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MariaMunduruku, de cócoras na cozinha da sua casa, terminava de entalhar minúsculos jacarés e tracajás em caroços de frutas de palmeiras. Os pequenos animais dali a pouco passariam a compor o colar que estava fazendo para a filha. Presente que a menina usaria logo mais a noite na festa.

Era dia da festa da caça, onde os índios matavam para comer a maior anta encontrada. A carne do animal fazia-os sentirem - se mais fortes. Do inhame, do milho e da cana, faziam as bebidas. Enquanto a carne cozinhava num grande caldeirão sobre imensa fogueira, os participantes dançavam e cantavam. Quando a comida ficava pronta, era dividida igualmente entre todos.

Sentia-se bem, porque não dizer, feliz. Dançaria e cantaria muito. Através da música, encontrava-se com o espírito do filho há muito morto no enfrentamento com uma jibóia. Precisava de seus conselhos e do seu amor.

Sentia necessidade de ver novamente seus olhos profundos e negros a descortinar a vida dos vivos, ajudando a abrir os caminhos para a quase felicidade terrena. O filho fortalecia-lhe a alma. Encorajava seus passos.

Quando o céu passou a receber a coloração noturna, os cantos foram acontecendo devagarinho, entrando sem pedir licença pela noite mal chegada.

Os índios, cantando e dançando equilibravam a vida e conforme a tradição, evitavam o fim do mundo. O som da batida dos pés no chão imitavam a recriação do universo.

Maria cantava. Maria dançava. Unia as mãos em profundo fervor, pedindo que os deuses da mata aliviassem as aflições de todo o seu povo , que mandassem a miséria para bem longe, que apressassem a demarcação das terras e transformassem o sentimento de infelicidade no de orgulho e bravura dos outros tempos.

Era mulher pequena, não passando de metro e meio. Muito magra, sorriso franco, mãos ágeis para o trabalho e muitas estórias guardadas na grande memória, compunham sua personagem. Tanto na aldeia como na cidade era conhecida pelo trabalho feito em cerâmica, tirando do barro fantásticas figuras de animais ou então perpetuando os traços do design munduruku em vasos, pratos, panelas e outros tantos objetos de uso diário.

Seus dias eram passados na cidade, entre o trabalho de homem branco, os afazeres da casa e a modelagemdo barro. Na aldeia, ia mesmo só nas grandes ocasiões de festa, casamento, nascimento ou morte. Não importava se havia sol, ou se tinha por companhia a chuva. Andava desbravadamente os quase trinta quilômetros que separavam a cidade da aldeia, pelo prazer de se sentir livre do peso da cultura cotidianamente imposta pelo imperialismo moderno, travestido de globalização.

Durante as horas que junto de sua gente ficava, transformava-se verdadeiramente numa descendente tupi, figura efetiva do contingente dos sete mil índios munduruku que habitavam a região do velho e caudaloso rio Tapajós.

De segunda a sexta- feira a índia era chamada de dona Maria pelos estudantes do colégio onde trabalhava como servente. Após o sinal da doze e trinta, passava o apagador no quadro negro, a desmanchar os vestígios das equações matemáticas, das explicações sobre o projeto genoma ou então das discussões sobre urbanização brasileira.

Varria o chão e espanava as carteirase ouvia os gritos estudantis de:" dona Maria ! dona Maria!, me venda um sorvete!" ou "eu quero um salgado", dito na hora da merenda.

Maria era uma mistura de força, braveza e doçura. Sentimentos mesclados, porém preciosamente separados para as diversas ocasiões do dia ou da semana. Esta mágica alquimia fazia delauma personagem de interesse e incontido afeto para todos que a conheciam.

Não ficou para sempre na Terra. Certo dia, a música mais uma vez promoveu seu encontro com o filho. Olhou com amor para aquele pequeno homem e pela primeira vez sentiu o seu abraço atravessando-lhe o corpo. No princípio teve medo, mas o olhar seguro do índio deu-lhe coragem.

Sua alma prata e inquieta afastou-se do franzino corpo. De mãos dadas com Hawkkwi, seu filho, atravessou os limites da vida conhecida e rumou para Dohã. A verdadeira morada comandada por Hãtupa.

Maria não vai mais na aldeia. Dona Maria não está na escola. No coração dos que a amam, ela continua a ensinar palavras em munduruku para os mais curiosos, a receitar chás de cascas de árvores e a fazer unguentos de banha de cobrapara uns tantos males do corpo.

É possível ouvir o seu riso sempre que a campainha anuncia a hora da merenda. Para aqueles que não têm medo de ver, lá está ela, no alto da escada, com o pano de limpeza sobre o ombro, a velar pela tranquilidade de mais um dia de aprendizado escolar. Como estrela prateada.


Autor: Jussara Whitaker


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