A Criação Do Purgatório Pela Igreja Para Reconhecimento Do Capitalismo Na Idade Média



Jacques Le Goff é um dos fundadores da Nova história e publicou livros sobre estudos medievais, entre eles “Por uma outra Idade Média” (1977); “O Nascimento do Purgatório” (1981); “O Imaginário Medieval” (1985); “A Nova História” (1978) e “Os Intelectuais na Idade Média” (1988). Em seus trabalhos Le Goff afirma que o nascimento oficial do purgatório ocorreu em fins do século XII, como uma possibilidade de salvação para o usurário, legitimando seu espaço na nova sociedade que se formava. Esse processo de gestação, segundo ele, deu-se através do encontro da cultura erudita com a cultura popular, criando condições de aceitação da nova organização econômica do ocidente: o capitalismo.

Nos compêndios didáticos utilizados no ensino, o surgimento do capitalismo é tratado como ocorrência do final do séc. XIV e começo do séc. XV. Segundo Le Goff, essa concepção tem resquícios da ideologia cristã medieval a qual contribuiu para o reconhecimento tardio do capitalismo. No inicio do séc XII, nas raízes do capitalismo, os processos de acumulação de riquezas monetárias ainda não podiam ser vistos como manifestações econômicas, tanto pela oposição da igreja, quanto pela pouca aceitação social.

Para Le Goff, o fenômeno da usura foi tanto econômico quanto moral, clerical e religioso, isto porque os homens da Idade Média, por um lado, procuravam na Bíblia um modelo que lhes guiasse o comportamento em relação à usura (a condenação); por outro, as transformações da sociedade ocidental nos séculos XII e XIII tornavam a realidade da prática usurária possível e socialmente útil. Este descompasso entre tradição/inovação conheceu varias expressões na arte, na literatura, na teologia e na política – sendo uma delas a usura, que foi a menos estudada.

Para preencher esse vazio, esse autor, em “A bolsa e a vida” recorre a textos da época, a exempla (narrativas de fundo folclórico utilizadas pelos pregadores, pela legislação canônica, textos literários, documentos e histórias dos santos, monges e confessores). A finalidade era tratar da análise da economia e da religião na Idade Média, descrevendo e analisando a questão da usura como forma inicial de capitalização. Ele mostra as contradições da época: a mesma sociedade que condenava os que acumulavam bens (os agiotas) ao fogo do inferno, valorizando a pobreza franciscana; aceitava também, no seu interior, o mercador de dinheiro, criando uma saída para legalidade da usura, contanto que lhe doasse parte da fortuna (para a igreja). E as mudanças não eram só as do séc. V ao séc. X. Por volta do ano Mil, ocorrera já uma grande transformação: o feudalismo, aumentando as desigualdades e as injustiças, mas proporcionando uma certa segurança e um relativo bem – estar. A Igreja retomando a figura do Diabo e o institucionalizando como uma empresa capaz de lhe garantir algum lucro; primeiro para desembaraçar-se dos vínculos com o século; segundo, esforçando-se para cristianizar a sociedade, usando a idéia de um satanás racionalizador que administra o inferno, medindo o tempo que não existe e vendendo o que não é dele.

À idéia de Deus, de Paraíso, do Além e do Inferno, concebidos para modificar a sociedade, acrescenta-se o artifício do Purgatório, gerado no final dessa grande transformação imaginada pela igreja, através da Reforma Gregoriana, visando controlar o povo para não optar pelo lucro. Na primeira fase dessa mudança, o usurário judeu (o agiota) foi quem mais sofreu, isso devido à relação da lei judaica com a lei cristã. Enquanto a religião mandava escolher entre o dinheiro e a vida eterna, o usurário cristão fez sua escolha dentre os valores terrestres: o dinheiro. Como na lei judaica podia-se explorar o estrangeiro, menos os irmãos da religião, os cristãos incorporaram algumas dessas idéias para si. Entretanto, visando punir os cristãos que exploravam os irmãos, a igreja usou como prática o controle das rendas dos ricos com o pretexto de proteger os pobres.

Le Goff procurou mostrar, na obra dele, como um obstáculo ideológico pode entravar, retardar o desenvolvimento de um novo sistema econômico. Para ele, pode-se compreender melhor esse fenômeno investigando os homens que são seus atores em vez de examinar somente os sistemas e as doutrinas econômicas. Ele contesta a velha história da economia e do pensamento econômico, a qual ele considera ineficaz para os pensadores da Idade Média, pois nesse tempo não havia doutrina econômica na igreja nem pensadores economistas.

