A Soberania dos veredictos do Tribunal do Júri em face a incidência do princípio da “ne reformatio in pejus” indireta.



A Soberania dos veredictos do Tribunal do Júri em face a incidência do princípio da “ne reformatio in pejus” indireta.

Diego Francisco dos Santos Oliveira[1]

RESUMO: O presente busca demonstrar o aparente conflito entre o princípio da soberania dos veredictos do Tribunal do Júri e o princípio da “ne reformatio in pejus” . Tratando de um problema de natureza prática o trabalho demonstra a incidência do princípio sem que haja ofensa a soberania dos veredictos do Júri. Primeiramente são abordados os aspectos históricos do Tribunal do Júri fazendo-se uma apresentação do instituto. Após passamos a uma análise de cada um dos princípios inerentes ao Sodalício Popular e por fim, a um confronto direto entre a vedação da reforma para pior em recurso exclusivo da Defesa e a Soberania dos Veredictos do Tribunal do Júri.

PALAVRAS-CHAVE: Tribunal do Júri; Soberania dos Veredictos. Ne reformatio in pejus.

INTRODUÇÃO

O Tribunal do Júri, instituição determinada pela Constituição Federal para processar e julgar os crimes dolosos contra a vida tem seu procedimento descrito nos artigos 406 a 497 do Código de Processo Penal que regula atos, atribuições e competências. A Constituição Federal de 1988 deu ao procedimento especial do Júri suas estruturas básicas, definindo a sua competência (art. 5º, XXXVIII d), bem como princípios basilares: plenitude de defesa, (art. 5º, XXXVIII, a), o sigilo das votações (art. 5º, XXXVIII, b) e a soberania dos veredictos (art. 5º, XXXVIII, c).

No que diz respeito à soberania dos veredictos, princípio constitucional com força de cláusula pétrea de acordo com o disposto no inciso IV do §4º art. 60 CF, este determina a prevalência da decisão dos jurados, que ao julgar o fato criminoso têm sua decisão intacta não sofrendo qualquer interferência do magistrado. Contudo, seria equivocado imaginarmos que a soberania dos veredictos veda qualquer revisão da decisão. O legislador processual garantiu a interposição de recurso sendo que o Tribunal de Justiça não poderá adentrar o mérito da decisão, mas apenas determinar um novo julgamento.

 E é nesse ponto que nasce o problema que pretendemos analisar: Em novo julgamento perante o júri popular em recurso exclusivo da defesa poderá o réu sofrer pena mais gravosa que a anteriormente determinada?

O art. 617 do código de Processo penal consagra o princípio da “ne reformatio in pejus”  que significa a vedação de reforma para pior. Não poderá a nova decisão piorar a situação do acusado quando apenas este interpôs recurso. Admitir o contrário seria criar um mecanismo que inibiria a interposição de recursos pelas partes prejudicadas na decisão, limitando de forma direta o exercício do duplo grau de jurisdição, garantia estabelecida pela Constituição Federal.

Diante desse problema prático, de larga discussão doutrinária e jurisprudencial, pretendemos demonstrar a incidência da ne reformatio in pejus em sua forma indireta no procedimento do Tribunal do Júri a partir de uma análise de cada um dos princípios bem como da própria instituição do Júri Popular.

  1. 1.      Tribunal do Júri: história e características

 

1.1 Aspectos históricos

Não há um registro concreto do surgimento do Tribunal do Júri, sendo vaga e imprecisa as suas origens. Alguns autores remontam o instituto à Antiguidade, mais precisamente à Grécia e a Roma, mas no mundo moderno o Júri Popular teve sua primeira aparição em 1215 na Magna Carta da Inglaterra. A idéia contida na Magna carta inglesa era de que nenhum cidadão poderia ser preso ou perder a posse de seus bens se não for julgado por seus pares. Nesse ponto, percebemos que o julgamento pelo Júri Popular está intimamente ligado a idéia de devido processo legal.[2]

Séculos depois o júri foi instalado na França após a Revolução Francesa, como um sinal de liberdade e democracia, tendo em vista o momento histórico vivido pelos franceses de quebra com o regime absolutista.

