DIALOGISMO: UM TURBILHÃO DE VOZES NO DISCURSO DA PERSONAGEM



 

O DISCURSO E A VOZ DA PERSONAGEM “ O discurso na obra não é um simples

 adjuvante, destinado a favorecer-lhe

a emancipação , mas um momento

da produção da obra, de seu  sen-

tido e de seu valor”.

(PIERRE BOURDIEU, sociólogo francês.)

 

Mergulhar no pensamento e nas idéias de Mikhail Bakhtin referente a  personagem dialógica, cujos pontos teóricos rompem com a concepção tradicional e linear desse ente da narrativa, requer uma observação incontestável dos traços característicos intrínsecos pela perspectiva da imprevisibilidade, da inconclusão e pela autonomia de pensamento da personagem.

O enfoque desse escrito destina-se em apresentar a personagem enquanto voz e “ponto de vista específico sobre o  mundo e sobre si mesma”, trazendo à baila a estrutura que erige a personagem não como um ser ofusco, mas sim, um ser de voz  consciente e ativa dentro do texto, vale ressaltar que a dialogia ao valorizar o ponto de vista da personagem, está na verdade valorizando o discurso desses seres ficcionais, que sofrem com as próprias indagações e buscam respostas sobre os outros e sobre si mesmo, despertando assim para uma autoconsciência.

Com efeito, o modelo de tratamento do sujeito (a personagem), não segue um caminho único para Bakhtin, pois o teórico transpõe a representação de um sujeito de consciência automatizada às turbulências de sua imagem interior em constante reflexão. Nesse momento, a  personagem se parece mais com o homem, por ganhar voz e por questionar-se.

 No universo bakhtiniano  nenhuma voz jamais fala sozinha, pois desde o primeiro momento ela está contida na relação dialógica das consciências, ou ainda, na consciência de uma consciência, à medida que a personagem ganha autonomia e liberdade sendo agente do discurso e não apenas um objeto mudo do discurso do autor, dessa maneira, durante a exposição do romance, o autor não fala da personagem, mas com a personagem.

Nesse caso, Bakhtin propõe o estudo da personagem dialógica utilizando como análise as obras de Dostoievski, que dão margem à base de dialogia quando o teórico afirma que:

“O que deve ser revelado e caracterizado não é o ser determinado da  personagem, não é a sua imagem rígida, mas o resultado definitivo de sua  consciência e autoconsciência, em suma a última palavra da personagem sobre si mesma e seu mundo”.

                                                                                                                    (Bakhtin, 1981:40)

De fato, a personagem dialógica interrompe a automatização de seu mundo quando elucida sua percepção para o que há dentro de si mesma, seu ponto de vista é revelado com plenitude e autonomia, sem a  interferência do autor, que assume uma postura “objetiva” não interferindo na voz da personagem.

Percebe-se a independência do discurso do herói e a nova postura do autor na novela O Crocodilo de Dostoiévski, cujo enredo vai do insólito ao cômico, narrando que em uma  galeria de lojasem São Petersburgo o funcionário público Ivan Matvieitch é engolido vivo por um crocodilo exposto a visitação, observe o fragmento:

“Em primeiro lugar, o crocodilo, para  meu espanto é completamente vazio. O seu interior consiste como que num enorme saco vazio, de borracha, parecido com aqueles objetos de borracha que se encontram facilmente na Gorókhovaia, na Moskaia e, se não me engano, na avenida Vozniessênskia. De outro modo, pense bem, poderia eu caber nele? (...) as entranhas do crocodilo devem ser justamente vazias, para não tolerar o vazio; por conseguinte, devem incessantemente engolir e encher-se de tudo o que esteja à mão. E eis o único motivo plausível a nossa  espécie. Não foi o que sucedeu, porém, na disposição do homem: quanto mais oca, por  exemplo, é uma cabeça humana, tanto menos ele sente ânsia de se encher; e esta é a única exceção à regra geral”.