A igreja, os teólogos, os canonistas, os pregadores e confessores da época tratavam de questões religiosas, do pecado de usura e o impacto da religião sobre os fenômenos que hoje são chamados econômicos, e que antes eram pecados capitais: as riquezas, o juro, o tempo, as medidas, as idéias questionadoras, as invenções e os estudos sobre os mistérios da vida, da morte e da eternidade. Tudo isso era coisa de Deus e só a ele competia.

Para Le Goff, a salvação do usurário deveu-se apenas ao Purgatório e explora dois caminhos: o da moderação e o dos novos valores. A igreja, mesmo aceitando muita coisa dos poderosos e sábios, queria controlar tudo e procurava exercer, na verdade, uma de suas funções essenciais, como pregava: a proteção dos pobres. Ele situa o séc. XII como marco do surgimento dos intelectuais da Idade Média no livro com esse mesmo nome. Ele diz que estes aparecem junto com o nascimento das cidades – e impõem –se pela divisão do trabalho (professores, sábios, escritores e monges com vida voltada para Deus) funcionários públicos, escribas, secretários (profissão: escrever ou ensinar). O Renascimento é a marca da modernidade do séc. XII, uma modernidade que não contesta os antigos, ao contrário, imita e se apóia neles.

Le Goff também trata da contribuição greco - árabe e dos intelectuais no processo de reconhecimento do capitalismo (mercado intelectual-valorização das ciências naturais, venda de obras dos gregos, introdução da matemática, principalmente das medidas e da geometria etc.). Já os tradutores, abades das cruzadas e monges, com o pretexto de conhecer para combater, liam e traduziam Aristóteles, Ptolomeu, Hipócrates e Galeno. Juntamente com essas obras, também os termos como: algarismo, zero, grau e álgebra são transmitidos pelos árabes aos cristãos, ao mesmo tempo em que introduziam o vocabulário do comércio: alfândega, bazar, albergue, gazela, cheque. Um período marcado por oposições: partido da santa ignorância x escola da solidão; claustro x cristo; ruído das cidades x tradução crítica de Aristóteles; os goliardos e o menosprezo pelos ídolos x perseguição contra judeus e banqueiros. Mais tarde, no séc. XIII – desaparecem os goliardos – a vadiagem universitária – aparecem Abelardo – o cavalheiro da dialética – e Heloísa – (a idéia opositora da mulher e da concepção de casamento no séc. XII) . As teorias da época tinham em Chartes o princípio: o homem é o centro da criação; São Gregório: o homem é um acidente da criação. As idéias de homem como microcosmo – o homem transformador da natureza – homo faber – homo laboreans e as atividades da condição humana marcam os estudos da época.

Para explicar a questão da criação do Purgatório, Le Goff lança mão de fragmentos de sermões, diálogos, relatos dos pregadores, narrativas dos confessores e confessados, descrição de cenas pelos clérigos, documentos da igreja, leis de imperadores e de legisladores da época medieval e nos garante:durante sete séculos, o dinheiro, o comércio, a usura e toda e qualquer forma de capitalismo era pecado mortal, era crime, era roubo, vício, mal irreparável, principalmente se aparecesse em mãos de pobres cristãos. Aí estava a engenhosa criatividade e espírito empreendedor de Santo Agostinho como bispo e conselheiro do Papa, para criar estratégias de bem administrar os problemas da igreja. Só muito mais tarde passa a ser erro reparável: antes estavam sujeitos aqueles que se apegassem ao lucro, ao fogo do inferno, à condenação eterna. No caso de sacerdotes ou religiosos teriam que se confessar com outra autoridade eclesiástica e ainda registrar por escrito suas confissões para que Deus usasse em seu tempo, como parâmetro para julgar, se iria ou não para a eternidade do Bem.

Le Goff cita passagens da Divina Comédia (Dante Aligheri), da Bíblia, dos poemas de Ezra Pound e da doutrina da Igreja Católica em que aparecem termos como: contrição, penitência, indulgência, arrependimento e o próprio termo Purgatório, no sentido de limpeza da alma, purificação através do sofrimento, despojamento dos bens materiais; essa palavras alcançam seu apogeu no mesmo período que coincide com a perseguição da usura, em que eram também condenados os que trabalhavam com dinheiro ou os que ousavam descrer da condição de vida que lhe era imposta pelas leis dos homens e pela lei de Deus. Se desde o ano mil, a igreja condenava a duras penas a usura e o usurário ameaçando-os com a figura do diabo, não havia saída para o capitalismo ser reconhecido como legal; mesmo que a sociedade manifestasse essa necessidade, veladamente. Todos que comercializavam eram condenados por já estar usufruindo na terra, do tempo, do espaço e das medidas, coisas de Deus, que só cabia a Ele administrar no céu no juízo final) e na terra (através de seus representantes). E o dinheiro, coisa de Satanás, só seria bem vindo se passasse pelas mãos dos doutores da Igreja, ou seja, à religião cabia tornar os bens materiais em algo santificado e depois disso reparti-los aos pobres, em forma de virtudes ou bens espirituais para usufruir em outra vida eterna, no paraíso. Agiotas, mercadores, banqueiros, prostitutas, etc., e todos que vendiam algo com lucro, estavam condenados, sem perdão ao inferno, ao fogo e à destruição por tempo infinito. Contudo, a usura e o usurário já eram, há muito tempo, marginalizados a viver entre o dinheiro e o inferno.