No Brasil, o Tribunal do Júri foi inserido através de decreto no ano de 1822, acompanhando a expansão do instituto pelo mundo. A competência do tribunal era julgar os crimes de abuso da liberdade de imprensa, sendo composto por 24 cidadãos que tinham a sua decisão revista apenas pelo Príncipe Regente.[3]

A partir daí, o júri popular passou a oscilar dentro do sistema jurídico brasileiro, sendo consagrado na maioria das constituições, mas retirado pela constituição de 1937; e julgando crimes de imprensa no início, depois causas cíveis ou criminais, até a atual competência de julgar os crimes dolosos contra a vida.

1.2 Características do Tribunal do Júri

O Tribunal do Júri tem por fundamento a defesa do direito de liberdade. O legislador ao determinar que este julgasse os crimes dolosos contra a vida retirando esta competência do juiz togado, profissional, e a priori dotado de uma capacidade técnica jurídica, protegeu o direito a liberdade do cidadão, tendo em vista que as decisões dos jurados são apenas decisões de consciência, sendo desnecessária qualquer fundamentação.

O Júri Popular tem por característica ser um órgão colegiado e heterogêneo.[4] É colegiado à medida que sua decisão não parte de um indivíduo singular, mas do voto proferido por sete jurados que compõem o chamado Conselho de Sentença; e heterogêneo por ser composto por 25 jurados e um juiz togado que irá presidir a sessão plenária e fixar a pena do réu condenado.

Outro aspecto singular do Tribunal do Júri é que este possui um procedimento bifásico: a primeira etapa, denominada de judicium accusationis se caracteriza pela formação da culpa do acusado. Nesse momento, por meio de um juiz singular, são colhidas provas que irão formar a convicção do magistrado de que há indícios suficientes de autoria e materialidade que possibilitem a remessa da ação penal para julgamento em Plenário, fato este que se dá com a pronúncia do réu.

O Código de Processo Penal em seu art. 413 determina que o juiz de forma fundamentada pronunciará o acusado se convencido da materialidade do fato e da ocorrência de indícios suficientes de autoria. Contudo, na doutrina de Fernando da Costa Tourinho Filho não cabe apenas que o juiz se convença da existência de indícios, mas que esteja plenamente convicto de que o acusado foi o autor do crime. Nas palavras do mestre Tourinho:

“Não faz sentido o Juiz da pronúncia, por comodismo ou coisa que o valha, limitar-se a dizer: ‘como o Tribunal popular é o Juiz natural da causa nos crimes dolosos contra a vida, caber-lhe-á, às inteiras, constatar se há ou não esses indícios’. Ora, essa função é do próprio Juiz togado. Ele somente poderá determinar seja o réu julgado pelo Tribunal do Júri se estiver convencido, ante indícios suficientes, de ter sido o réu o autor do crime.” [5]

No entanto, é corriqueiro nos Tribunais de todo o país decisões em que os magistrados, nesta fase do processo, invocam o princípio do in dubio pro societate alegando que neste caso o Tribunal popular é o juiz natural da causa e sobre ele deve se manifestar a respeito, realizando mero juízo de admissibilidade. Como prova dessa prática corrente, destacamos algumas jurisprudências:

EMENTA: RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. HOMICÍDIO DOLOSO. PRONÚNCIA. ALEGAÇÃO DE LEGÍTIMA DEFESA. AUSÊNCIA DE PROVA CONTUNDENTE DA EXCLUDENTE DE ILICITUDE. IN DUBIO PRO SOCIETATE. SENTENÇA MANTIDA. RECURSO IMPROVIDO. A PRONÚNCIA É SIMPLES JUÍZO DE ADMISSIBILIDADE DA ACUSAÇÃO, COM O FIM ÚNICO DE SUBMETER O RÉU A JULGAMENTO PELO TRIBUNAL DO JÚRI, EM OBEDIÊNCIA ATÉ MESMO AO PRINCÍPIO IN DUBIO PRO SOCIETATE, OU SEJA, EM CASO DE DÚVIDA O FEITO DEVE SER SUBMETIDO AO CONSELHO DE SENTENÇA, COMO NO CASO EM EXAME ONDE HÁ DÚVIDA SOBRE A EXCLUDENTE DE LICITUDE, CABENDO AO TRIBUNAL POPULAR A SUA APRECIAÇÃO. (TJBA. RESE 57775-2/2007. PRIMEIRA CÂMARA CRIMINAL, Rel. Des. Emílio Salomão Pinto Reseda)

