cujos membros menos favorecidos (instituições ou pessoas físicas) serão beneficiados com serviços jurídicos de qualidade e gratuitos.

 

4. A IMPORTÂNCIA DO ENGAJAMENTO DOS JOVENS EM FAVOR DA ADVOCACIA SOLIDÁRIA

 

Não foi sempre que a advocacia voluntária foi proibida no Brasil.

Pelo contrário, na origem da tradição jurídica brasileira, com a abertura dos primeiros cursos de Direito em território nacional (em Olinda e São Paulo) e da formação dos primeiros juristas pátrios, era muito comum o assessoramento jurídico gratuito a pessoas carentes.

Rui Barbosa, Luiz Gama, Evandro Lins e Silva e outros grandes juristas do país foram entusiastas da prática da advocacia solidária.

Luiz Gama, inclusive, de origem negra e humilde, foi um notável defensor de escravos recém-libertos, destacando-se como uma das maiores personalidades públicas na defesa da causa negra do século XIX no país.

No entanto, com a paulatina ampliação dos cursos de Direito no Brasil (fato notório e amplamente difundido), o que se observou foi uma mudança radical na interpretação sobre o papel que o advogado teria a desempenhar na sociedade brasileira: os antigos aliados da Justiça, prestadores de serviços públicos da maior relevância (para cidadãos, com condições econômicas - ou não - de pagar pelos serviços prestados) passaram a ser vistos com desconfiança, como sujeitos auto-interessados, com a preocupação central de ganhar mercado a qualquer custo.

Tal postura somente começou a se alterar no Brasil a partir do final do século XX e início da década passada, quando um grupo de juristas, unidos em torno da causa pro bono, fundaram na cidade de São Paulo o Instituto Pro Bono (IPB).

O IPB celebrou em 2011 dez anos de sua fundação e, desde 2002, quando contribuiu decisivamente para a edição da “Resolução Pro Bono”, vem desempenhando o importante papel de sensibilização da comunidade jurídica, em especial de alguns membros dos conselhos e comissões da OAB pelo país.

Não obstante, é premente:

                                I.       sensibilizar o público universitário (alunos de Direito que constituem o futuro da profissão de advogado no país) acerca do caráter perverso e equivocado da atual regulação do voluntariado na advocacia que, na prática, veda a prestação da advocacia solidária aos que mais dela necessitam; e

                             II.       como consequência, tornar público o debate acerca sobre as restrições que existem ao livre exercício da advocacia solidária, colaborando para o aprofundamento intelectual dos argumentos que defendem uma e outra posição.

 

5. PERSPECTIVAS

A advocacia solidária é um tema riquíssimo, que deve ser estimado por todo e qualquer profissional do direito, em decorrência da importante função social que cumpre.

Outrossim, faz-se mister uma sensibilização (constante) do público jovem, futuros operadores do Direito, tendo como norte a ideia de que o advogado solidário, e não apenas o advogado de um modo geral, como sugeriu o Presidente da OAB/SP, Luiz Flávio Borges D’Urso, em artigo veiculado recentemente na Folha de S. Paulo[3], deve ser compreendido como um aliado do desenvolvimento do país.


[1] A título de ilustração, vale destacar a recente ementa do TED da OAB/SP: "Advogado de ONG não pode atender os necessitados com base na Resolução Pro Bono. A Resolução Pro Bono destina-se, exclusivamente, a pessoas jurídicas sem fins lucrativos. Advogar na ONG, para seus associados, pode ser interpretado como benemerência travestida de captação de clientela, concorrência desleal, práticas condenadas pelo Estatuto da Advocacia e pelo Código de Ética e Disciplina. Deverão os hipossuficientes necessitados de assessoria jurídica ser encaminhados aos inúmeros serviços gratuitos existentes, como o Convênio OAB/PGE, existente em todo o Estado de São Paulo, os Centros Acadêmicos das diversas faculdades de Direito, a Procuradoria Geral do Estado e a Defensoria Pública do Estado de São Paulo (Proc. E- 4.0852011 - v.u., em 15/12/2011, do parecer e ementa da Rel. Dra. MARCIA DUTRA LOPES MATRONE - Rev. Dr. FABIO KALIL VILELA LEITE, Presidente Dr. CARLOS JOSÉ SANTOS DA SILVA)."

[2] A Resolução Pro Bono da OAB/SP dispõe em seu artigo segundo que: “Os beneficiários da atividade pro bono devem ser pessoas jurídicas sem fins lucrativos integrantes do terceiro setor, reconhecidas e comprovadamente desprovidas de recursos financeiros, para custear as despesas procedimentais, judiciais ou extrajudiciais.”

[3] D’URSO, Luiz Flávio Borges, “Sem advogado não há justiça”, in: Folha de S. Paulo, p. A3, de 19/02/2012.

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