Ao tratar desta questão Le Goff em sua obra “A bolsa e a vida”, pergunta: que fenômeno é este que durante sete séculos ( de XII ao XIX) mistura economia e religião, dinheiro e salvação- expressão de uma longa Idade Média em que os modernos eram esmagados sob os símbolos antigos (modernidade X tabus sagrados)? Esse autor cita Santo Agostinho como um dos sábios mais avançados da sua época, que questionava os conceitos da época (tempo, espaço, propriedade, indivíduo, liberdade, etc, mesmo atrelado às rédeas da religião).

Conforme Le Goff, essa política em torno da usura constitui “o parto do capitalismo”. E como forma mais original de manifestação da sua presença, a usura é taxada como um dos grandes problemas do século XIII. Nesta data, a cristandade já se vê em perigo. O impulso e a difusão da economia monetária ameaçam os velhos valores cristãos. Assim, podemos também perguntar: Como uma religião que opõe tradicionalmente Deus e o dinheiro poderia justificar a riqueza, sobretudo a mal adquirida por ela mesma? Como se sabia tanto sobre as infrações cometidas pelo povo se as pessoas temiam cada gesto, cada palavra dos escritos da época? Será que não era um blefe para criar mais uma instituição? Quanto às instituições Céu e Inferno, Deus e o Diabo, Bem e Mal, ainda não eram suficientes para manter as despesas do clero, do império e da pobreza? Vários documentos oficiais relatam que a legislação eclesiástica e laica se interessava tanto pela usura e se preocupavam mais ainda com a prática religiosa dos usurários. Os vestígios dessa prática, no século XIII são encontrados em dois tipos de documentos – as sumas ou manuais dos confessores e os penitenciais. No entanto, do séc. XI ao séc. XIII, a concepção de pecado e de penitência muda profundamente: ela se interioriza. A gravidade do pecado é medida pela intenção do pecador. É preciso pesquisar se essa intenção é boa. Disso resulta uma mudança profunda na prática da confissão. Antes era coletiva e pública; passa depois a ser reservada aos pecados graves e mais tarde ainda se torna individual, da boca para o ouvido.

O Concílio de Latrão (1215) ao tomar ciência da prática da usura, ou seja, do comércio que ganha dinheiro com dinheiro, vendendo o tempo de Deus, torna obrigatória a todos os cristãos a confissão, ao menos uma vez por ano,durante a páscoa. Deste modo, seria possível descobrir os pecadores marcados pela praga dos pecados capitais e separá-los a tempo de não contaminar os puros, considerando que os pecadores que morrem em estado de pecado mortal (muito grave) vão para o inferno, sem perdão; e os que morrem com pecados veniais (médios) passarão um tempo mais ou menos longo – tempo de Deus, em expiação num lugar novo: O PURGATÒRIO.

Nesse lugar, depois de purificar os pecados, poderão ter a vida eterna, no Juízo Final e, aos que não se contaminarem com a praga da usura, poder-se-ia garantir de antemão o paraíso, bastava se convencer que o dinheiro era coisa suja. Havia todo um trabalho de oratória e convencimento, lições (exemplum – narrativas breves e exemplas - narrativas longas ou conjunto de narrativas) usadas nas pregações. Entre os historiadores medievais que comentam essas narrativas, podemos citar Jacques de Vitry (1240) que vê um grande renascimento da pregação e trabalho de conversão.

Novas ordens nascem opondo riqueza ao valor espiritual da pobreza: as ordens mendicantes, a ordem dos franciscanos, a dos dominicanos, chamadas ordens dos pregadores. A usura era pecado – uma maldição que conduzia o usurário à morte eterna? Para salvar-se seria preciso separar-se da bolsa ou encontrar um meio de guardar a bolsa e também garantir a vida eterna? Eis o grande combate: Riqueza/Paraíso X Dinheiro/Inferno. Embora afirmassem que o mal era oriental e que a partir do ano mil o Diabo se soltaria lá do oriente (onde estava se organizando a nova sociedade do trabalho social com base no capital) também o perigo da concorrência ameaçava os portadores de capital. Tornou-se cada vez mais baseado na mão-de-obra assalariada, começando a se fortalecer na Europa, já no final da Idade Média, por conta das grandes navegações e do surgimento das cidades.Pela criatividade tardia, mas racional da igreja, houve o reconhecimento oficial da existência de um monstro nascido da venda do tempo, da aquisição de espaço- propriedade e da invenção das medidas, chamado Capitalismo.