EMENTA: RECURSO EM SENTIDO ESTRITO - PRONÚNCIA - HOMICÍDIO DUPLAMENTE QUALIFICADO - INCIDENTE DE INSANIDADE MENTAL - NÃO OBRIGATORIEDADE - POSSIBILIDADE DE REALIZAÇÃO NA FASE DE DILIGÊNCIAS DO ART. 422 DO CPP - NULIDADE DA SENTENÇA - NÃO OCORRÊNCIA - INEXISTÊNCIA DE PREJUÍZO PARA A DEFESA - PRESENTES OS INDÍCIOS DE MATERIALIDADE E DE AUTORIA - RECURSO NÃO PROVIDO. - Não se decreta a nulidade da sentença quando inexiste prejuízo às partes. - A instauração do incidente de insanidade mental tem sua realização condicionada à discricionariedade do Juiz ''a quo'', que estabelece um JUÍZO de necessidade da sua realização, ou não. - O art. 422 do CPP prevê a possibilidade de realização de diligências na fase de preparação do processo para o seu julgamento em plenário, inclusive, no que diz respeito à instauração de incidente de insanidade mental. - Nos termos do art. 413 do CPP, para a DECISÃO de PRONÚNCIA, que sempre deverá apresentar-se motivada, basta o convencimento do julgador acerca da existência do crime e de indícios da autoria. - O princípio a ser aplicado nesta fase processual é o ''IN DUBIO PRO SOCIETATE'', e não o ''IN DUBIO PRO reo''. Destarte, para a aludida DECISÃO é suficiente a existência de indícios, uma vez que a PRONÚNCIA não se traduz em julgamento, mas, sim, em mero JUÍZO de ADMISSIBILIDADE da acusação. RECURSO NÃO PROVIDO. (TJMG RESE 0016236-29.2010.8.13.0034, Rel. Des. Evandro Lopes da Costa Teixeira)

Quanto a este posicionamento é lamentável verificarmos a sua prática nos Tribunais do país. Num ordenamento jurídico em que adotamos o princípio da presunção de inocência, falarmos em in dúbio pro societate é irmos de encontro aos princípios e garantias resguardados pela Constituição Federal. [6]

A partir da decisão de pronúncia e remetido os autos para o julgamento em Plenário, inaugura-se uma nova fase nesse procedimento especial do Júri, onde o acusado finalmente será julgado pelo tribunal popular. O Tribunal do Júri será composto por vinte e cinco jurados mais o Juiz Presidente. Desses vinte e cinco jurados, sete são sorteados para formar o Conselho de Sentença que irá decidir a causa com base pura e simplesmente na sua consciência.

A liberdade de decisão do Conselho de Sentença é tamanha que, mesmo reconhecendo que o acusado ali presente é autor do fato criminoso, os jurados podem absolver o réu, de acordo com o quesito obrigatório do § 2º do art. 483 CPP onde o Juiz deverá perguntar: “O jurado absolve o réu?”

No entanto, com o intuito de frear a atuação do Conselho de Sentença, o legislador processual determinou a possibilidade de ocorrência de novo júri, quando em apelação, o Tribunal de Justiça reconhecer que os jurados decidiram de forma manifestamente contrária à prova dos autos de acordo com o § 3º do art. 593 do CPP. Para nós, tal parágrafo com redação determinada pela Lei nº. 263 de 23.02.1948 não foi recepcionado pela Constituição Federal; mas trataremos deste assunto em item apropriado mais à frente.

Iniciada a sessão plenária, temos o interrogatório do acusado, o depoimento de testemunhas e demais produção de provas, além dos debates entre Acusação e Defesa, que tentarão cada um com suas teses, convencer os jurados pela condenação ou absolvição do réu.

Como este trabalho não tem o objetivo de se aprofundar nas características do Júri, acreditamos ser possível, após termos traçado as linhas gerais do instituto, passar a análise dos princípios que constituem as vigas mestras deste Tribunal.

2. Os princípios constitucionais do Tribunal do Júri

Os princípios são a pedra de toque de qualquer ordenamento que se intitule um Estado Democrático de Direito e na atual conjuntura do ordenamento jurídico em que vivemos os princípios possuem cada vez mais força, sendo as vigas mestras do sistema.