                                                                                        (O Crocodilo, 2000:42-43)

 O herói mostra sua voz e seu ponto de vista diante da situação e das coisas. A personagem assume uma posição crítica à medida que a  Rússia sofre com as modificações do progresso, sendo capaz de “engolir a nossa espécie”. Ivan apresenta uma consciência perspicaz, afastando-se do ser coisificado. Possui uma voz que vai se revelando e se conhecendo adjacente a outras vozes. Observa o crocodilo oco e vazio como a sociedade em que vivia: fechada, orgulhosa e vazia.

Em busca de maior explanação, faz-se preciso a leitura de outro excerto:

“Há muito ansiava por uma oportunidade em que todos falassem de mim, mas, tolhido pela minha pouca importância e pelo posto subalterno, não o conseguia. Agora todavia, tudo isso foi alcançado pela simples tragada de um crocodilo. Cada palavra minha será ouvida, cada uma das minhas afirmações será pensada, transmitida, impressa. E eu hei de mostrar quem sou! Compreenderam, finalmente, que capacidade deixaram desaparecer nas profundezas do monstro. “Este homem podia ser ministro das  Relações Exteriores e governar um reino”, dirão alguns. “E este homem não governou um reino estrangeiro”, dirão outros. Ora, em que, em que sou pior do que qualquer Garnier- Pagesinho, ou sei lá como se chama? A mulher deve fazer pendant comigo: eu com a  inteligência, ela com a beleza e afabilidade. “É linda, por isto é esposa dele”, dirão uns. “É linda por ser esposa dele”, corrigirão outros.”

                                                                                                     (O Crocodilo, 2000: 40-41)

Nesse fragmento, observa-se a voz do pensamento de Ivan Matvieitch e a tomada de consciência diante a sua nova posição social. Dessa forma, ele focaliza a voz do “outro” dentro de seu próprio discurso, e o que este pode pensar ao seu respeito. Neste diálogo, percebe-se por intermédio da voz, uma visão particular do “outro” na mente do herói.

Por essa via, é possível entender que a personagem Ivan Matvieitch é dialógica, por apresentar suas reflexões e por ser inconclusa se alterando em determinados momentos, pois não há uma compostura a seguir, nem uma função determinada. A personagem torna-se apenas autoconsciente.

É lícito dizer, que Bakhtin observa  uma outra forma de discurso chamada  monólogo dialogado, contudo, para melhor compreensão dessa teoria é necessário o entendimento de algumas questões da linguagem.

Quando Bakhtin propõe o dialogismo,  cria-se um contra-ponto com o que estava circulando em termos de lingüística, de literatura e questões teóricas nos meados do séc. XX.

“A idéia de um discurso que é o tempo todo atravessado pelo alheio, que traz no seu interior o outro é um dos principais pontos do pensamento de Mikhail Bakhtin e o  fundamento da sua concepção dialógica da linguagem”.

                                                    (Bakhtin, Dialogismo e Construção do Sentido, 1997: 249)

Atualmente, a lingüística quando dá um salto em relação as teorias de Saussure, direciona-se para a análise do discurso, que está baseada nas questões bakhtinianas.

Sendo assim, a lingüística tradicional saussuriana tinha sempre o privilégio de um elemento só da comunicação: o emissor. Bakhtin por sua vez, vai prever o receptor, sugerindo a questão do diálogo. E nesse sentido o teórico diz que:

“Em cada texto, em cada enunciado, em cada palavra ressoam duas vozes: a do eu e a do outro”.                                                                                                                         (Bakhtin, __: __)

À luz da teoria dialógica, Bakhtin entende que em alguns casos o receptor pode ser o próprio emissor, ou seja, no caso do monólogo, percebe-se que é a própria personagem conversando consigo mesma.

Partindo desse pressuposto, compreende-se que essa voz do “outro” ressoa no próprio “eu”, nesse sentido, o eu e o outro podem ser um só em determinado momento, pois tanto a fala  e a palavra do emissor (a personagem), não se perdem, mas sim, recebem um interlocutor que é ele mesmo.

A guisa de maior entendimento, observe que a obra Angústia de  Graciliano Ramos, elucida um monólogo dialogado que se esquematiza desde a arquitetura da personagem ao modo de narrar.