Na passagem do Primeiro Milênio (fim do séc. X e início do séc. XI) a Europa teve uma fase de crescimento da população, desenvolvimento da agricultura e renascimento do comércio. Vários motivos contribuíram para isso, como por exemplo: o fim das invasões: aos poucos criou -se um clima de certa tranqüilidade, favorável ao desenvolvimento da produção e do comércio; aumento da produção agrícola- conseguido pelo aumento das áreas cultivadas e, sobretudo, pelo uso de novas técnicas: uso do relógio de água substituindo o relógio de sol e de areia, rotação tri anual dos cultivos, gradeamento da terra arada e invenção de arado de rodas, de maior rendimento que o antigo arado romano;o renascimento do comércio – apesar das dificuldades, pois a partir do séc. XI, o comércio desenvolveu-se rapidamente. Para isso, muito contribuíram as cruzadas que colocaram a Europa em contato mais intenso com o oriente e sua cultura, passando a adotar as convenções árabes e gregas.

Durante toda a Idade Média, aumentaram as doações. Imperadores e reis deram grandes feudos ao Papa, aos mosteiros, às dioceses e igrejas locais. Num tempo relativamente curto, a igreja tornou-se a maior proprietária de terras da Europa, passou a se preocupar com as medidas agrárias, com o espaço e o tempo de plantio e de colheita, contando já com a ajuda dos sinos das torres para medir o tempo que agora era de todos que trabalhassem para a sua manutenção. Com o passar dos séculos consolidou-se esta posição. Enquanto os senhores feudais, para ter apoio e ajuda militar, dividiam seus feudos, a igreja fazia o contrário: seus terrenos aumentavam sempre, com novas doações e com o aumento de terras, cresciam rendas que os religiosos administravam, agora sem medo de calcular o tempo nem de praticar a usura nem de ir para o inferno. Com o poderio da Igreja surgiram algumas expressões para designar promessas e garantias de pagamento na terra e no além; era a senha ou passaporte para o pecador, especialmente o usurário. Benefícios, dízimos, pedágio, testamento, testemunho, doação, lote, território, imposto, etc.

Esses e outros termos passaram a ter também importância, paralelamente, nesse mesmo período: diabo, usura, pecado, penitência, purgatório, contrição, arrependimento, indulgência, medo, trevas, fogo, juízo final, matéria, alma, prisão d’alma, prisão do corpo, sofrimento, dor, mal, tentação, etc. Como resultado de tudo isso, a antiga idéia de serviço aos outros foi substituída pela ambição e a idéia de comunidade cedeu lugar ao bem do indivíduo. A nova ordem era: “cada um por si e que o diabo fique com o pior“. O resultado final foi o aumento da prosperidade geral, para aqueles que obtinham sucesso, e maior sofrimento para os desafortunados. O importante é que o homem seja feliz, conservando a bolsa na terra e garantindo aqui mesmo a sua vida, sem se preocupar se o tempo e o espaço existem ou se eles são de Deus ou eternos. Mas que ambos têm sua medida e seu preço, lá isso tem.

BIBLIOGRAFIA

ALIGHERE, Dante. Divina Comédia.

ANDERSON, Perry. Passagens da antiguidade ao feudalismo.

BIBLIA SAGRADA CATÓLICA.

HEERS, Jacques. História Medieval.

LE GOFF, Jacques. Os Intelectuais da Idade Média.

LE GOFF, Jacques. A bolsa e a vida. –A Usura na Idade Média.

MONTANELLI, Indro. GERVASO, Roberto. Idade Média: Treva ou Luz?

O Cotidiano na imaginária medieval.

POUND, Ezra. Poemas.

VITRY, Jacques. Exemplum et exempla-História Medieval.


Autor: Djalmira Sá Almeida


Artigos Relacionados


Sobre Homossexualismo, Você Sabia?

Para O Dia Das MÃes - Ser MÃe

Livre ArbÍtrio.

Educação Física E Qualidade De Vida

Quem Escreveu A BÍblia?

Ciência Versus Religião: Os Extremismos Religiosos E As Decisões Políticas

O Ciclo Do Nitrogênio E A Camada De Ozônio