O Tribunal do Júri tem como princípios basilares expressos na Constituição Federal: a plenitude de defesa; o sigilo das votações; e a soberania dos veredictos. No entanto, antes de passarmos a analisar cada um destes princípios – e em especial a soberania dos veredictos -, vamos primeiro conceituar o que vem a ser princípio.

2.1 O conceito de princípio

Fazendo uma análise pura do vernáculo, perceberemos que princípio diz respeito ao início de todas as coisas, a origem, o que serve como base de algo, um preceito, uma regra. No Direito muitos são os desdobramentos sobre o tema, trazendo uma gama de conceitos e perspectivas. De forma clara e precisa, ficamos com o conceito de Leo Van Holthe que define os princípios do Direito da seguinte forma:

“Princípio jurídico é o mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce do arcabouço legal de um Estado. Os princípios são a base das normas jurídicas, influenciando sua formação, interpretação e integração e dando coerência ao sistema normativo[7]”

Percebemos pelo conceito acima a suma importância dos princípios, pois estes servem como orientadores de todo o sistema jurídico.

A doutrina costuma ainda dividir os princípios em duas classes: princípios político-constitucionais e princípios jurídico-constitucionais. Os princípios político-constitucionais correspondem às decisões políticas fundamentais e no nosso ordenamento são encontrados nos arts. 1º ao 4º da carta magna, estabelecendo os fundamentos, poderes, objetivos e princípios nas relações internacionais. Quanto aos princípios jurídico-constitucionais, são os princípios gerais que decorrem das normas constitucionais e são informadores da ordem jurídica de um Estado.[8]

Diante de tais conceitos, cabe agora partirmos a uma breve análise sobre os princípios regentes do Tribunal do Júri expressos na Constituição Federal, começando pela plenitude de defesa; passando pelo sigilo das votações; e por fim, à soberania dos veredictos a qual daremos especial atenção, tendo em vista ser parte essencial da nossa discussão.

2.2 O Princípio constitucional da Plenitude de Defesa

A Constituição Federal determinou que para os acusados em geral é garantida a ampla defesa, contudo, o Constituinte estabeleceu que para os réus do Tribunal do Júri é garantida a plenitude de defesa. Pois bem, defesa ampla e plena são diferentes, não devendo o estudioso do ordenamento jurídico acreditar que o Constituinte utilizou expressões diversas, mas com o mesmo sentido.

Merece destaque a desigualdade dos termos estabelecida por Nucci ao tratar da dessemelhança entre plenitude de defesa e ampla defesa:

“Os vocábulos são diversos e também o seu sentido. Amplo quer dizer vasto, largo, muito grande, rico abundante, copioso; pleno significa repleto, completo, absoluto, cabal, perfeito. O segundo é, evidentemente, mais forte que o primeiro.[9]”

Tal diferença faz sentido, tendo em vista que no procedimento comum a decisão cabe ao magistrado togado que deve fundamentar a sua decisão com base nos preceitos legais. Contudo, no Júri Popular, os jurados decidem com base em sua pura consciência não motivando qualquer voto que venha a proferir. Assim, a defesa nesses casos deve ser plena, o mais próxima do perfeito possível.

Do princípio da plenitude de defesa decorrem diversos efeitos, entre eles: a possibilidade de inovação por parte da defesa em suas teses na tréplica, não sendo tal situação caracterizada como ofensa ao contraditório; o juiz poderá considerar o réu indefeso e dissolver o Conselho de Sentença caso avalie que a defesa em Plenário é tecnicamente insuficiente; e, sendo estritamente necessário, o magistrado poderá dilatar o tempo de exposição da tese defensiva sem que isso enseje a mesma possibilidade para o Ministério Público.[10]

2.3 O sigilo das votações

O sigilo das votações no Tribunal do Júri está ligado ao voto dos jurados e ao local de votação[11].  Tal princípio visa garantir que os jurados possam julgar de forma livre, conforme a sua consciência e sem expor o seu voto o que poderia comprometer a sua imparcialidade.

Para que se mantenha o sigilo da votação o registro dos votos de cada quesito ocorre até o 4º SIM ou NÃO. Isso impossibilita que seja divulgada a ocorrência de unanimidade o que quebraria o sigilo da votação. Caso o magistrado divulgasse o placar de 7 X 0 todos os presentes à votação saberiam o voto dos jurados.