O discurso dialógico de  Angústia, apresenta como projeto de construção a fruição das coisas na mente  da personagem Luís da Silva, sua memória, seu passado e o seu presente correlacionam-se a ponto de provocar um descontrole: uma “mistura de coisas”. Veja o fragmento:

“Havia um grande silêncio, um silêncio incômodo. Às vezes punha-me a tossir, para me convencer de que não tinha ficado surdo. Era como se a gente houvesse deixado a Terra. De repente surgiam vozes estranhas. Que eram? Ainda hoje não sei: vozes que iam crescendo, monótonas e me causavam medo (...) A verdade é que muitas vezes me perguntei a mim mesmo se realmente ouvia aquele barulho grande, diferente dos outros barulhos. Perguntei naquele tempo ou perguntei depois? Não sei. Tenho-me esforçado por tornar-me criança – e em conseqüência misturo coisas atuais as coisas antigas”.

                                                                                                                 (Angústia, 2003:15)

A idéia de uma voz abafada, reprimida, que se manifesta na forma de discurso interior e que só às vezes é colocada para fora, explica de certa forma, a tensão existencial prolixa:  passado e presente, que gera a autoconsciência da personagem, uma vez que esta estabelece um diálogo consigo mesma, ou seja, com sua própria consciência. Observe mais um trecho:

“Cansava-me e desejava que o homem se fosse embora. Não percebia que me importunava, que me obrigava a esforços enormes para entender uma língua estrangeira? O desconhecido continuava a falar. Eu subia a  parede novamente e corria atrás  da réstia. Cairia no tijolo outra vez, achatar-me-ia ouvindo o monólogo incompreensível. Receava que o homem sem rosto me julgasse estúpido. Queria dormir, arregalava os olhos e abria os ouvidos. (...) As crianças corriam em torno da barca.- “José Baía, meu irmão, estamos tão velhos!” Acordam-me todos. 16.384. Um colchão de paina. Milhares de figurinhas insignificantes. Eu era uma figurinha insignificante e mexia-me com cuidado para não molestar as outras 16.384. Íamos descansar. Um colchão de paina”.

                                                                                                        (Angústia, 2003: 214-222)

Nesse trecho, nota-se que  durante esse “solilóquio doido”, a personagem tem consciência de si mesma, sendo dona de seu discurso, ela ganha voz e questiona-se dando base de sustentação para a leitura dialógica, pois seu ponto de vista manifesta-se livremente no diálogo consigo mesma.

Com efeito, pode-se afirmar, que segundo Bakhtin no plano monológico as personagens são  plurisignificativas, abrindo-se para várias significações, tornam-se seres ficcionais inconclusos e inacabados, pois desfrutam da liberdade de consciência e da autonomia de sua voz no discurso, sem a  interrupção do autor.

No entanto, os textos narrativos existentes antes das teorias bakhtinianas, apresentam um procedimento de construção diferente, à medida que o autor da narrativa possui pleno domínio da personagem, premeditando todos os acontecimentos e ações dos seres narrativos. É nesse âmbito que se encontra o plano monológico,  no qual o autor controla tudo, definindo o ambiente, o tempo, além da construção da personagem.

No plano monológico as personagens são monosignificativas, ou seja, apresentam na história um único significado, pois são personagens acabadas, cujo caráter será desenvolvido pelo autor, assim como suas ações e pensamentos, não apresentando no discurso uma voz consciente e autônoma. Nesse sentido Bakhtin diz:

“ No plano monológico, a personagem é fechada e seus limites racionais são rigorosamente delineados: ela age, sofre, pensa e é consciente nos limites daquilo que ela é, isto é, nos limites de sua imagem definida como realidade. (...) Essa imagem se constrói no mundo do autor, objetivo em relação à consciência da personagem; a construção desse mundo, com seus pontos de vista e definições conclusas, pressupõe uma sólida posição exterior, um estável campo de visão do autor”.

