Violações de direitos sexuais de crianças e adolescentes nos projetos de infraestrutura e desenvolvimento



Violações de direitos sexuais de crianças e adolescentes nos projetos de infraestrutura e des-envolvimento. 

Estela Márcia Rondina Scandola

Osvaldo dos Passos Pereira Junior. 

 

“O mercado sexual é concreto, espraia-se por todas as cadeias produtivas e, em muitos casos, servindo para aplacar a solidão e a deserção dos trabalhadores advindos da migração forçada e, em outros é co-gerido por gestores dos grandes canteiros de obras premiando executivos e temperando as negociações financeiras.” (SCANDOLA, 2009, p.7) 

Nossa militância em direitos humanos a partir da sociedade civil tem ensinado que o mercado sexual se expande por locais que estão no foco das obras de “desenvolvimento”, como componente do mesmo processo e é um elemento fundamental para a compreensão das violações de direitos sexuais de crianças e adolescentes, um dos impactos do avanço das grandes obras. Essas relações começam a ser consideradas, com maior atenção, por parte dos agentes de promoção dos direitos de crianças e adolescentes – embora nos materiais de campanha e mesmos nos discursos prevaleça a ideia “pedagógica” de esquartejar o conceito de exploração sexual nos tradicionais e engessados “tipos de violência”.

O debate necessário para a compreensão das implicações entre violações de direitos sexuais e grandes projetos de “des-envolvimento” refere-se à continuidade da percepção dualista e reducionista comumente presente na maioria dos discursos. Essa visão permanece presa no seguinte raciocínio: o mercado sexual surge como conseqüência da instalação dos canteiros de obras; a responsabilidade pela exploração sexual é dirigida exclusivamente aos homens, que se aglomeram para trabalhar nesses locais; a exploração sexual é tomada como problema temporário com duração correlata ao período necessário para a instalação do empreendimento; por sua efemeridade e por suas causas facilmente identificáveis (residem simplesmente nos desejos de trabalhadores, cujos contratos de trabalho são igualmente efêmeros), a exploração sexual de crianças e adolescentes pode ser enfrentada e até mesmo erradicada através de campanhas orientativas junto a trabalhadores e responsáveis pelos empreendimentos. Esta interpretação de exploração sexual herda da visão limitada nos relacionamentos intersubjetivos a polarização entre bem e mal e a culpabilização de indivíduos migrantes ou empreendedores, tornados bodes expiatórios.

O entendimento primário de exploração sexual que ocupou (e ocupa) por tempos nossos discursos e estratégias de ação se limitava a classificações por lugares e/ou por características dos relacionamentos entre os indivíduos envolvidos. O lugar por excelência da exploração sexual era o de fora de casa e o critério básico era, por decorrência, a não existência de relações entre familiares – daí a diferenciação entre abuso e exploração, tomando a primeira violação como intrafamiliar e a segunda como extrafamiliar. Essa classificação se desmancha diante de tensionamentos vindos da realidade – por exemplo, que tipo de violência comete um padrasto que “privilegia” a enteada adolescente com presentes freqüentes e “regalias” em troca da satisfação sexual? Nesta situação e em outras semelhantes, a violação de direitos ocorre no lugar preestabelecido para o abuso e tem dinâmica preestabelecida para a exploração sexual.

Essa visão inicial – que continua fundamentando cartilhas e material de campanha – é limitante por forçar que teorizações (que se tornaram inócuas pela falta de conversa constante com as práticas) caibam, com justeza, na vida cotidiana concreta. Semelhantemente, ainda permanece a ideia de restringir a situação de exploração sexual apenas quando há explícita troca comercial e o favorecimento financeiro de terceiros pelo uso do corpo de crianças e adolescentes.

As compreensões de violações de direitos centradas nas relações intersubjetivas – como são as supramencionadas – deixam para fora de suas margens as totalidades, nas quais se inserem essas violações. Consideram apenas a manifestação mais superficial, a que diz respeito às relações diretas de violência entre os envolvidos. Neste reducionismo, tornam-se maniqueístas: de um lado, o violador; de outro, a vítima – o problema neles se encerra e neles se resolve.

O ingresso de uma visão complexificada - como também é a realidade - no debate sobre violação de direitos sexuais de crianças e adolescentes dirigiu o olhar para questões como os impactos dos grandes projetos de desenvolvimento num contexto de globalização. Entretanto, essa nova perspectiva, que representa avanço nas discussões, precisa ser tensionada. Como arrolado acima, permanece forte a herança dualista e limitada nos relacionamentos entre indivíduos – por isso, o termo “impacto” se faz muito frágil diante da robustez discursiva do “desenvolvimento”.

É necessário voltar a atenção para as mudanças do mercado sexual em lugares por onde se expande os projetos do capitalismo globalizado. Numa análise inicial, o mercado sexual se intensificaria como consequência da chegada em massa de trabalhadores homens – esse mercado apenas supriria as necessidades de uma demanda anterior. Em uma relação direta de oferta e procura, esse mercado desapareceria com o fim do trabalho em massa.

No entanto, percebemos que o mercado sexual se antecipa à formação de uma possível demanda e cria condições para ocorrência dessa demanda. Quando ainda se discutem os projetos de instalação de canteiros, já existe uma intensificação dos fluxos de trabalhadoras sexuais e dos agenciamentos. Trata-se de um mercado organizado e atento para as colocações dessas trabalhadoras em lugares com potencialidades de geração de lucros. Quando as obras têm início, de fato, o mercado sexual já está ordenado e, inclusive, em muitas situações, com apoio dos gestores das empresas por meio da contratação de shows para “acalmar os ânimos” e “aplacar a saudade das afetividades”.