Quanto ao sigilo sobre o local de votação este é necessário para que não haja pressão ou intimidação aos jurados. De acordo com o procedimento adotado pelo CPP no art. 483 e seguintes, os jurados, o juiz, o membro do Ministério Público, o advogado de defesa, o assistente de acusação – se houver –, e os serventuários da justiça se dirigirão à sala secreta para que ocorra a votação.

No nosso entendimento e de forma geral na doutrina, não há divergência entre o sigilo das votações e o princípio da publicidade também insculpido na Constituição Federal. Cabe destaque o entendimento de Antônio Scarance Fernandes:

“O sigilo das votações não ofende a garantia constitucional da publicidade. Além de estar previsto na própria Constituição, justifica-se como medida necessária para preservar a imparcialidade do julgamento, evitando-se influência sobre os jurados que os impeça de, com liberdade, manifestar seu convencimento pela votação dos quesitos[12]”

Como já explanado, o sigilo das votações é imprescindível para garantir o julgamento dos jurados com base em sua livre consciência, sem receios de represálias, ameaças etc.

O próprio ordenamento jurídico determina que em casos especiais visando garantir a defesa da intimidade ou quando o interesse social exigir, poderá ser restringida a publicidade e o processo correrá em segredo de justiça. O sigilo das votações é de total interesse público e seguindo o brocardo quem pode o muito, pode o pouco evidente que não há qualquer problema no sigilo das votações em Plenário do Júri.

2.4 A soberania dos veredictos

Princípio máximo que garante a força do Tribunal do Júri, a soberania dos veredictos determina que as decisões proferidas pelos jurados prevalecerão e não poderão ser reformadas por qualquer outro órgão, seja o juiz singular ou o Tribunal de Justiça.

O princípio da soberania dos veredictos é basilar para o Júri, intrínseco ao próprio instituto, pois se os jurados pudessem ter suas decisões modificadas por um magistrado ou pelo Tribunal, o Júri Popular consequentemente perderia qualquer sentido.

Sua estréia em nosso ordenamento ocorreu com a Constituição de 1946, permaneceu na Constituição de 1967, mas a Emenda I, de 1969 que conservou o Tribunal do Júri, não se referiu ao princípio em apreço[13]. O Constituinte tratou de trazer expresso a soberania dos veredictos na Carta de 1988.

No entanto, apesar da força de tal princípio, entendemos que este é violado no Código de Processo Penal pelo seu art. 593, inciso III, d, c/c § 3º do próprio artigo 593 CPP. Determina tais dispositivos que, haverá recurso de apelação caso a decisão dos jurados for manifestamente contrária à prova dos autos, podendo o Tribunal de Justiça submeter o réu a novo júri caso julgue que a decisão dos jurados foi contrária à prova.

A doutrina é pacífica quanto a ausência de ofensa ao princípio da soberania dos veredictos quando o Tribunal determina um novo júri por decisão contrária à prova, afirmando que não há ofensa devido ao fato que o Tribunal não modifica a decisão, condenando ou absolvendo o réu[14]. Já Guilherme de Souza Nucci acredita que nesses casos o Tribunal só deve agir excepcionalmente limitando-se a confrontar às provas com o veredicto dos jurados, verificando a harmonia ou desarmonia entre elas.[15]

No nosso entendimento, não há argumentos ou flexibilidade nesta questão. É lógico que, ao avaliar as provas nos autos está o Tribunal adentrando, mesmo que de forma indireta, o mérito da decisão. Para que tal argumentação se torne evidente, façamos o seguinte raciocínio: os jurados, para condenarem ou absolverem o réu, formarão sua convicção com base nas provas que lhe são apresentadas, bem como nos argumentos criados por Acusação e Defesa sobre essas provas. Pois bem, se o Tribunal afirma que a decisão dos jurados foi manifestamente contrária à prova dos autos está tomando a posição dos jurados e dizendo que sua decisão carece de sentindo, criando um juízo de valor sobre os elementos probatórios do processo.

E podemos ir um pouco mais longe: se o Tribunal afirma que aquela decisão foi contrária à prova dos autos, está insinuando que, a decisão contrária à adotada pelos jurados é a que faz sentido; afinal, o júri ou condena ou absolve. Se algum tribunal afirma que ao absolver os jurados julgaram de forma manifestamente contrária, está afirmando que com base nas provas a decisão coerente seria a condenação.

