O Encontro De Zé Toleira Com O Boto Safado



A colônia dos pescadores de Barrinha, lá por perto da Cruzada do Mano Velho, abrigava muitas famílias que, por descendência, todos os dias se atiravam ao rio em busca de peixe. Um festival de canoas, redes, rostos cansados e mal dormidos. O dia apenas começava.

A pesca não andava lá estas coisas. As canoas, há tempos, não voltavam abarrotadas de peixe. Muitas promessas eram feitas para que o sustento das famílias não terminasse. Os mais audaciososacreditavam que a culpa era dos botos que haviam se mudado para lá sem maiores cerimônias.

Toda a gentelá da Barrinhatinha tido o seu encontro com os botos. Pela tardinha, lá estavam eles, desafiavam a ira dos pescadores, nadando paraperto da margem, rodopiando e saltando nas águas em total camaradagem com os filhotes. Ao contrário dos pescadores , esbanjavamvitalidade, noites bem dormidas e um certo exibicionismo.

Zé Toleira, mesmo nas boas épocas, nunca fora pescador de sucesso garantido. Custavasair da cama, o que lhe rendia o último lugar de chegada ao rio. Mas não era só isto, suas redes estavam sempre com enormes buracos, facilitando a fuga dos peixes. O que do rio tirava não dava nem para comprar o café e a cachaça. Pobre e preguiçoso já era, agora então, tendo por vizinhos os botos, ai sim que nunca mais haveria de pescar,pouco que fosse.

De toda a colônia, Zé Toleira era o mais preocupado. Passava as tardes coçando a rala barba e olhando para o rio, tentando descobrir um jeito de expulsar os botos. Se continuasse com a consumição financeira, decerto não poderia casar com Toninha. Moça bonita não haveria de ficar esperando o rio dar peixe e sua vontade de pescador se aprimorar. Tinha queresolver o problema, seu coração se apertava demais de tantoamor pela donzela.

Numa das tardes depois do vento ter soprado para longe a teimosa chuva, Zé percebe a presença de um boto, pertinho da margem. Aproxima-se do inimigo, desejavê-lo bem de perto, talvez torcer-lhe o pescoço. Sente raiva . O boto, em nada preocupado ,adivinhava-lhe o pensamento, não sentia medo, pelo contrário, desafiava Zé Toleira. Erguia o mais que podia aquele corpãozil todo da água, era rei. O avermelhado lustroso do seu couro recebia os últimos raios de sol, deixando-o mais garboso.

O pescador não mais se contém . Avança para o animal com os punhos cerrados. Por que, quer saber, o rio não dá mais peixe? Por que, quer saber, os botos resolveram se mudar paraa colônia? Como, desespera-se, faria para se casar com Toninha, se não vendia peixe e por isso não tinha vintém algum ?

Um som rouco, uma voz mesmo, atrevia-se Zé a escutar, saída da boca do boto, conta-lhe que até que poderia resolver logo esta situação, tudo dependia da boa vontade do pescador. Se ele quisesse, todos os botos iriam para bem longe dali. Tudo voltaria ao que era antes, peixes e mais peixes poderiam ser vendidos no mercado e o dinheiro chegaria aos bolsos dos pescadores. Inclusive ele, o próprio Zé Toleira, nunca mais precisaria levantar de madrugada para a pesca, qualquer hora que fosse para o rio, voltaria com a canoa transbordando de pescado. Quem sabe, poderia até se casar bem antes do que estava imaginando. Teria muito dinheiro, barcos, empregados, uma bela casa, Toninha e umavida sossegada.

A oferta era boa demais para não ser apreciada. Poderia até comprar a casa do seu Gonçalves,colocar uma nova cor nas paredes. As janelas seriam amarelas. Comprar uma cama de casal bonita com lençóisazuis, travesseiros de espuma, nada de pena de galinha velha. Na sala então, haveria de ter uma mesa grande com seis cadeiras para poder convidar os amigos para os almoços de domingo. Nada de economia, festança, isto sim .

A imaginação rolava solta, sentia-se o rei do pescado, até que resolve perguntar para o boto o que elequeria em troca. Neste mundo nada era de graça. Coisa pouca, diz o boto. Bastava que na noite de núpcias, Toninha fosse visitá-lo, ali mesmo naquele lugar por onde corria a conversa. Era só garantir o acordo que já no dia seguinte, a vida dele mudaria para melhor. Indignado pela ousadia do bicho, enraivecido por achar a proposta uma indecência sem precedentes, Zé Toleira sai tropeçando, desconjurando o boto.Era o que faltava, a sua noite de núpcias, uma data tão esperada, ser estragada pela conversa mole de um peixe. O melhor mesmo éesquecer o conversê maluco.

No diaseguinte e no outro e no outro, nenhum peixe aparece na sua rede. No quarto dia, bastante desanimado, pensando em já voltar para casa, arregala os olhos, por ver não um, mas dez, vinte, duzentos, muitos peixes pularem espontaneamente para dentro da canoa. Grita de contentamento. São peixes enormes, que chegam a arriar a embarcação.

Quase chegando na margem, dá de encontro com o boto que olhando fixamente para ele, que promete muito mais do que isto, bastava que fizessem o acordo.

Sem promessa nenhuma, o dia já tinha rendido, imagina só se resolve concordar com o boto. Quanto mais poderia ganhar? Não, Toninha não merecia tal sorte, ela o amava e era moça correta.

Assim, durante vários dias e alguns meses onde a fartura não se fazia de rogada, os peixes pulavam para a embarcação de Zé Toleira, e o dinheiro embotava seus pensamentos. Se fosse apenas uma visita, mesmo que em noite de núpcias, não seria tão ruim assim. Afinal, uma conversa com um peixe qualquer, não haveria de manchar a honra de Toninha.