O envolvimento de vários segmentos na organização e manutenção do mercado sexual ocorre por necessidade de pactuações para manutenção das obras de infra-estrutura (tão necessárias em algumas localidades e completamente desnecessárias em outras), que propagam e sedimentam sonhos locais de inserção das comunidades no mundo global de direitos. A completa desvalorização das teias locais, consideradas como impeditivas do desenvolvimento industrial e, portanto, único modelo de redenção do “sub-desenvolvimento”, absolve completamente quaisquer problemas que possam advir. Em inúmeros discursos presenciados nos pequenos municípios, alguns podemos destacar[1];

 

“O que são dois casos de AIDS com200 kmde asfalto?”,

“As famílias não se prepararam para o trabalho dentro da indústria, não se esforçaram para se qualificarem... então, vão ter que se agregar de qualquer jeito...”

 “Nós, do município, já absorvemos os impactos (...) são 30 anos de destilaria e já construímos casas pra todo mundo que ficou aqui”

“As mulheres não tinham com quem casar, pelo menos agora, elas têm filho (...) fizemos o conjunto habitacional para os safrinhas”

“Nós já resolvemos os problemas. Na época da construção foi difícil, as mães não cuidavam suas filhas. Agora, temos as avós do gasoduto e estão quase todas nos programas de transferência de renda”

 “Não tem jeito... aqui era atrasado demais... agora temos emprego pras pessoas. As mães é que não cuidam das filhas... daí dá problema... elas namoram e depois dizem que os homens são culpados”.

 

Os projetos de des-envolvimento são responsáveis por mudanças territoriais, que conforme Santos (2001), compõe-se de objetos e idéias. Esta última, sem dúvida, a definidora da absolvição e absorção de impactos e, por isso, tão bem negligenciada de direitos humanos em nome da inclusão globalizada de sonhos e localmente excluída de possibilidades do devir. Como afirma Rigotto,

 

A ideologia do desenvolvimento tem norteado a trajetória das sociedades ocidentais ao longo de toda a modernidade. [...] A crise de uma ‘religião’ tão amplamente difundida pesa sobre nossos ombros e levanta uma serie de perguntas a que é preciso responder. (2008, p.67)

 

 

O outro perigo, decorrente das obras físicas dos projetos de infra-estrutura e de des-envolvimento, é a tatuagem que vai sendo impingida nas comunidades locais, especialmente no que se refere à garantia dos direitos sexuais de crianças e adolescentes: sexualidade não mais como direito, mas como valor de troca; criança não mais como pessoa em desenvolvimento, mas como mercadoria de troca; sonhos de dignidade não mais como possibilidades, mas como obstáculos ao desenvolvimento. Além disso, os territórios destruídos de teias de garantia de direitos configuram novas redes de expropriação e estas, em grande parte, aliadas das redes de direitos que constituímos nos anos que se seguiram à Constituição de 1988, como em muitas situações, o financiamento de projetos dirigidos à infância por parte de empresas que esgarçam a mesma.

Talvez resida nesta discussão o nosso desafio em conseguirmos nos antecipar ao projeto de des-envolvimento: com empoderamento das comunidades para resistência ao que não é necessário; para condicionar os projetos à realidade local; para valorizar o que existe de bom e garantidor de direitos; para que as comunidades tenham condições de propor novas formas do viver sem necessariamente abrir mão de sua história; para que conheçam os projetos de forma a prepararem-se antecipadamente para enfrentar os problemas com dignidade e cidadania. Enfim, colocar-nos uma grande meta: para que o financiamento por fundos públicos não seja objeto exatamente de desmantelamento dos direitos que, no mesmo lado, está o Estado brasileiro, cuja maior função deveria ser a garantia deles.

A responsabilidade sobre a exploração sexual de crianças e adolescentes precisa deslocar-se da cômoda penalização das relações entre os indivíduos - geralmente mais moral e menos jurídica - que ocorre dissociada das transformações territoriais impostas pelo des-envolvimento. É necessário sair da crosta do problema para o entendimento e ação nas totalidades em que se insere. É fundamental a nossa inserção radical - no sentido de raiz – no enfrentamento das violações de direitos sexuais de crianças e adolescentes, considerando o momento atual do capitalismo, que necessita expandir mercados globais em mercados locais, justificando todos os impactos através da sacra força semântica de uma só palavra: “desenvolvimento”.  

 

 

SCANDOLA, Estela Márcia. Oferta Demanda e Mercado Sexual. Aprendizados de educadora. Revista Conversação. Ed. nº07; 2009.

 

RIGOTTO, RM. Desenvolvimento, ambiente e saúde: implicações da (des) localização industrial. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2008; 426 p.

 

SANTOS, Milton: SILVEIRA, Maria Laura. O Brasil: território e sociedade no início do século XXI. Rio de Janeiro Record, 2001.

 

Publicado em outubro de 2010.


[1] Esses fragmentos de discurso foram colhidos em diferentes ocasiões e localidades, não sendo os únicos presenciados, mas consituindo-se em representações que congregam grande parte do que aprendemos sobre des-envolvimento.


Autor: Estela Márcia Rondina Scandola


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