Apesar de tais argumentos, a doutrina em sua grande maioria continua afirmando que não há qualquer interferência do Tribunal na soberania dos jurados. Tal questão é polêmica, envolvendo diversos argumentos e enseja uma pesquisa própria. Dessa forma, vamos nos ater ao explanado acima e voltar à base desse item.

Conforme demonstrado, a soberania dos veredictos do Tribunal do Júri deve ser preservada ao máximo possível, sob pena de interferir na própria essência do instituto. Assim sendo, o que fazer nos casos em que há novo júri? Estaria o Conselho de Sentença submisso a anterior decisão em respeito ao princípio da “ne reformatio in pejus?” Mas devido a soberania do Tribunal do Júri, não estaria o novo corpo de jurados livre para apreciar a causa?

Antes de respondermos tais perguntas, vejamos primeiro, em linhas gerais, no que consiste a vedação da “reformatio in pejus indireta”.

3. A vedação da “ reformatio in pejus indireta”

A “ne reformatio in pejus” é expressão que indica a proibição de reforma para pior. Não pode haver, em recurso exclusivo da defesa, a agravação da pena anteriormente imposta, ou seja, na apelação interposta pelo réu não poderá o magistrado piorar a sua situação. Tal vedação encontra-se expressa no art. 617 do Código de Processo Penal brasileiro.

A proibição da reformatio in pejus decorre de dois princípios constitucionais: a ampla defesa e o duplo grau de jurisdição, isto porque, se o acusado apelante pudesse ter a sua situação agravada, sentir-se-ia inibido em recorrer.[16] Com o receio de ter a decisão contra si agravada, surgiria no réu o temor razoável de não apelar da decisão, inibindo assim o seu direito de ter a sentença contra si revisada.

Vimos assim o princípio da ne reformatio in pejus em sua forma direta. Já a ocorrência da vedação para pior se dá de forma indireta quando é declarada nula a decisão anterior, conduzindo o réu a novo julgamento; ou quando o Tribunal de Justiça decide pela ocorrência de novo Júri.

Diante da situação exposta, percebemos que a nova decisão não poderá ser mais gravosa. Contudo, o que dizer dos processos de competência do Tribunal do Júri? Em caso de novo júri, está o conselho de Sentença livre para apreciar a causa ou deve submeter-se ao princípio da “ne reformatio in pejus”? E quanto a soberania dos veredictos, não deveria nesses casos prevalecer sobre a vedação de decisão mais gravosa?

4. A aplicação da ne reformatio in pejus no Tribunal do Júri.

É polêmica na doutrina a discussão a respeito da aplicação da ne reformatio in pejus no procedimento do Júri. Até mesmo nossos tribunais superiores não possuem um entendimento consolidado a respeito da questão. No entanto, apesar das divergências há um ponto em comum: a soberania dos veredictos deve ser mantida.

É pacífico o entendimento de que o Conselho de Sentença que apreciar novamente a causa está livre para julgar o crime, apontando a ocorrência de novas qualificadoras ou até mesmo dando ao fato tipicidade jurídica diversa. A questão diverge quanto à atuação do magistrado na causa.

Isto porque, no nosso entendimento, o magistrado como o aplicador da sanção penal deverá se submeter a ne reformatio in pejus. A competência de fixar a pena cabe ao Juiz Presidente e este, em respeito ao princípio em análise, não poderá piorar a situação do acusado, dando-lhe pena mais gravosa em recurso exclusivo da defesa ou por nulidade da sentença anteriormente proferida.

Porém, grande parte da doutrina defende a não ocorrência da ne reformatio in pejus em favor da soberania dos veredictos. Eugênio Pacelli de Oliveira afirma que a soberania dos veredictos do júri constitui obstáculo para a proibição da reformatio in pejus e que a nova decisão poderá agravar a situação do réu.[17] Seguindo a mesma esteira de pensamento, destacamos o entendimento de Edilson Mougenot Bonfim, para quem “o veredicto dos jurados, em razão de sua soberania, também não sofrerá limitação, pois têm plena liberdade para julgar”[18];  Nestor Távora e Rosmar Rodrigues Alencar também seguem a mesma linha de pensamento.[19]

Também é maioria entre os doutrinadores supra citados o entendimento de que o juiz só está vetado de aplicar pena superior quando o Conselho de Sentença decidir da mesma forma que o anterior Júri decidira, devendo o magistrado nesse caso não aplicar pena mais gravosa.