Dois barcos, embora pequenos, foram comprados. Zé teve que contratar gente para o ajudar, pois não queria mais ter que descer o rio, agora , era ser patrão.Para Toninha, muitos presentes. Seu enxoval teria que ser o mais bonitode toda aquela região.Barcos, peixes, dinheiro, empregados, a nova casa, tudo acontecia de bom para melhor.

Certa noite Zé Toleira acordasobressaltado, um diabo de pesadelo. Lá estava o boto reluzente, entrando em seu sono sem ao menos pedir licença, cobrando a presença de Toninha. Zé levanta da cama, vai para a cozinha tomar um copo de água, precisava colocar as idéias no lugar. Talvez o melhor seria não se casar de papel passado. Levar Toninha para a casa nova, sem padre nem juiz. Quem sabe não enganaria o boto?

É ainda muito cedo, mesmo assim, sai de casa para tomar o fresco da madrugada. Caminha sem muito pensar para o rio. Resolve, de susto, falar com o boto, chama por ele. Pouca demora e lhe aparece o rei, com ares de pouca cortesia. Entre vários entreveros que se sucedem, o boto avisa: ou Zé Toleira fecha o acordo naquela horinha, ou acabam-se de vez os peixes do rio. Adeus casa nova, empregados, dinheiro farto e casamento com Toninha. Que se decidisse agora.

De cabeça quente e por medo da pobreza que tão bem conhecia, acerta que no dia do casório, antes mesmo de Toninha se bandear para a casa nova, haveria de levá-la até o rio. Que o boto não se atrevesse a chegar muito perto, eram só uns minutinhos de prosa.

Chega finalmente o dia tão cobiçado, regado de muitas promessas de amor, cachaça da boa, lágrimas da mãe da noiva e farta comida. A música ainda era ouvida por toda a colônia, tarde da noite, quando Zé ,com a desculpa de noivo ardente de amor, arrasta Toninha para a barranca do rio. Ela que esperavajuras e afagos, se depara com um marido assustado e arredio. Os minutos, poucos, passam. Os dois, com ansiedades diferentes, não se permitem perceber de certa terceira pessoa de riso solto e maroto, encostado numa velha barcaça.

A lua que de apressada nada tinha, aos poucos ilumina o caboclo . Primeiro a cabeça. Farta cabeleira anelada, sombrancelhas grossas, impetuosas. O nariz, um marco de desafio, contrastando com a bocaincrivelmente sedutora, boca de dizer palavras profanas entre uma e outra reza. O estranho de corpo era bem servido, uma bela construção anatômica, só imaginada mesmo por Rodin, até Deus sentiria inveja de talobra.

Com a lua jogando imensa luz sobre aquela alma, era impossível não percebê-la. Zé Toleira, quer saber quem é o sujeito. Toninha sente e sabe que seo homem se aproximar, seu coração pulará do peito. Que tontura mais gostosa se apodera da moça, que sensação de moleza, só de olhar para aquele homem bem vestido.

O estranho se aproxima com valentia, ginga de malandro, de bom dançarino. Estende a mão para Toninha que não recusa o convite. Zé Toleira não pode permitir o abuso, fica entre os dois desafiando o sujeito, que sem demonstrar qualquer intimidação, aproxima a boca ao pé do ouvido do marido e diz : sou eu. Quem ? Eu? Não, eu, que venho do rio. Zé se desespera, então o danado do boto tinha de virar homem safado justamente no dia do seu casamento? Quero a mulher, seu Zé pescador, e é hoje, agorinha, diz o homem - boto. Ou isto ou a pobreza; acabo com tudo, promete o sem - vergonha.

Toninha mal escuta as palavras, inebriada de repentino e novo amor, escorrega a alma para o estranho. Ele caminha para dentro da mata, a quase mulher vai atrás. Zé Toleira sabe que nada pode fazer, quando moça se encanta não há mandinga que dê jeito. Na maior consumição, passa a madrugada todinha esperando Toninha, até que com o despontar do sol, aparecetoda mulher, andando devagarinho, como se flutuasse. De sua boca saem tímidos gemidos, no seu corpo, o cheirode água doce bem amazonense.

O marido traído chora. Toninha não se importa. Zé soluça, não contendo mais o desespero. Juntos voltam para casa e durante o resto de suas vidas fingiriam que nada tinha acontecido, nenhuma mágica madrugada havia passado por suas vidas.

Nove meses e Zé chama a parteira, Toninha já vai ser mãe. Naquele dia nasce o menino de olhar abusado que anos mais tarde haveria de herdar o império do pescado de um certo José Amâncio mais conhecido por Zé Toleira, o homem mais rico de todo estado. Um pescador mal acabado que de tanta sorte acabou sendo o rei do tucunaré, chegando mesmo a mandar o peixe para o estrangeiro.

Toninha, sua mulher, é senhora recatada, sem luxo, nada pedindo da vida. Quase não sai de casa, tendo como única distração, seus passeios pela orla .

Tem dia que ela fica longas horas olhando para o nada, lá para o fim do rio. Volta para a casa com os olhos vermelhos de tanto chorar. Ninguém nunca soube o porque, deveria ser coisa de gente rica.


Autor: Jussara Whitaker


Artigos Relacionados


O Chão

O Boto Cinzento De Paquetá

O Doutor E O Caboclo

Para O Dia Das MÃes - Ser MÃe

Após Alguns Anos De Casados...

Amor NÃo DÁ Em Árvore

Causo De Pescador.