                                                                                                                   (Bakhtin, 1981:43)

Diversas narrativas apresentam essa construção monológica como, por exemplo, Razão e Sentimento de Jane Austen. Na obra, é o próprio autor que conta a história e apresenta as personagens, Veja a descrição que o autor faz da família Dashwood no fragmento abaixo:

“Havia muitos anos que a família Dashwood viviaem Sussex. Suasterras eram extensas e a mansão de Norland Park ficava no meio da  propriedade, onde, por muitas gerações, os Dashwoods levaram uma existência tão digna, que era natural granjeassem excelente conceito em toda a vizinhança. O antigo proprietário dessas terras, um solteirão que viveu até avançada idade, teve por longos anos, a desvelada companhia da irmã, que sempre administrou a casa.  Mas, após a morte desta, (...) ele convidou a morar em sua companhia a família de seu sobrinho, Henry Dashwood...”

                                                                                                (Razão e Sentimento, 1996:05)

No decorrer da trama, o narrador conduz o leitor a ficar tão desapontado quanto a personagem, pois este é na verdade o objetivo que o narrador deseja alcançar:

“O velho cavalheiro faleceu, o testamento foi aberto e, como ocorre  amiúde nesses casos, a leitura provocou não só prazer como desapontamento. Não fora nem injusto nem ingrato  a ponto de subtrair a herança do sobrinho; porém, deixara-a em termos tais que prejudicou metade do legado. (...) O desapontamento do Sr. Dashwood foi, a princípio, profundo; mas seu temperamento era alegre e  otimista, e muito naturalmente ele contava viver ainda longos anos...”

                                                                                                (Razão e Sentimento, 1996:06)

Observa-se que a narrativa acontece de forma linear, com começo, meio e fim sempre partindo de uma situação inicial (equilíbrio) para uma situação de desequilíbrio, que aguarda a presença de um herói para restabelecer o equilíbrio.

ÚLTIMAS PALAVRAS: O PROJETO DE CONSTRUÇÃO É O DIFERENCIAL

“O que importa é perceber que a existência mesma

 dessas obras, a sua proliferação, a sua implantação

 na vida social colocam em crise os conceitos

tradicionais e anteriores sobre o fenômeno artístico,

exigindo formulações mais adequadas à nova

sensibilidade que agora emerge”.

                (ARIANO MACHADO, pesquisador brasileiro)

 

 

De tudo exposto, fica evidente que tanto a construção dialógica, quanto a monológica – apresentam um projeto diferente, pois os procedimentos que as arquitetam são distintos. Dessa forma, a lógica que define as personagens em relação ao discurso e a voz diferenciam-se dentro da narrativa, porém, uma construção não é melhor que a outra. Vale dizer, que enquanto na construção monológica o discurso e a voz da personagem são definidos pelo autor, que premedita toda a ação dos seres ficcionais, a construção dialógica não segue um padrão narrativo com: começo, meio e fim, e as personagens são dotadas de comportamento questionador, que as aproximam dos seres humanos, por apresentarem dentro de si a possibilidade do bem e do mal.

Em suma, as personagens dialógicas segundo Bakhtin serão polifônicas, à medida que várias vozes aparecem durante seu discurso construindo a própria história. Nos dias de hoje, existem obras que não se enquadram nos projetos dialógicos ou monológicos, cabendo aos pesquisadores literários a busca de novos  conceitos teóricos.

 Referência Bibliográfica

 

BAKHTIN, Mikhail (1981). Problemas da poética de Dostoievski: Tradução de Paulo Bezerra. Rio de Janeiro:Ed. Forense-Universitária. 1º edição brasileira.

BRAIT, Beth (1997). Bakhtin, Dialogismo e construção de sentido. Campinas, SP: Ed. da Unicamp.

DOSTOIÉVSKI, Fiódor (2000). O Crocodilo: Tradução de Boris Schnaiderman. São Paulo: Ed. 34.

RAMOS, Graciliano (2003). Angústia. São Paulo: Folha de São Paulo.

AUSTEN, Jane (1996). Razão e Sentimento: Tradução de Ivo Barroso. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.


Autor: Lilian Silva Salles


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