Parece-nos equivocado, com todo o respeito a estes nobres doutrinadores do Direito Processual Penal, que a vedação da reforma para pior só possa ser aplicada neste caso, em respeito à soberania dos veredictos. Entendemos que o cerne do problema é o conflito entre dois princípios, mas tal conflito é apenas aparente, se compreendermos que quem está obrigado a ne reformatio in pejus é o magistrado ao aplicar a pena e não o Conselho de Sentença ao decidir sobre a condenação; afinal, o que vai agravar concretamente a situação do réu é o quantum de pena que lhe é imposto.

Compartilhando de tal entendimento, está a doutrina de Guilherme de Souza Nucci. Para o notável processualista havendo condenação em novo julgamento pelo Tribunal do Júri a pena não poderá ser maior à da decisão que fora anulada.[20] Segue o referido autor afirmando ainda que, embora deva ser respeitado o princípio da soberania dos veredictos, deve ser levado em consideração também o princípio constitucional da ampla defesa, com os recursos a ela inerentes e não aplicar a ne reformatio in pejus no âmbito do Júri Popular não seria garantir uma ampla defesa[21].

Na verdade, vamos além do magistrado paulista e afirmamos que, no caso do júri, mais que ampla defesa, esta deve ser plena, não apenas no âmbito da sessão plenária, mas também no decorrer de todo o procedimento. Por isso, ao invés de falarmos em garantir a ampla defesa com a vedação da reforma para pior, devemos falar em efetivação do princípio da plenitude de defesa, já abordado neste trabalho.

A divergência, no entanto, não está restrita ao campo doutrinário, mas também ao jurisprudencial. O Superior Tribunal de Justiça, seguindo a doutrina majoritária, decidiu pela inaplicabilidade do princípio no Tribunal do Júri, conforme destacamos no julgamento do HC 37101/PR:

“EMENTA: HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. CRIME DO HOMICÍDIO QUALIFICADO (ART. 121, §2º, IV, DO CP). RÉU SUBMETIDO A DOIS JULGAMENTOS PELO TRIBUNAL DO JÚRI, AMBOS ANULADOS. REFORMATIO IN PEJUS INDIRETA.

POSSIBILIDADE. SOBERANIA DO JÚRI POPULAR.

1. O princípio da ne reformatio in pejus indireta - isto é, a imposição de pena mais grave, após a decretação de nulidade da sentença, em apelo exclusivo da defesa -, não tem aplicação nos julgamentos realizados pelo Tribunal do Júri, eis que, em face da soberania dos veredictos, pode o Conselho de Sentença proferir decisão que agrave a situação do réu (precedentes do STF e STJ);

2. Ordem denegada. [22]

Contrariamente ao entendimento do STJ o Supremo Tribunal Federal, por meio do Min. Cezar Peluso já decidiu de forma contrária em HC 89. 544/RN:

EMENTA: AÇÃO PENAL. Homicídio doloso. Tribunal do Júri. Três julgamentos da mesma causa. Reconhecimento da legítima defesa, com excesso, no segundo julgamento. Condenação do réu à pena de 6 (seis) anos de reclusão, em regime semi-aberto. Interposição de recurso exclusivo da defesa. Provimento para cassar a decisão anterior. Condenação do réu, por homicídio qualificado, à pena de 12 (doze) anos de reclusão, em regime integralmente fechado, no terceiro julgamento. Aplicação de pena mais grave. Inadmissibilidade. Reformatio in peius indireta. Caracterização. Reconhecimento de outros fatos ou circunstâncias não ventilados no julgamento anterior. Irrelevância. Violação conseqüente do justo processo da lei (due process of law), nas cláusulas do contraditório e da ampla defesa. Proibição compatível com a regra constitucional da soberania relativa dos veredictos. HC concedido para restabelecer a pena menor. Ofensa ao art. 5º, incs. LIV, LV e LVII, da CF. Inteligência dos arts. 617 e 626 do CPP. Anulados o julgamento pelo tribunal do júri e a correspondente sentença condenatória, transitada em julgado para a acusação, não pode o acusado, na renovação do julgamento, vir a ser condenado a pena maior do que a imposta na sentença anulada, ainda que com base em circunstância não ventilada no julgamento anterior.[23]

A Corte Suprema foi unânime nesta decisão seguindo o voto do relator Min. Cezar Peluso que de forma categórica afirmou a impossibilidade de imputação de pena maior mesmo com a ocorrência de nova circunstância não mencionada no Júri anterior.

Apesar da polêmica discussão, não há como desconsiderarmos o entendimento da aplicação da ne reformatio in pejus indireta no procedimento do Tribunal do Júri, afirmando ainda que, quem está submetido a tal vedação é o magistrado Presidente do Júri na aplicação da pena e não o Conselho de Sentença.

5. Conclusão

Após considerações explanadas ao longo deste trabalho, chegamos à conclusão de que é possível a incidência da ne reformatio in pejus indireta no procedimento do Tribunal do Júri, desde que essa se aplique ao juiz presidente quando este for fixar a pena.

Chegamos a esse entendimento ao levarmos em consideração que não há que se falar em ofensa à soberania dos veredictos do Tribunal do Júri, pois este está livre para apreciar o mérito, de acordo com o citado princípio constitucional; mas a aplicação da pena não deverá ser superior à imputada anteriormente.

Entendemos que os princípios constitucionais devem ser integrados para a melhor aplicação do Direito e realização da justiça na sociedade, por isso, visamos harmonizar o princípio da soberania dos veredictos com a plenitude de defesa – e não a ampla defesa –, e o duplo qual de jurisdição; dos quais decorre a vedação da reforma para pior.

Apesar de a doutrina majoritária pensar o contrário e do equilíbrio das interpretações jurisprudenciais, afirmamos que o caminho a ser seguido no caso concreto deve ser este, como forma de dar ao cidadão, réu no processo penal, uma justiça equânime e garantista.


[1] Graduando de Direito da Faculdade Social

[2] NUCCI, Guilherme de Souza. Tribunal do Júri Ed. Revista dos Tribunais, São Paulo 2008 p. 41 e 42

[3] Ibidem, p. 43

[4] BONFIM, Edilson Mougenot. Curso de Processo Penal, 4ª edição. Ed. Saraiva, 2009, p. 495

[5] TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de Processo Penal, 13ª edição. Ed. Saraiva, São Paulo 2010 p. 739.

[6] TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de Processo Penal, 13ª Edição. Ed. Saraiva, São Paulo 2010 p. 740

[7] VAN HOLTHE, Leo. Direito Constitucional 5ª Edição. Ed. JusPodivm, Salvador, 2009 p. 77.

[8] SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo 29ª Edição. Ed. Malheiros, São Paulo, 2007 p. 93

[9] NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal. 6ª edição. Ed. Revista dos Tribunais 2010 p. 83

[10] Ibidem p. 83 e 84

[11] TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de Direito Processual Penal

[12] FERNANDES, Antônio Scarance. Processo Penal Constitucional 5ª Edição. Ed. Revista dos Tribunais, São Paulo 2007, p. 188

[13] Ibidem p. 189

[14] TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de Direito Processual Penal p. 747

[15] NUCCI, Guilherme de Souza. Tribunal do Júri. Ed. Revista dos Tribunais, São Paulo 2008, p. 395.

[16] BONFIM, Edilson Mougenot. Curso de Processo Penal. 4ª edição. Ed. Saraiva. São Paulo 2009 p. 699

[17] OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 13ª edição. Ed. Lumen Juris, Rio de Janeiro 2010 p. 843.

[18] BONFIM, Edilson Mougenot. Curso de Processo Penal. 4ª edição. Ed. Saraiva, São Paulo 2009 p. 701.

[19] TÁVORA, Nestor. ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de Direito Processual Penal.

[20] NUCCI, Guilherme de Souza. Codigo de Processo Penal comentado. 9ª edição. Ed. Revista dos Tribunais, São Paulo 2009 p. 994.

[21] Ibidem.

[22] HC 37.101/PR. 6ª Turma, rel. Ministro Hélio Quaglia Barbosa, 19/05/2005. RSTJ vol. 196 p. 582

[23] HC 89.544/RN 2ª Turma, rel. Ministro Cezar Peluso, 14/04/2009


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